JORNAL DE NOTÍCIAS
"As ?pequenas? grandes causas do quotidiano", copyright Jornal de Notícias, 22/12/02
"Não é verdade que haja uma crise de causas que mobilizem, com paixão, grupos de cidadãos. Verifica-se, quando muito, uma divergência nos conceitos de ?socialmente correcto? e de ?nacionalmente desejável?. E existe, inegavelmente, uma postura que se situa a meio caminho entre o egoísmo e o comodismo, que dá aos outros, sempre aos outros, a honra de defender os nossos interesses e o que restar dos nossos ideais.
O problema não é português, ainda que, em algumas das suas coordenadas, possa, de facto, ser mais português. A verdade é que a abstenção eleitoral aumenta nos chamados primeiro e segundo mundos, onde os analistas falam da crise de valores e das ameaças que cercam a democracia. E, estranhamente (ou, talvez pelo contrário, por isso mesmo), é nesses mesmos países que germinam e crescem, fecundos, os ideais de minorias aguerridas (políticas ou religiosas): é o espírito de seita.
É imperativo da democracia justamente a aceitação das diferenças que devem, não combater-se, mas tentar entender-se pelo estudo, que não deixará de trazer-nos ensinamentos. E é tarefa para antropólogos, sociólogos e politólogos obter resposta para esta pergunta: qual é o mecanismo gerador das paixões do nosso tempo? O que mobiliza os nossos afectos, a ponto de fazer-nos combater a inércia e lutar por causas que a maioria dos cidadão classifica como causas menores?
Das confissões religiosas que rejeitam o estigma do qualificativo seita, aos católicos que vêem no relevo dado a um achado arqueológico que pode pôr em causa a versão tradicional da ?Bíblia? um movimento contra a Igreja. Da paixão que faz da menção de uma grande penalidade mal assinalada pelo árbitro um atentado ao clube ou a toda uma região, aos criadores de cães que descobrem na notícia do ataque de um animal ou na legenda de uma fotografia de uma exposição canina uma ?campanha contra certas raças de cães?.
O Provedor não tem a pretensão de medir o incomensurável que é a dimensão das causas por que se bate alguém. Tem, naturalmente, o seu juízo – que não importa, por subjectivo. Mas não deixa de admirar quem tão facilmente encontra certezas onde ele, a cada caso que analisa, mais dúvidas enfrenta…
Foi o que aconteceu com um leitor, Gonçalo GraçaMoura, que, na qualidade de canicultor e de representante da ?DogsAtRisk? endereçou ao JN, em 26 de Novembro, uma longa mensagem electrónica.
Considerava incorrecto um texto de Mário Contumélias (artigo de opinião de um colaborador,que não vincula o ?jornal de Notícias?) que, a propósito da morte, na semana anterior,em Leça da Palmeira, de um homem de 73 anos por um ?rotweiller?, chamava a atenção para o perigo real que alguns animais, nas condições que os donos lhes proporcionam, constituem. E insurgia-se, principalmente, contra a frase: ?Trata-se de raças (como os rotweiller, pitbull, bulldog ou doberman) produzidas para o combate e carentes de espaço e movimento, necessidades essas incompatíveis com o território de um apartamento?.
Pois o leitor não teve dúvidas e, logo a começar a sua missiva, afirmou: ?Tem o vosso jornal encetado uma campanha contra certas raças de cães…?
Depois de pronunciada a ?sentença?, os argumentos (e alguns deles pedagógicos), já contam menos. Mas valerá a pena reter que ?a única raça que infelizmente é criada por pessoas menos escrupulosas para combate é de facto o Pitbull? (seria impossível treinar para a luta um bulldog), que os rottweiller e os doberman são cães de guarda, e que a média anual dos ataques dessas raças é de 0,03% do número de exemplares existentes. O leitor esclarece, ainda, que Portugal foi o primeiro país do mundo a legislar (1925) sobre a obrigatoriedade do uso da trela ou açaimo, bem como sobre a vacinação sobre a raiva. A legislação ainda hoje é a mesma… mas de pouco vale, por falta de fiscalização.
Esclarece o criador que ?o problema de certos tipos de raças não é da raça em si mas do tipo de dono que têm, que ou pretende o animal para fins menos lícitos, ou não se preocupa em o sociabilizar e educar… ou passeia o seu cão sem trela ?. E admite:
?Concordamos que há cães perigosos, mas esse perigo advém não da raça em si, mas de factores como a não sociabilização do animal (com pessoas e outros animais), o retirar o animal de junto da mãe em plena fase da chamada sociabilização em matilha, que é a idade em que ele aprende a ser cão com a mãe e os irmãos da ninhada, fase que normalmente decorre entre as quatro e as oito a dez semanas de vida (lembro que a maioria dos animais que se encontram nas lojas são lá colocados às 6 semanas de vida, o que é manifestamente cedo)?.
Poucos dias depois, o leitor estabelecia novo contacto, então já na condição de director do Terrier Clube de Portugal, e com um protesto a que se juntaram vários outros. Com igual veemência. A causa foi uma foto-legenda publicada a 10 de Dezembro em ?Sociedade? e que incidia sobre quatro Bedlington Terrier e respectivos donos, focados numa exposição.
Começava desde logo a legenda por dizer que ?Não são os bichos da foto cães de fila, perigosas feras prontas a atacar sem dó nem piedade?, mas, adiante, caracterizava: ?Como a generalidade dos terriers, são cães temerários,que não pensam duas vezes quando o que lhes passa pela cabeça é atacar algo que mexa à frente dos respectivos focinhos (…) Não querem saber por que atacam, nem medem a dimensão daquilo que atacam, pois têm um elevado grau de insensibilidade à dor?.
Diz o director do Terrier Clube de Portugal que o texto não é verdadeiro. E, aceitando a sua qualidade de especialista, faz o Provedor sua (mais uma vez!) a recomendação do leitor: perante este tipo de notícias porquê não citar a fonte, ou tentar confirmar a sua veracidade do que se relata junto de quem tem conhecimentos técnicos?
Porém, nem as notícias em causa, nem quaisquer outras sobre o comportamento agressivo de animais legitima perguntas como ?Porque é que o JN tem medo dos cães? Porque há tanta raiva contra o melhor amigo do homem??
Os ?media? não podem ignorar os incidentes graves com cães, nem a ameaça que alguns cães representam – decerto que por culpa dos homens. Informar o público, alertá-lo, é justamente a função dos jornalistas – jornalistas que devem, naturalmente, ter preocupações de rigor e de esclarecimento pedagógico, recorrendo, sempre que necessário, à opinião de especialistas.
E o JN tem-no feito, em muitas circunstâncias, como,por exemplo, na notícia publicada em 21 de Julho do ano passado, em que a professora do Comportamento Animal na Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa, Ilda Rosa, reiterava que ?os donos são duplamente responsáveis pelo comportamento dos seus animais (…) pela forma como os educam para serem agressivos, esquecendo que serão responsabilizados criminalmente por eventuais agressões?. Aquela especialista dizia, nomeadamente: ?Não há raças de cães mais propensas ao ataque, mas sim cães bem e mal educados, independentemente da raça a que pertencem?.
Essa necessidade de educação dos animais é, aliás, patente na proliferação de escolas especializadas, nas principais cidades portuguesas.
Como os leitores sabem, a agressividade dos cães (qualquer que seja a causa) vem sendo preocupação dos governos de vários países, alguns dos quais legislaram recentemente sobre o assunto.
Esconder essa realidade não é, sequer, um sinal de afecto para com os animais."