MÍDIA AMERICANA
Nilson Lage (*)
Nesses dias de festa, motivado pela rara chance de encontrar [em 7/12/02] colegas e ex-alunos no encontro promovido pelo Knight Center sobre jornalismo investigativo, na Escola de Comunicação e Artes Universidade de São Paulo (que bem podia instalar ali um sistema de ar condicionado ou, pelo menos, um ventilador que funcione), resolvi dar uma olhada em produtos recentes do jornalismo norte-americano.
Por um lado, as matérias locais nos jornais a que tenho acesso pela internet pareceram-me bem apuradas e algumas revelaram efetivamente trabalho de investigação, com o confronto entre dados de diferentes origens e opiniões de diferentes fontes.
As matérias internacionais sobre temas de cultura, turismo ou recuperação histórica também se revelaram corretas, limpas, úteis. Por exemplo, o texto do New York Times do domingo, 29/12, sobre os danos causados a Ouro Preto pelo tráfego de automóveis nas ruas coloniais da cidade que é patrimônio histórico da humanidade toda, não apenas do Brasil.
O que me espantou foi a incompletude e a limitação da apuração de textos politicamente sensíveis.
Reportando-se às críticas ao gabinete de ministros do presidente eleito, escreveu o correspondente do New York Times no Brasil, na quinta-feira, 26/12, que a Sadia, empresa de alimentos do Sr. Luiz Fernando Furlan, deve qualquer coisa como US$ 150 milhões ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), formalmente vinculado à pasta que irá ocupar; e que o Sr. José Alencar, vice-presidente do Sr. da Silva (aliás, Lula), dono da segunda maior empresa têxtil do Brasil, comprou algodão em leilões oficiais, talvez com alguma irregularidade.
Ora, dizer o tamanho da dívida da Sadia sem dimensionar a companhia (bastaria para isso acessar www.sadia.com.br) já é estranho: obviamente, o que é uma fortuna para uma fábrica de tamancos é um troco para a Petrobras; no caso, a Sadia tem 30 mil empregados, exporta para 60 países e faturou, em 2001, perto de US$ 2 bilhões. Mencionar a empresa do Sr. Alencar (o vice de Lula, aliás, do Sr. da Silva), sem sequer dar o nome dela (www.coteminas.com.br), seu tamanho (perto de US$ 500 milhões), importância (emprega 16 mil pessoas) e qual irregularidade lhe é atribuída é algo que também não fica bem em um jornal tão importante.
Pode ser que, para o correspondente no Brasil do NYT, que suponho ser um bom ianque, o fato de dever a um banco público ou de comprar em leilões públicos pareça estranho. No entanto, se ele estudasse um pouco a história econômica do país em que trabalha, descobriria muito rápido que o desenvolvimento industrial brasileiro, a partir de 1930 e, decididamente, no pós-guerra, não surgiu da iniciativa privada, mas foi, desde sempre, uma decisão de Estado, financiada por órgãos como o BNDES, criado na década de 1950. Procurar uma grande empresa brasileira do setor industrial que não tenha empréstimos desse banco é muito difícil, tanto quanto encontrar um grande produtor rural que não deva ao Banco do Brasil.
Afinal, os países são diferentes uns dos outros e isso faz parte da diversidade que torna encantador o mundo para qualquer correspondente estrangeiro.
Velha conclusão
A partir da constatação dessas estranhezas, resolvi captar, na televisão via satélite, as transmissões de duas emissoras americanas voltadas para o jornalismo. Pensava eu, com meus botões, que a CNN era um caso extremado de parcialidade patética em tudo que noticia. Estava errado: não conhecia a Fox News, recentemente incluída no pacote da Sky. Essa estação, em plenas festas, neve nos Estados Unidos, sol aqui em Florianópolis, passa, de minuto em minuto, no rodapé da tela, a advertência: "Terror ? alerta máximo". E nessa linha prossegue, ofertando milkshakes duplos de medo à sua platéia.
Numa retrospectiva do ano, exibem-se os projetos de novas torres que substituirão aquelas que desabaram em 11 de setembro. Ninguém observou como é estúpido construir edifícios tão altos na forma de paralelepípedos, isto é, com multidões ocupando os andares de cima. Por melhor que seja o sistema de proteção, não são necessários aviões carregados de combustível: basta um incêndio acidental ou uma bomba caseira para transformar os andares superiores em fornos, dos quais as pessoas não terão saída, já que nenhuma escada de bombeiros chega tão alto ? isso independentemente da tecnologia que seja empregada. Os outros prédios muito altos, edificados por vaidade ou exibicionismo tecnológico, têm forma de pirâmide, com populações menores no topo, de modo a facilitar a fuga pelas escadas.
Por que não notaram isso? Talvez porque o ataque dos seqüestradores suicidas dos aviões da United tenha sido um bom "gancho" para a política de cowboy do Sr. Bush, o homem eleito à custa de provável maracutaia no estado governado por seu irmão, o mano Moita ? estou apenas traduzindo o apelido da família.
Veja a história do conflito com a Coréia do Norte. Clinton firmou, em 1994, acordo garantindo suprimento de petróleo ao país em troca da desativação de usinas nucleares que poderiam eventualmente gerar plutônio, essencial à fabricação de bombas atômicas. Em outubro passado, Bush resolveu descumprir o acordo, alegando que a Coréia tinha um programa nuclear secreto, o que a Agência Internacional de Energia Atômica não confirma e o governo coreano nega. Diante disso, o governo da Coréia do Norte reativou uma central elétrica nuclear, desligou as câmaras de observação da agência da ONU e dispensou os observadores ? algo perfeitamente previsível. Para descobrir essa simples série de eventos nos jornais americanos tive que ler páginas e páginas de matéria irrelevante sobre dificuldades da agricultura coreana, biografia do ditador local, tamanho do exército, supostas metralhadoras (dessas que os traficantes usam) perto da fronteira, depoimentos de velhinhos que lutaram na guerra da Coréia etc. E ainda assim precisei pesquisar no Le Monde, já que a imprensa inglesa também não ajuda muito..
Acompanhar esse noticiário e o seu entorno (features, slogans, boxes remissivos) levou-me a confirmar uma conclusão a que cheguei há quatro anos, quando escrevi um livro chamado Controle de Opinião Pública, hoje esgotado: se o Sr. Bush, o Sr. Sharon e o Sr. Blair, bem como a mídia que controlam, ou que é controlada pelos que os controlam, são exemplos de democracia, essa, a democracia, como dizia o vulgo há alguns anos, "está com nada".
(*
) Jornalista, professor titular da UFSC