CÁSSIA ELLER NA
CASA DOS ARTISTAS
Gilson Caroni Filho (*)
Às 19h05 de 29 de dezembro de 2001 morria Cássia Eller. Dez minutos depois, corpo ainda quente, a maioria das edições on-line dos grandes jornais e a homepage de um grande portal ofereciam a seus leitores-usuários discografia, vídeos e biografia da cantora e compositora. Trinta e nove anos e uma trajetória musical eram redutíveis a um número ligeiramente superior de linhas.
Mais uma lição sobre a lógica da sociedade contemporânea e a dinâmica de suas mídias. A vida quando transformada em notícia nada mais é que um mosaico sem sentido. Fragmentada, diluída numa sucessão simplória de factualidades, a informação, se não desborda em análise dos seus elementos constitutivos, é tão indesejada quanto a ausência dela.
De há muito observamos a banalização da vida na sociedade espetacular. Política, sexo, economia, arte e história tornaram-se os apêndices de uma grande revista semanal de entretenimento. Devem ser assimilados, metabolizados e secretados pela consciência desmemoriada. Só assim retornam como show.
Nada constitui novidade. Desde Debord e dos teóricos de Frankfurt tais temas têm sido repisados. O dado novo é o fim da morte. Não como constatação óbvia de que começamos a morrer quando nascemos ou, numa apreensão dialética, de que a vida traz em si o embrião de sua negação. O que o circo midiático nos oferece é a morte como fait divers. Com a possibilidade de reapresentá-la múltiplas vezes e celebrá-la como águas passadas numa retrospectiva de final de ano.
Nesse marco, gostaríamos de propor uma inflexão. No esvaziamento vital imposto pelas necessidades de mercado, perdeu sentido falar em biografias. Estas requerem pesquisa meticulosa, um certo cuidado com o tempo narrado e o diapasão entre vida e obra do biografado.
Atrapalhando os fogos
O que assistimos é algo muito mais assustador do que imagina o observador de aparências. A necessidade de renovação não obedece a um ciclo biológico e/ou histórico. Início, meio e fim são ditados pelo valor de troca. O mercado detesta os longevos que teimam em contrariar a obsolescência programada. É como se dissessem aos que brilham na ribalta: "Por favor, façam seus shows e morram em seguida. Morram, morram".
O político bem-sucedido e sua primeira eleição. O cantor e seu primeiro sucesso. O artista e seu primeiro papel. O que estes, entre muitos, têm em comum? Assim que ascendem escrevem a primeira linha do obituário que a mídia tão freneticamente solicita. Deixarão para a posteridade não uma obra, mas um suplemento especial ou uma nota de pé de página. Nunca a transcendência esteve em patamar tão rasteiro. Esse é o preço do picadeiro. Sua velocidade oculta o grande vazio da imediatez. Estar "em tempo real" é se equilibrar em algum ponto de fuga da história concreta.
O homem comum, lendo essas linhas, deve se sentir a salvo da cultura que a nada poupa? Poderá dizer que à ausência de projeção restou-lhe uma sobrevida tranqüila? Talvez, caro leitor, mas não se anime. Sem a legitimação espetacular, quem a não ser sua mãe, essa fonte muito pouco confiável, pode lhe assegurar que você nasceu?
Se os fãs mais ardorosos da roqueira acham que a mídia lhe foi parcimoniosa no "réquiem dos especiais", lembremos que o acaso ignorou a grade de programação. Ao ter uma parada cardíaca a dois dias do reveillon, Cássia Eller morreu na contramão atrapalhando os fogos. Que, convenhamos, eram a próxima atração.
(*) Professor de Sociologia da Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso, no Rio