CASSIA ELLER & CELSO DANIEL
Alberto Dines
Nos calhamaços sobre violência e nas catilinárias sobre a paz que apareceram desde o assassinato do prefeito de Santo André não foi registrada ? até agora ? uma única menção à brutalidade dos meios de comunicação na própria cobertura da brutalidade.
A mídia está simplesmente histérica. Perdeu o senso de medida. Já não se trata do "espírito de verão" que torna os procedimentos nas redações mais levianos e irresponsáveis do que normalmente são. O que está evidente é a entronização do clima de "dedo no gatilho" ? generalizada inclinação para o prejulgamento, justiçamento sumário ou linchamento moral que convertem qualquer hipótese em suspeita e qualquer suspeita em evidência.
É da natureza da função policial e legal investigar qualquer pista, duvidar de qualquer álibi, não descartar hipótese alguma. Mas é da natureza e faz parte do compromisso intrínseco da atividade jornalística a capacidade de apresentar as suposições de forma responsável, devidamente formuladas e equacionadas para evitar injustiças irreparáveis.
Antes mesmo de enterrada, Cássia Eller já estava sendo condenada pelo sistema mediático (rádios, televisões, jornais, revistas e seus respectivos outdoors) como viciada em drogas e vitimada por uma overdose de tóxicos pesados. Não faltou a doida cascata em torno da hipótese de homicídio e crime passional [veja abaixo remissões para matérias sobre o assunto publicadas neste Observatório].
Ao longo de um mês, diariamente, produziram-se depoimentos convictos, testemunhas-chave inesperadas, complicadas perícias e definitivos laudos. Laudas e mais laudas foram gastas com autoridades médicas não identificadas levantando as mais disparatadas teorias de medicina legal. E, de repente, como se nada tivesse sido aventado, a mídia é obrigada a engolir ? e o faz, diga-se, com inexcedível facilidade ? a mais nova suposição. Foi erro médico.
Sai do banco dos réus um bando de gente inocente e entra outro. Provavelmente inocente também. Não tem importância: jornais saem todos os dias e todos os dias precisam ser produzidas sensacionais reviravoltas.
O caso do seqüestro e assassinato do prefeito Celso Daniel é ainda mais preocupante porque envolve na leviandade, além da honorabilidade dos mortos e a dor dos vivos, o delicado processo político num ano com complicadas eleições presidenciais.
A batucada em torno do "crime político" foi no mínimo irresponsável. E a transformação da única testemunha em suspeito chega às raias da paranóia. Pelo menos da forma com que está sendo apresentada.
Uma excursão pelo "maravilhoso mundo das revistas" dá uma idéia dessa fuzilaria jornalística da qual participam profissionais graduados e bem pagos, de diferentes organizações jornalísticas.
Capa de Época: seis fotos de Sergio Gomes da Silva com um título inconfundivelmente incriminador ? "Sombra Suspeita" (alusão à alcunha do amigo do prefeito, chamado de "Sombra"). Texto: "Os negócios que ligam o empresário Sérgio Gomes a interesses milionários, na prefeitura de Celso Daniel, o mártir da violência". Cinismo cavalar: a vítima, convertida em mártir, é ao mesmo tempo enlameada por hipotética cumplicidade com as eventuais negociatas do amigo.
Capa de IstoÉ: fotomontagem com o título "Uma Nação em Pânico". Título da matéria (pág. 24): "Barbárie". Texto: "Execução do prefeito de Santo André mostra a força das máfias incrustadas nas administrações públicas etc. etc." Desvario: o crime já está elucidado, os criminosos devidamente identificados (a máfia das administrações públicas), então só falta prender os culpados.
Veja, excepcionalmente contida tanto na capa como na reportagem "especial" de 26 páginas. Prova de que é possível praticar o tal jornalismo "revisteiro" (independente do que isso signifique) sem tropeçar no sensacionalismo marrom que vem sendo praticado nos últimos anos pelos semanários de grande circulação.
Aqui somos levados a uma pergunta capital e a uma irrecusável remissão ao caso da Escola Base: a imprensa inventa sozinha estes desatinos ou alguma fonte passa aos repórteres as suspeitas do dia?
De novo a diferença entre o tratamento que um policial deve dar às hipóteses e o encaminhamento que lhes dá o jornalista. A autoridade pode usar e abusar de suspeições. É pago para isso e para manter suas diligências envoltas num mínimo de descrição A sociedade quer do policial sua engenhosidade e empenho para descobrir culpados por mais misterioso que seja o crime.
Mas do jornalista a sociedade quer compostura. Suspeição implica liminarmente um juízo desfavorável. Em letra de forma, a suspeita e o suspeito deixam o rol da inocência e colocam-se a meio caminho da culpa.
Suspeitas formuladas por um policial devem ir para um relatório confidencial e, na melhor das hipóteses, materializadas num processo. Já as suspeitas veiculadas pela imprensa são públicas e indeléveis. E enquanto não alicerçadas em evidências ou provas, são enganosas. Infâmias.
A onda violência que assusta o país não se relaciona apenas com o crime organizado, o narcotráfico, a corrupção da polícia e do aparelho judicial. Há uma irresponsabilidade entranhada que a torna perigosamente banal. [28/1/02]
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