O CRIME NA IMPRENSA
Muniz Sodré (*)
Apesar da distância geográfica e da disparidade factual, parece haver um elemento comum entre o Piscinão de Ramos (RJ) e o chocante assassinato do prefeito de Santo André (SP). Não é um elemento que possa ser assinalado por um tipo de informação jornalística voltado exclusivamente para a superfície emocional dos acontecimentos. Como se sabe, o principal produto do jornalismo moderno, a notícia (a antiqüíssima e anglo-saxônica news of the day), é um ponto rítmico forte, às vezes uma irrupção violenta, na rotina dos fatos cotidianos. O jornalismo, com poucas exceções, vive cada vez mais da exploração emocional desses pontos rítmicos.
O Piscinão, como bem se sabe, foi eleito uma espécie de "musa de verão" pela imprensa carioca. Por motivos ainda um tanto obscuros, o enorme reservatório de água salgada, construído pelo governo estadual num recanto esquecido da cidade do Rio de Janeiro, tornou-se centro de atenções jornalísticas. De repente, sobreveio a maré montante de coliformes fecais e, por cima de tudo, o controle territorial exercido por uma das facções do tráfico de drogas. No noticiário, as duas coisas pareciam equivaler-se.
Já o seqüestro e assassinato do prefeito em São Paulo constituem um ponto a mais na escala crescente da violência anômica (a violência visível que se traduz em estatísticas de assaltos e homicídios) que leva a capital paulista e regiões particulares a níveis insuportáveis de insegurança coletiva. Especula-se que seqüestradores e outros tipos criminosos de alto calibre estariam concentrando-se em São Paulo, onde são mais elevados os níveis de renda e, portanto, mais generalizados os sinais de abundância e riqueza. Levanta-se ao mesmo a suspeita de que, ao lado de criminosos comuns, desenvolva-se uma ação de natureza terrorista, proveniente de organizações da direita que já foi batizada de "explosiva".
De comum entre os dois tópicos do Rio e São Paulo há um problema de natureza institucional, latente em cada grande manifestação de violência, que a consciência pública não consegue descortinar. Orquestrado pelo emocionalismo noticioso da grande mídia, o público tende a avaliar as explosões de violência como eventos isolados, pequenas catástrofes do cotidiano, que o perturbam de modo anômalo, assim como o clássico exemplo dos manuais de jornalismo para fato noticioso: "o homem mordeu o cachorro".
Na realidade, o controle do território do Piscinão carioca por uma facção criminosa é institucionalmente tão grave e tão violento quanto as estatísticas sangrentas de seqüestros e assaltos em São Paulo. Se concebermos a Cidade democrática como integração de sociedade e nação num Estado de direito, a saúde de sua cidadania não se limita ao atendimento de suas necessidades econômicas e biológicas, pois inclui a liberdade da convivência e da criação. Para isto, é preciso subordinar a lei ao direito e o Estado à lei, o que só se obtém com normalidade institucional, isto é, a condição de força suficiente para que o Estado proteja o direito e garanta o bem comum.
Ora, a simples coexistência territorial com um ilegalismo forte (narcotráfico, facção criminosa etc.), como é o caso do Piscinão, é um atestado de fraqueza institucional do Estado porque impede a sua eficácia na prestação de serviços essenciais, como segurança pública e defesa de direitos fundamentais. Estado débil ? resultante política do projeto neoliberal de um Estado voraz em tributação mas descomprometido com o povo e a nação ? é uma outra forma de ditadura, porque concentra recursos sociais, imobiliza a ação coletiva e exime-se da contraprestação. Esse Estado é fraco diante dos ilegalismos porque é politicamente inepto. Falta-lhe capacidade política para responder aos desafios das tensões surgidas na Cidade que aspira a democracia. Assim, a diferença entre o traficante que dita a cor das roupas no território do Piscinão e seqüestrador assassino de São Paulo é mero detalhe de modulação.
Há uma dimensão da política que não se reduz ao exercício do poder de Estado, mas enfatiza o poder da vida em comum. Política é aí participação ativa dos agentes sociais na Cidade democrática, é compromisso com a responsabilidade institucional. A imprensa pode fazer essa política (que não é partidária), pode assumir o dever de atuar como agente social afirmativo. Para tanto, será preciso abrir mão editorialmente da superficial "notícia pela notícia" e abrir-se intelectualmente para um jornalismo mais conceitual, mais analítico e menos emocionalista. Será preciso mostrar com grandes textos a extensão da criminalidade na vida nacional, dissecar-lhe as causas institucionais e apontar para soluções, inevitavelmente políticas.
(*) Jornalista, escritor e professor titular da UFRJ