CONCENTRAÇÃO vs. DIVERSIDADE
Luiz Weis (*)
No dia 13 de setembro do ano passado, quando todos os americanos, e o resto
do mundo, estavam de olhos vidrados nos escombros em chamas do World
Trade Center, a Comissão Federal de Comunicações
dos Estados Unidos (FCC, na sigla em inglês) tomou em surdina
a decisão de pôr abaixo "as últimas poucas
regras destinadas a prevenir o perfeito oligopólio"
no setor de mídia, segundo a avaliação do professor
Mark Crispin Miller, da Universidade de Nova York, em artigo na
edição de 7 de janeiro da revista The Nation
<www.thenation.com/doc.mhtml?i=20020107&s=miller>.
A decisão consistiu em mandar rever duas normas. Uma, adotada em 1975, impede que uma empresa seja dona de um jornal diário e de uma emissora de TV em uma mesma cidade (ou em um mesmo "mercado", na terminologia oficial). Outra, de 1996, limita a 35% dos domicílios americanos a fatia de mercado que as emissoras de TV pertencentes a um mesmo proprietário podem abocanhar em conjunto.
Pouco depois, um tribunal federal resolveu derrubar outra barreira ao processo vulcânico de concentração da mídia nos Estados Unidos ? a que impedia uma só empresa de atender a mais de 30% dos assinantes de TV a cabo no país. Na semana passada, enfim, o ultraliberalismo aplicado à indústria de comunicação de massa obteve um triunfo que o repórter Bill Carter, do New York Times, considerou a melhor notícia que as grandes redes de TV aberta receberam nos últimos 10 anos.
Julgando uma petição da AOL Time Warner ? a gigante a pertencem a maior provedora de internet dos Estados Unidos, a revista semanal de maior circulação no mundo, a emissora de maior penetração global, a CNN, uma das maiores operadoras de TV a cabo da América e um dos maiores estúdios de Hollywood ?, um tribunal de Washington decidiu por 3 votos a 0 que a FCC fracassou em demonstrar que o veto à aquisição de canais de TV aberta por operadores de TV a cabo era necessário "para salvaguardar a competição".
Fracassou porque quis ? literalmente. Sob a presidência de Michael Powell, filho do secretário de Estado Colin Powell, e com ampla maioria de membros identificados com a crença Partido Republicano nos valores sublimes do mercado, tudo que a FCC do governo Bush abomina é o Estado se intrometer nos negócios no biliardário setor econômico sob sua jurisdição. "Regulamentação é opressão", disse Powell, o filho, certa vez.
O tribunal fez mais. Pronunciando-se sobre outro processo contra a FCC, desta vez movido pela rede de televisão Fox ? parte da News Corporation, o conglomerado americano do notório marajá global Rupert Murdoch, que inclui a Fox News Channel, 33 emissoras de TV e, de quebra, o tablóide New York Post, cada um mais reacionário do que o outro ?, os juízes consideraram "arbitrária" e insuficientemente justificada a regra sobre os limites ao número de estações de propriedade de uma mesma rede (os tais 35% dos domicílios americanos).
Gols contra
De novo, não se pode dizer que a FCC tenha suado sangue em defesa da norma, para obter uma decisão contrária aos interesses dos magnatas da mídia e favorável ao interesse coletivo. A comissão deve ter, isso sim, comemorado a dupla derrota judicial ? graças aos seus propositais gols contra.
O forró, ou, já que se trata dos Estados Unidos, o free-for-all está praticamente pronto. Só que o all, no caso, é o restrito clube das 10 megamultinacionais da chamada indústria cultural, ou do imaginário, e da telecomunicação, quase todas sócias umas das outras em um labirinto de empreendimentos.
São elas a General Electric (dona da NBC e da Cablevision, entre mil e uma companhias de dezenas de ramos, o que vale para todas as demais), Disney (ABC, ESPN), Viacom (CBS, MTV), Sony (Telemundo, Columbia), Vivendi (Universal, Canal+), Liberty Media (Discovery Channel), AT&T (HBO, Warner Bros.), Bertelsman (Editora Random House e maior produtora de cinema da Europa), além das já referidas AOL Time Warner e News Corporation.
A festa da desregulamentação nos Estados Unidos só deixa de fora a imprensa escrita. A empresa que edita o New York Times, por exemplo, pode ter quantas estações de TV quiser no país. (Tem oito, cada qual afiliada a uma das três grandes redes, CBS, ABC e NBC, quer dizer, indiretamente, à Viacom, Disney e General Electric.) Mas em Nova York tem de se contentar com uma emissora de rádio FM ? a excelente WQXR, especializada em notícias e música clássica.
Diz o professor Miller, citado no início deste texto, que dirige o Projeto de Propriedade de Mídia, da New York University, que essa norma antitruste está com os dias contados e que também os grandes conglomerados da imprensa americana ? as companhias New York Times, Washington Post, Gannett, Knight-Ridder e Tribune ? serão absorvidas, cedo ou tarde, por esse medonho oligopólio produtor do que ele chama, com absoluta propriedade, "monocultura". Ou seja, "muito de nada, embalado como ?notícia? ou ?entretenimento?".
Em outras palavras, um breve contra a consciência cívica baseada no direito à informação de múltiplas fontes e no escrutínio permanente dos atos do governo. (Em lugar disso, haja bandeiras, patriotismo arrogante e xenofobia.)
Deus salve a América
À medida que a cartelização se estender ao jornalismo impresso nos Estados Unidos ? com repercussões facilmente imagináveis para o mundo globalizado em geral e para os países do quintal americano, em particular ?, a independência das redações em relação aos governos e ao Big Business tenderá a se transformar em peça de antiquário. E dane-se, obviamente, o interesse público.
A propósito, lembra o professor Miller que, na primeira entrevista de Michael Powell como presidente da FCC, perguntaram-lhe qual era a sua definição de interesse público. A resposta é uma amostra do que passa pela cabeça do pessoal que ganhou o poder na América ? no tapetão, nunca se esqueça ? nas eleições de novembro de 2000. "Não tenho a menor idéia", começou o filho do general. "É um recipiente vazio no qual as pessoas despejam suas idéias preconcebidas e seus vieses, quaisquer que sejam."
Não é só que a curriola de George W. Bush se lixa para o mundo exterior: eles estão a fim de passar feito trator por cima de todo e qualquer controle social destinado a reduzir a promiscuidade própria do capitalismo entre o público e o privado, promovendo um colossal retrocesso em relação às conquistas alcançadas na Era Roosevelt e que mal ou bem se mantiveram, apesar dos estragos dos governos Nixon, Reagan e do concubinato de Bill Clinton com o grande capital.
E os celerados do al-Qaeda ainda fizeram à direita republicana o favor de pôr a seu lado, num escala sem precedentes na história americana, a esmagadora maioria da população.
O resumo da ópera é que está aberto o caminho para a degradação do jornalismo independente nos Estados Unidos ? categoria da qual as redes de TV já podem ser tranqüilamente excluídas, apesar de um ou outro lampejo de isenção e competência em questões de importância, como na cobertura do escândalo da Enron.
É o caso de implorar: Deus salve a América.
(*) Jornalista