GLOBO S.A.
O OI dirigiu três perguntas a dois estudiosos das políticas
de comunicação no Brasil. São eles os professores
Venício Artur Lima, coordenador de Pós-Graduação
da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre,.e
criador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política
da UnB, instituição da qual é aposentado; e
Murilo Cesar Ramos, diretor da Faculdade de Comunicação
da Universidade Nacional de Brasília (UnB). Eis as suas respostas.
(Luiz Egypto)
Como avalia a criação da nova holding da Organizações Globo, a Globo S.A. em conexão com a recente aprovação das alterações do artigo 222 da Constituição? A intenção já manifestada pelo grupo de pulverizar suas ações em bolsas de valores é um alento à democratização da propriedade dos meios de comunicação ou uma forma criativa de intensificar a concentração da mídia?
Venício A. Lima ? É, certamente, a primeira conseqüência da Emenda Constitucional n? 36. Desaparece a possibilidade de idenficação de uma pessoa física "responsável", que era um dos objetivos da tradição legal anterior. Quanto à intenção de pulverizar ações na Bolsa não creio que isso possa ser equacionado com democratização. Democratização refere-se a controle, e esse permanecerá com a família Marinho ? que, segundo noticia a imprensa, terá poder de veto no Conselho de Administração da Globo S.A.
O que se pode antecipar é o provável fortalecimento da Globo S.A. e sua posterior expansão no sentido da concentração ainda maior da propriedade da mídia no Brasil.
Murilo Cesar Ramos ? Em primeiro lugar, quero lembrar que a alteração do artigo 222 vinha sendo discutida no Congresso Nacional, por iniciativa empresarial, desde meados da década de 90. A emenda original, de autoria do deputado Laprovita Vieira (PPB-RJ), visava permitir que pessoa jurídica brasileira pudesse controlar 100% do capital das empresas jornalísticas e de rádio e televisão. A razão dessa emenda era regularizar as outorgas dadas à Igreja Universal, todas em nomes de pessoas físicas, em geral pastores. Por essa formulação, o capital estrangeiro não seria permitido. O deputado Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), procurado pela Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) e pela Associação dos Editores de Revistas (Aner), decidiu, então, encampar a questão sob outros termos, acolhendo, em emenda substitutiva, a tese do controle por pessoa jurídica, mas permitindo que o capital estrangeiro pudesse ter, com direito a voto, até 30% do controle de jornais, revistas, rádios e televisões. Uma comissão especial foi criada, na Câmara dos Deputados, para analisar a questão, creio que em 1998. Foram realizadas audiências públicas durante mais de um ano, e durante uma dessas audiências ? e isto é muito importante para a mais exata compreensão possível da questão ? o representante das Organizações Globo, Evandro Guimarães, surpreendeu seus colegas de discussão (Paulo Cabral, presidente da ANJ; Flávio Cavalcanti Filho, do SBT, vice-presidente da Abert, entre outros) sustentando a tese de que, no caso das emissoras de rádio e televisão, não poderia haver controle por pessoa jurídica. Ele aceitaria o capital estrangeiro, mas apenas até um certo limite, 20% a 30%, desde que associado a uma empresa controlada por brasileiro nato, ou naturalizado há mais de dez anos, pessoa física a quem seria dada a outorga. Seu argumento era nacionalista: o país não poderia correr o risco de ver um setor tão estratégico nas mãos de pessoas jurídicas que, por meio de acordos societários difíceis de serem detectados, permitissem que o estrangeiro tivesse o controle das empresas. Por sua formulação, mais ainda, o sócio estrangeiro do brasileiro teria direito a voto, é claro, mas não poderia participar da direção executiva das empresas.
Essa posição causou estupefação entre os representantes empresariais presentes e entre os deputados que apoiavam o projeto, pois ela poderia levar, como levou, a um impasse. Isto porque a posição da Globo foi a vencedora, sem surpresa, e o texto aprovado, na comissão especial, para ser enviado ao plenário para votação, mantinha a distinção de tratamento entre radiodifusão e meios impressos. Naqueles, só 30% de pessoa jurídica, inclusive estrangeiras, mas se fosse estrangeira não participaria da gestão executiva; nestes, 100% de pessoa jurídica, com limite de 30% ao estrangeiro, podendo participar da gestão executiva.
Tal distinção paralisou o processo, já que as empresas, inclusive as de radiodifusão concorrentes da Globo, não a queriam. Mas, e afirmo isto com segurança, a paralisação era o que a Globo queria, pois seu entendimento era o de que tinha, por meios próprios, condições de equacionamento econômico e alavancagem financeira, enquanto mantinha seus concorrentes amarrados a uma regulamentação superada. Assim, a proposta de mudança constitucional ficou quase dois anos parada na Mesa da Câmara sem ir à votação. Mas, no final de 2001, quando uma crise financeira se abateu sobre todo o segmento da comunicação social, pegando a Globo principalmente nas suas operações de televisão por assinatura (nas quais é permitido o capital estrangeiro, vale registrar), mas com efeitos financeiros estendendo-se a toda a empresa, é que ela própria encarregou-se de desenterrar a emenda que parecia sepultada para sempre, só que agora disposta a, negando toda a sua argumentação anterior, admitir 100% de pessoa jurídica, com limite de 30% ao capital estrangeiro, sem restrição a participar da gestão executiva ? igualando-se, por conseguinte, ao segmento da mídia impressa.
Esta foi a razão de ter a Globo, acompanhada por todo o lobby empresarial, procurado o PT e demais partidos de esquerda, uma vez que era necessária alterar a redação da emenda aprovada pela comissão especial, o que só seria possível na forma de emenda aglutinativa que contasse com o apoio de todos os partidos, por meio de seus líderes, em plenário. É claro que a nova posição venceu; com nova redação, agregada de supostas salvaguardas de interesses nacionais, o artigo 222 foi modificado.
Agora, respondendo, finalmente, a pergunta: quem é capaz desse tipo de manobra, como o tem sido historicamente, não se tornará uma empresa mais democrática, no sentido de sua relação com toda a sociedade, apenas porque se tornará uma corporação de capital aberto, com ações colocadas à disposição do público. Só a vontade popular, associada a um governo que tenha disposição para tanto, é que conseguirá ampliar os espaços democráaacute;ticos na comunicação social brasileira, na forma de um marco regulatório e de uma legislação moderna que contemplem dispositivos de desconcentração de propriedade ? não apenas colocando restrições a controle por um mesmo grupo, ou família, como evitando a propriedade cruzada desses meios. Isto entre outras medidas democratizadoras.
É muito provável que a regulamentação da participação estrangeira nos grupos de midia fique para 2003, para o novo Congresso a ser eleito em outubro. O desenho corporativo adotado pelo maior grupo de mídia do país facilita a captação de investimentos externos? Pode, em decorrência, incrementar a produção de TV no país?
V.A.L. ? Se a regulamentação da entrada do capital estrangeiro prevista na Emenda Constitucional n? 36 não vier nesta legislatura ? o que pode ainda acontecer ?, comenta-se que o principal candidato de oposição ao governo de FHC à presidência da República, se eleito, terá propostas concretas a oferecer ao Congresso assim que assumir o poder. Não se conhece ainda nenhuma proposta. Portanto, creio que o assunto está em aberto. No entanto, a se manter a atual composição política do Congresso Nacional, a influêrncia da Globo S.A. será grande no encaminhamento desta regulamentação, da mesma forma que foi recentemente com relação ao ritmo da tramitação e do conteúdo da Emenda Constitucional n? 36.
Por outro lado, o desenho corporativo da Globo S.A. certamente foi construído, dentre outras razões, para facilitar a captação de recursos externos. Mas não vejo como isso poderia incrementar a produção de TV no país. Ao contrário, creio que haverá um aumento da presença de conteúdo estrangeiro e, portanto de produção estrangeira na TV brasileira.
M.C.R. ? Sim, é provável que a regulamentação do artigo 222, no que toca ao capital estrangeiro, fique para 2003. E é claro que o novo desenho corporativo da Globo está sendo feito para atrair a confiança de investidores, sejam outros grupos empresariais do segmento ? o que não parece ser o alvo da família Marinho ?, sejam fundos de investimento e outros sócios com interesse meramente capitalista, sem preocupar-se com o conteúdo do negócio. Isto dará à Globo muito mais fôlego do que já tem para ampliar a sua produção, principalmente a produção exportável, já que tem como objetivo estratégico ampliar sua participação nos mercados de outros países, notadamente de fala espanhola.
Que implicações esse movimento das Organizações Globo pode sugerir no tabuleiro de xadrez da definição do novo padrão de TV digital no Brasil ? meio que ainda é o principal negócio da organização?
V.A.L. ? Qualquer resposta sobre este tópico seria especulação. No entanto, não pode haver dúvida de que uma das peças mais importantes deste tabuleiro é e continuará a ser a Globo.
M.C.R ? É claro que todo esse movimento de reestruturação corporativa tem, no limite, a preparação do grupo para a maior operação de investimentos e avanço sobre mercados que vai enfrentar desde sua criação ? que é a transição da transmissão analógica para a transmissão digital. Como se vê, ela paralisou o processo da emenda quando quis, e retomou-o igualmente quando quis. Seu movimento é o de vencer a concorrência em todas as instâncias, a começar pelas instâncias de decisão política, até chegar ao mercado consumidor, alvo último de todo negócio. Ela já definiu seu plano estratégico básico para a televisão digital e estava levando o governo a precipitar a decisão de escolha do padrão tecnológico ? no caso, o japonês, sem que eu entre aqui em detalhes sobre uma questão técnica complexa.
O fato é que a televisão digital enfrenta problemas de equacionamento econômico e ajuste técnico nos principais cenários onde foi já implantada: Estados Unidos e Grã-Bretanha. Isso está fazendo com que o governo diminua a velocidade de suas decisões. O que é bom para a sociedade, desde que ela tenha, por seu segmento civil desvinculado dos interesses de mercado, capacidade de entrar e influir nesse debate. Tarefa difícil, mas não impossível.