CASO TIM LOPES
Rosental Calmon Alves (*)
Foi com enorme tristeza que acompanhei as notícias sobre a confirmação da morte de Tim Lopes. Os requintes de crueldade na captura, nas sessões de tortura e na execução do nosso companheiro mostram um nível de ódio, uma arrogância assassina raramente vista no mundo, mesmo quando consideramos os freqüentes casos de execução de jornalistas. Podemos imaginar que essa crueldade arrogante dos assassinos venha da certeza da impunidade que deve povoar a cabeça desses senhores feudais que há anos dominam territórios do Rio de Janeiro, acostumados a decidir sobre a vida e a morte das pessoas, enquanto olham de cima uma cidade que consideram dominada e um sistema de segurança pública incapaz de enfrentá-los.
Uno a minha voz ao coro de brasileiros ? jornalistas ou não ? que estão clamando para que o sofrimento e a morte de Tim não tenham sido em vão. Para isso, será necessário manter viva por muito tempo uma mobilização cívica, exigindo não apenas o mais óbvio ? que os assassinos e todos os seus cúmplices sejam punidos exemplarmente ? mas também algo ainda mais amplo e ambicioso: que essas repúblicas independentes dominadas por traficantes de drogas assassinos sejam desmanteladas e nunca mais toleradas, como têm sido por tantos anos. Só assim o martírio de Tim não terá sido em vão.
Em meio a dor do desaparecimento do Tim, fiquei estarrecido ao encontrar na internet opiniões de uns poucos que se diziam jornalistas mas demonstravam ignorância e maldade em suas análises sobre o caso. Ignorância ao disputar a própria noção de que o assassínio de um jornalista no exercício da profissão é sempre um ataque à liberdade de imprensa em geral. Maldade ao tentar responsabilizar a empresa ou os chefes de Tim por forçá-lo a se expor ao perigo, mesmo sem que tenham tido a preocupação de investigar ou analisar as circunstâncias daquela pauta e da situação da matéria. Houve até quem tentasse desviar o debate para a velha discussão sobre o uso de câmeras ocultas.
O Brasil tem sido muito tímido em reagir à morte de outros jornalistas nos últimos anos. A situação chega a ser embaraçosa porque às vezes parece haver mais reações no exterior (onde há organizações muito ativas dedicadas a denúncias de abusos contra a imprensa) do que no país. Tem havido, porém, uma grande melhoria na reação de organizações brasileiras, como a ANJ e a Fenaj, na investigação e denúncia desses casos. A morte do Tim adquire uma repercussão extraordinária, que não se via há décadas no país em casos de ataques a jornalistas. Tomara que isso crie também o impulso para que os jornalistas brasileiros possam aperfeiçoar ainda mais seus sistemas de resposta a qualquer agressão a qualquer colega, em qualquer parte do país, mesmo nas mais remotas e esquecidas.
Um caso, um exemplo
Quando o repórter Don Bolles morreu em 1976, na explosão de um carro-bomba, em Phoenix, no Arizona, a reação de toda a imprensa americana foi forte e imediata, num orquestrado esforço para que não se permitisse passar à bandidagem o sinal de que um crime contra jornalista era apenas mais um crime. A reação incluiu a mobilização de uma equipe de 40 repórteres, cedidos por vários jornais. Eles foram para Phoenix e durante três meses levaram a cabo o "Projeto Arizona", com o objetivo de continuar com as investigações de crime e corrupção que estavam sendo feitas por Don Bolles, e que levaram os bandidos a assassiná-lo. As 23 matérias que resultaram desse esforço foram publicadas em todo o país e mostraram aos criminosos que em vez de intimidar ou silenciar a imprensa, como eles devem ter pensado que ocorreria, o assassínio de Bolles teve um efeito oposto.
Também é importante notar que o caso de Bolles e o "Projeto Arizona" serviram para consolidar e a organização Investigative Reporters & Editors (IRE), que naquele momentos ainda era um tímido esforço de um pequeno grupo para unir jornalistas de todo o país dedicados à investigação. A IRE for o catalisador dos esforços que resultaram no "Projeto Arizona" e, a partir daí, a organização cresceu e tornou-se um importante centro de apoio para repórteres e editores dos Estados Unidos e de outros países que se dedicam ao que o nosso Tim fazia melhor: investigar aquilo que outros querem ocultar dos olhos fiscalizadores da sociedade.
Menciono o caso de Bolles apenas como um exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos em um caso similar ao do Tim, mesmo quando a vítima não era de um dos maiores jornais do país e nem de uma de suas maiores cidades. O mais importante nesse caso foi a mobilização dos colegas, que não deixaram o crime cair no fatal esquecimento que dentro de pouco tempo será uma ameaça inexorável no caso do Tim.
A história da IRE ficou marcada para sempre pelo "Projeto Arizona" e a organização dos repórteres e editores dedicados à investigação é até hoje um legado importante. Ela não deixa os jornalistas americanos se esquecerem de Don Bolles e ajudou a multiplicar os "Dons" por todo o país.
Tomara que os jornalistas brasileiros possam mostrar ao mundo que somos capazes de não deixar que o martírio de Tim tenha sido em vão. Para isso é fundamental manter a atual pressão para que as autoridades cumpram sua obrigação de investigar, prender, julgar e punir os responsáveis; continuar e multiplicar as investigações que Tim estava fazendo; seguir o esforço que Tim fazia para expor à sociedade esses territórios rebeldes do Rio de Janeiro, pois cabe ao jornalismo independente sensibilizar o povo para o fato de que essa situação é intolerável; e, finalmente, tentar aproveitar esse momento para rever nossos sistemas de defesa de jornalistas agredidos e ameaçados, criando um melhor mecanismo para denunciar casos semelhantes e sensibilizar a sociedade, de modo a que nunca mais haja dúvida de que o ataque a um jornalista é um ataque à liberdade de imprensa e ao sistema democrático.
(*) Professor da Escola de Jornalismo da Universidade do Texas, em
Austin