VENEZUELA, GOLPE E CONTRAGOLPE
Gilson Caroni Filho (*)
Quem assistiu aos telejornais da Globo na sexta-feira, 12/4, deve ter tomado um susto. A América Latina ocupava um inédito lugar de destaque. Esteve presente em todos os blocos. Mudança de orientação editorial? Finalmente uma cobertura que dava ênfase aos países vizinhos, à nossa realidade mais próxima? Não. Na Venezuela, o presidente eleito em 1998, Hugo Chávez, havia sido deposto por um golpe militar e o poder entregue ao empresário Pedro Carmona, presidente da entidade patronal Fedecámaras. Era o fim de mais um governo que fez da soberania nacional seu projeto. Da América Latina, sua prioridade. E que, encarnando aquilo que Gramsci chamaria de "cesarismo progressivo", pôs no lixo da história as agremiações tradicionais (Ação Democrática e Copei) e as oligarquias que se refestelaram de petrodólares, sem reinvestir no país um centavo sequer.
Era um personagem entalado nos porões do Departamento de Estado Americano. Na madrugada daquela mesma sexta, tudo era supostamente passado. Hugo Chávez detido e a realidade de republiqueta restabelecida. O que o telespectador presenciava era uma eufórica comemoração da emissora. Sequer existia a preocupação de dissimular. Era a velha Globo de sempre. Nua e despudorada. Feliz com a vitória, mais uma vez, dos seus aliados desde a origem. E pronta a alertar o eleitor para que evite que o processo eleitoral de outubro desemboque em algo semelhante. A palavra de ordem era evitar o "salvacionismo" de certos candidatos. Contente e professoral mostrava, enfim, que o BNDES fez o investimento certo.
A cobertura se pretendia uma lição de história. A Argentina foi lembrada como outro exemplo a ser evitado. Lá a oposição também logrou chegar ao poder e deu no que deu. Claro que nada foi dito sobre a subserviência de Fernando de La Rúa aos ditames da banca internacional, contrariando seus discursos de campanha. Naturalmente, o silêncio foi completo sobre o boicote econômico dos EUA à Venezuela nos últimos três anos. Muito menos seu incondicional apoio aos golpistas, à greve patronal incentivada por eles em 2001. Segundo a Folha de S.Paulo da mesma sexta-feira, "a Casa Branca afirmou que seguirá ?monitorando? a greve geral que ocorre atualmente na Venezuela e seus efeitos sobre o preço do petróleo, porém salientou que ainda não tinha detectado ?nenhum impacto? nessa área". O imperialismo já não precisa mais negacear sua ação. Perdemos a capacidade de resistência e de auto-estima.
A Globo mostrou franco-atiradores disparando contra a multidão que protestava. Segundo dados oficiais, foram 10 mortos e 95 feridos. A população correu às ruas após Hugo Chávez, como bem enfatiza Emir Sader em artigo no sítio CartaMaior <www.agenciacartamaior.com.br>, não ter conseguido transformar seu carisma em projeto hegemônico de uma sociedade organizada. Seu erro político foi não ter ido além, consolidando os setores que o apoiavam como sujeitos plenos de direito. No mais, seguiu os preceitos da democracia liberal e não se afastou um milímetro do Estado de Direito. Isso a Globo não mostrou.
No jogo semântico da emissora, como de resto o de toda a imprensa brasileira, quem não reza a cartilha neoliberal, como o presidente venezuelano, pretende ser "messiânico", "salvacionista", e isso leva à perdição. Pobre continente onde o executor de políticas de organizações multilaterais de crédito é chamado de governante sensato, e o estadista verdadeiro de demagogo perigoso. Mas vamos ao discurso festeiro e ordenador de cautelas ao eleitorado da Rede Globo em seus telejornais de sexta-feira.
"Em menos de um ano, entre 98 e 99, venezuelanos e argentinos levaram às urnas seus problemas e expectativas. E se tornaram presas fáceis dos discursos de salvação nacional. Na Argentina, o portador da esperança era político profissional: Fernando de La Rúa apresentou-se como a própria encarnação da mudança. ?Vou protagonizar a grande mudança por que todos esperam. Vou terminar com a corrupção. Vou aplicar uma política de desenvolvimento econômico e social?.
E a mensagem convenceu. De La Rúa foi eleito com 73% dos votos. Mas em vez de progresso, os argentinos experimentaram o caos. O equilíbrio econômico, o fim do desemprego, os cortes nos gastos, o combate à sonegação ? tudo não passou de promessas de campanha. Frustrado, o povo incendiou as ruas dois anos depois. Violência e saques varreram o país. Nem o estado de sítio controlou a fúria dos eleitores traídos. O presidente, acuado, acabou saindo fugido da Casa Rosada.
Na Venezuela, promessas de um governo para acabar com a corrupção, a pobreza e a criminalidade serviram de plataforma para a vitória de Hugo Chávez. ?Há somente duas opções: ou continuísmo e corrupção ou a salvação da Venezuela?, prometia Chávez.
Para fazer suas reformas, Hugo Chávez mudou até a Constituição. Mas os resultados não vieram. Os antigos aliados o acusaram de autoritarismo. A classe média também retirou seu apoio. Os protestos explodiram esta semana. A repressão violenta trouxe ainda mais críticas."
Parece óbvio quem é o alvo da Globo. Que ator político, tal como de La Rúa àquela época, está associado à luta contra a corrupção e ao empenho pelo desenvolvimento econômico e social? Segundo a emissora, tudo não passou de promessa de campanha e o povo incendiou as ruas dois anos depois. O que frustrou as promessas foi exatamente a adesão ao modelo econômico que a Vênus Platinada tanto defende. O não-cumprimento não revela incompetência, mas traição ao próprio discurso eleitoral .Sobre esse ponto, a emissora da família Marinho se cala. E o seu silêncio é significativo. Revela muito do que pode fazer, caso as coisas não saiam como o esperado nas eleições de outubro.
É verdade que Hugo Chávez mudou a Constituição, mas o fez dentro da legalidade e cumprindo promessa de campanha. Bem diferente do presidente brasileiro, que também mudou a carta constitucional para se reeleger com aplausos da emissora ? e do escândalo, devidamente abafado, de deputados vendendo votos. Aliás, adivinhem quem mais se empenhou para que as denúncias fossem abafadas.
O trecho a seguir é "didático", "cívico" e "comovente". Tal como as fábulas encerra uma lição moral.O triste é que é a mesma dos últimos 100 anos.
"Num pedaço do mundo onde a democracia ainda é uma experiência recente, Hugo Chávez e Fernando de La Rúa frustraram milhões de eleitores em seus países com promessas que não poderiam cumprir.
Que sirva de alerta aos brasileiros neste ano de eleição, recomenda o cientista político Fernando Abrúcio, em São Paulo. ?É bom lembrar que é preciso colocar a democracia no lugar do salvacionismo. Mas tem que resolver a questão econômica e social, talvez com mais paciência e menos demagogia. O terreno é fértil para um discurso de salvação fácil. Mas é preciso evitar esse discurso, porque a resposta do salvacionismo não leva a uma melhor situação no Brasil, na Argentina ou na Venezuela?."
Mais explícito, impossível. "Tem que resolver a questão econômica e social, talvez com mais paciência e menos demagogia", recomenda o cientista político ouvido pela Globo. Não é difícil imaginar que após Canudos destruída o discurso das elites, sem tirar nem pôr, tenha sido esse. Mais uma vez é recomendado ao eleitor brasileiro que faça ouvidos moucos ao discurso da oposição e sua pouca paciência com o receituário tradicional das classes dominantes. Mas, como boa professora, a organização monopolística mescla didatismo com uma suposta pitada de humor. Adivinhem quem é o mestre-de-cerimônias travestido de comentarista espirituoso? Aquele que, tal como destacamos em artigo anterior [ver remissão abaixo], foi perfeitamente definido por Jaguar como o "único rebelde a favor": Arnaldo Jabor. Segurando uma banana, ele se deleita:
"Eu ia dizer que a América Latina estava se ?re-bananizando?, com o Hugo Chávez no seu delírio fidelista, com a Colômbia misturando guerrilha e pó, abrindo a Amazônia para ações militares americanas e com a Argentina legitimando o preconceito de que latino não consegue se organizar.
Os norte-americanos não conseguem nos achar sérios e democratas. É mais fácil nos rotular de incompetentes e ditatoriais. Mas ai, hoje, o Chávez caiu. Só que os militares entregaram o governo a um civil democrata. Talvez a América Latina tenha entendido que a idéia de romper com tudo, do autoritarismo machista, só dá em bananada. Temos que nos defender sim da atual arrogância imperial americana. Mas a única maneira será pela democracia radical.
Por isso acho boa noticia a queda do Chávez. Acordamos mais fortes hoje e eu já posso ?des-bananizar? a América Latina. Para termos respeito da América e do mundo temos de ser democráticos. Tendo moral pra dizer não."
Re-bananizando? Autoritarismo machista? A queda de Chávez nos tornou mais fortes? Talvez a Fox tenha nos compreendido melhor do que imaginamos. Simpson ficaria espantado se, no restaurante do hotel em que se hospedou, em Copacabana, visse um comentarista comendo banana em horário nobre. Teria contado até 10 antes de se aventurar pelo calçadão e ser assaltado por macacos saídos de uma favela.
Quer dizer que os militares haviam entregue o governo a um civil democrata? O empresário Pedro Carmona dissolveu o Congresso, destituiu todos os integrantes da Suprema Corte e ganhou mecanismos para dissolver os poderes constituídos em todos os níveis. Talvez disso o "engraçadíssimo" Jabor ainda não soubesse. Mas e depois, como se posicionaria a emissora ao saber das medidas antidemocráticas do novo governo? A resposta talvez esteja no Jornal da Globo. No diálogo entre a apresentadora Ana Paula Padrão e o jornalista William Waack:
? William, Chávez deu muito trabalho aos Estados Unidos. Bush deve estar comemorando, não?
? Ana Paula, as posições do ex-presidente venezuelano de fato irritaram os americanos. Há insistentes comentários de que Chávez gostava de se meter na política dos países vizinhos. E parece que além de apoio político, nada discreto, Chávez teria dado facilidades militares aos guerrilheiros colombianos das Farc, que escaparam de alguns cercos do exército colombiano fugindo pela fronteira da Venezuela.
? William, para o restante da América Latina que significado tem a queda de Chávez?
? Ana Paula, o estilo mandão de Chávez prova que a era do populismo não funciona, e olhe que ele tinha um formidável caixa para distribuir, devido ao fato da Venezuela ser um grande produtor de petróleo. Na verdade, Chávez prova uma lição que o restante da América do Sul aprendeu já há algum tempo: quem trata a democracia como ele tratou, desrespeitando instituições e preferindo mandar com a bota em vez de dialogar, não deve ficar espantado ao ser varrido do poder."
E estamos conversados. Nunca a Globo foi tão explícita. Talvez tenha se superado em relação ao episódio de 1989, quando editou o debate entre Collor e Lula. Mas, quem sabe, a família Marinho atue com tal desenvoltura por ter uma informação tão preciosa como aterradora. Não há que temer a desfaçatez num país onde a capacidade de resistência se transformou em índice de audiência. E como tal somos vendidos.
Em tempo ? Quando este artigo já estava concluído o cenário político venezuelano começou a mudar com velocidade. O empresário golpista renunciou à presidência. Milhares de simpatizantes de Chávez cercaram o palácio presidencial e o vice-presidente, Diosdado Cabello, assumiu o cargo. Os atos de Carmona haviam sido anulados e a ordem institucional, parcialmente restabelecida. Posteriormente, Hugo Chávez, para gáudio dos democratas, reassumiu. A situação comporta uma imprevisibilidade tal que se torna arriscado, no momento em que redigimos esta nota, tecer considerações sobre qualquer desdobramento possível. No entanto, seja qual for o rumo tomado, o artigo permanece atual. São raros os momentos em que vemos uma emissora de televisão, a maior e mais influente do país, comemorar açodadamente um golpe (ou tentativa) de estado. Para os leitores do Observatório ? principalmente os jovens estudantes de Jornalismo ? os trechos transcritos dos dois principais telejornais noturnos da Globo e as considerações feitas acima são por demais pedagógicas. É um instantâneo da ação política de um meio de comunicação. São fatos que se superpõem a qualquer elaboração teórica. E que, independentemente da dinâmica política venezuelana, jamais envelhecerão.
(*) Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio
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