Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O voto e as escolhas da mídia

COBERTURA ELEITORAL

J.S.Faro (*)

Está chegando a hora da verdade para os grupos de mídia brasileiros, especialmente para aqueles que têm veículos de informação entre os vários investimentos que fazem na área da comunicação. E está chegando a hora da verdade por um motivo muito simples: como são grupos que ancoram sua existência empresarial no universo dos negócios financeiros, suas atenções estão mais voltadas para as conseqüências dos resultados da eleição presidencial do que propriamente para a coerência que dizem manter com a objetividade e a isenção de sua cobertura jornalística.

As eleições de Collor e de FHC não permitem qualquer otimismo em relação a isso. Todos se lembram da forma escancarada como jornais, revistas, redes de televisão e de rádio assumiram para si a tarefa de construir a imagem dos candidatos junto ao eleitorado. Fizeram mais que isso: construíram imagens a partir dos pressupostos de suas opções políticas e ideológicas.

Nas três ocasiões (1989, 1994 e 1998), o que se viu foi um verdadeiro exercício de controle social por via da comunicação e o conseqüente colapso de todo o discurso doutrinário da imprensa liberal. Facciosismo, parcialidade, textos direcionados, imagens anguladas de acordo com estereótipos fundados no preconceito, houve de tudo um pouco naquelas eleições, sempre com o objetivo de que fosse eleito não o candidato de mais densa extração social ou com um projeto mais conseqüente para os problemas da sociedade brasileira, mas aquele que, como um príncipe previamente escolhido pelas elites, pudesse dar prosseguimento à construção do Estado neoliberal.

Elites órfãs

Nestas eleições de 2002, a cobertura da mídia tem sido diferente. A julgar pelas matérias veiculadas até as vésperas do primeiro turno (estamos a menos de 15 dias dele), pode-se perceber um tom mais afinado com a promoção do debate em torno de questões fundamentais para o futuro. É possível que, como em nenhum outro momento da nossa história, tantas diretrizes para tantos setores da vida nacional tenham sido postas em discussão da forma como está ocorrendo, o que significa dizer que o padrão da cobertura jornalística melhorou, embora ninguém tenha dúvidas sobre a preferência das grandes empresas de comunicação pelo continuísmo das atuais políticas governamentais. Até a Rede Globo já andou merecendo elogios por conta de algumas entrevistas que fez com os candidatos e pelo tom "contundente" que elas adquiriram em pleno Jornal Nacional, sempre visto pelos críticos, até com algum exagero, como o reduto do que há de mais conservador no jornalismo da TV brasileira.

Quais os motivos dessa mudança? O primeiro deles parece ser o resultado de um impulso que vem da própria sociedade brasileira, isto é, um grau maior de amadurecimento político, especialmente nos grandes centros urbanos, que têm sido o espaço da tragédia social do país.

Nos últimos anos, uma variedade muito grande de movimentos civis contribuiu para que se ampliasse a consciência em torno da necessidade de mudanças, e os jornalistas, por seu papel de profissionais que operam as informações no espaço público da mídia, acabam reproduzindo, com maior ou menor sensibilidade, a gravidade da crise nacional.

O segundo motivo é menos abstrato: as elites que dominam o país, empresários da comunicação incluídos, desta vez ficaram órfãs de um candidato seu pelo qual valesse a pena brigar como nas ocasiões anteriores. Nenhum dos nomes que estão disputando a cadeira de FHC chegou a ganhar a confiança dos setores duros do poder, de tal forma que nem mesmo a Fiesp caminhou unida nas suas preferências. Com tanta variedade de opções, as coberturas da mídia acabaram adquirindo uma certa "imparcialidade", pelo menos até que este ou aquele candidato conseguisse convencer platéias de banqueiros, industriais, comerciantes etc. sobre seus méritos.

Arco do conservadorismo

O último motivo é o mesmismo do discurso dos candidatos. Por razões diversas, inclusive aquelas que dizem respeito às pressões internacionais e à necessidade de dar a elas algum grau de tranqüilidade, todas as candidaturas caminharam para as posições de centro-esquerda, umas de forma mais confortável, outras meio constrangidas. Mas esta é uma eleição de oposicionistas, condição que chega a ser reivindicada até mesmo pelo candidato da situação. E se todos se colocam no cenário eleitoral como reformadores, diluíram-se os perfis de representação social que a mídia sempre procura destacar na simbologia que atrela aos nomes que discrimina ou que valoriza. Até Ciro Gomes, um herdeiro de segmentos da aristrocracia nordestina, já se apresentou como estudante de escola pública, certamente procurando associar a esse fato os valores da humildade que sempre são transformados em cacife eleitoral (quem não se lembra da buchada de bode que FHC foi obrigado a comer para provar que tinha "um pé na cozinha"?).

A definição do quadro eleitoral pode acabar com esse papel mais informativo que a mídia está tendo até agora. Se as possibilidades de Lula ganhar já no primeiro turno aumentarem, é possível que os últimos dias da campanha façam renascer a velha tradição partidária da mídia. Nesse caso, tudo indica que as baterias das coberturas repletas de segundas intenções estarão voltadas contra o PT.

Se as eleições caminharem para o segundo turno, não há como evitar que todo o arco do conservadorismo da vida política faça uma escolha radical pelo nome de sua preferência. Com isso, será inevitável uma perda de qualidade do trabalho da mídia. Dependendo da densidade que a vontade de mudanças adquiriu entre os eleitores, as conseqüências desse processo podem não corresponder às apostas que os meios de comunicação tradicionalmente fazem no Brasil em momentos de aguçamento e de polarização política.

(*) Professor do Departamento de Jornalismo da PUC-SP; texto publicado no sítio da Associação dos Professores da PUC-SP, em <http://www.apropucsp.org.br/>