Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A narrativa como valor-notícia

Imagens ‘exclusivas’ de um telejornal local em Belo Horizonte mostraram recentemente uma emocionante perseguição de moradores de um barracão na periferia da cidade a um lépido escorpião que cruzava os poucos cômodos do precário imóvel. Em outra matéria, não menos curiosa, um texto bem-intencionado, mas de pouco efeito estético-afetivo, falava sobre o velho hábito das pessoas de criarem passarinhos em gaiolas. Um outro exemplo – já se vão alguns anos – que vem à memória foi o do desespero de uma mulher em um pronto-socorro municipal da cidade que, sem conseguir que a filha pequena fosse atendida, arremessou um banquinho contra o vidro do guichê. Os problemas de atendimento eram bem antigos. Lá, a reportagem de emissoras de rádio e TV já haviam estado inúmeras vezes e denunciado. Nota: o desespero da usuária (?) explodiu quando ao hospital chegou uma equipe de reportagem da Globo. Sunguns ligados… banquinho jogado na atendente ao som de muito choro e gritos. Foi a imagem que abriu o Jornal Nacional naquela noite.

Os valores-notícia (news values) sempre se mostraram um critério de análise interessante e eficiente dentro da chamada Teoria do Jornalismo (que ainda encontra não poucos antipatizantes, críticos e descrentes). Aspectos como notoriedade, interesse público, temas de caráter local-prático e imprevisibilidade contribuem para uma melhor compreensão das motivações que levam os jornalistas à inclusão de determinadas pautas em seu veículo. É sintomático, porém, que esta ferramenta esteja cada vez menos dando conta de explicar a opção dos pauteiros por determinados assuntos.

Uma das maneiras de se entender parte do que está acontecendo talvez seja uma reflexão sobre a importância que a narrativa vem ganhando no jornalismo. O que poderia até ser entendido como um bem em si, desde que esta narrativa dissesse respeito a fatos, situações e circunstâncias de efetiva importância jornalística.

Natureza esquiva

Nesse sentido, não creio que seja equivocado, por exemplo, incluir esta praga que se tornou a obrigatoriedade da existência de personagens nas matérias de telejornalismo. Muito já se disse aqui neste OI sobre este assunto. Mas a prática se amplia e já cheira a regra. E muitos dos novos produtores – recém-formados ou com pouco tempo de TV – tendem a achar mesmo que o principal trabalho deles é este: encontrar no real confirmação para as teses que são apresentadas à redação ou as que a própria redação cria e passa a acreditar. Menos mal se isso for visto como checagem. Mas quem vê assim?

Pensar sobre a narrativa como valor-notícia sugere uma inversão nos procedimentos jornalísticos: a proposição textual antecedendo a apuração. Pauta-se a partir do desejo que determinada matéria – ou melhor, história contada – tenha tal impacto ou reação do público ou de organismos institucionais.

A noção de valores-notícia surgiu com o propósito de tentar explicar por que as notícias são como são. Percebeu-se logo que os critérios de noticiabilidade não são rígidos nem universais. Como bem disse Jorge Pedro Souza, são (os critérios) freqüentemente de natureza esquiva, opaca e, por vezes, contraditória’. Isso não impede, no entanto, que possuam uma certa ‘homogeneidade no seio da cultura profissional jornalística transnacional’. É por isso também, entre outros motivos, que o conteúdo dos meios jornalísticos torna-se tendencialmente repetitivo. Entre os critérios mais comumente listados estão o de oportunidade, a proximidade, a importância, o impacto ou conseqüência, interesse, o conflito etc.

Ambiente do recorte

A discussão proposta aqui desloca para o campo da designação (a escritura jornalística) o critério de valoração da notícia. Opta-se por determinado assunto menos pelo valor do conteúdo e seu contexto e mais pela singularidade da narrativa que este pode proporcionar. É a crônica do cotidiano que toma forma de notícia e que é apresentada como tal, pois submetida às próprias técnicas e lógica da estrutura noticiosa. Esta alterada configuração pode ser até vista como nova possibilidade no que diz respeito ao discurso jornalístico. E, de fato, é assim mesmo que se apresenta.

A atenção que se sugere, no entanto, é para o risco de que na medida em que a narrativa torna-se critério valorativo para definição do que será pautado e divulgado, critérios essenciais ao estabelecimento da notícia sejam sistematicamente colocados em segundo plano. Claro que não se fala aqui em total inversão ou desorganização dos valores jornalísticos – o que seria impossível imaginar – mas, de alguma maneira, de como a própria sobrevalorização da narrativa pode acabar por estabelecer, dentro dos media noticiosos, novos paradigmas para a produção noticiosa.

Genro Filho já há muito chamou a atenção para o fato de que a notícia é o ambiente do singular, do recorte. O jornalismo cotidiano, noticioso, não dá conta do particular e do universal. Ou seja, do contexto e do seu esclarecimento estrutural [Genro Filho, Adelmo. O segredo da pirâmide, Porto Alegre: Tché, 1987].

Conteúdo espetacular

O que se aponta neste texto propõe, enfim, que algumas práticas comuns hoje nos meios jornalísticos estão agudizando este processo e levando ao grau máximo esta vocação singular do jornalismo diário. Uma acentuação dentro do que Mauro Wolf [Wolf, Mauro. Teorias da comunicação, Lisboa: Editorial Presença, 1987] chamou de ‘caráter tendencialmente descontextualizante da informação jornalística’ que produziria, segundo ele, uma distorção involuntária na cobertura informativa. Uma distorção que estaria tão intimamente ligada às rotinas produtivas e valores profissionais que se reproduziria em cadeia em todas as fases do trabalho jornalístico.

Para tornarem-se competitivos entre si e tendo pela frente também a concorrência com outras mídias e outros campos de conteúdo como o entretenimento, os veículos informativos têm buscado alternativas para manutenção do interesse pelo noticiário que oferecem ao público. Há mais de 40 anos, o teórico norte-americano Fraser Bond chamava a atenção para o fato de que para o êxito comercial importaria privilegiar histórias relacionadas com os interesses próprios da audiência e também as que envolvessem sexo, crimes, culto do herói e da fama etc. Tudo isso melhor se apimentado com uma narrativa envolvente e sedutora.

A discussão não é inédita nem recente. O que aparece de novidade agora são as opções que o jornalismo, principalmente na mídia eletrônica, tem feito em termos de estratégias discursivas. Reanima-se o velho embate entre linguagem e esclarecimento em um jornalismo que se vê dividido entre o dever da informação precisa e formativa e a necessidade de um conteúdo espetacular expresso por um discurso envolvente e sedutor.

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Professor da PUC-Minas e diretor da PUC-TV