Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Fernando Martins

JORNAL DE NOTÍCIAS

"Esperanças ao vento num ano difícil com guerra marcada", copyright Jornal de Notícias, 29/12/02

"É todos os anos o mesmo: com a euforia festiva já perto do fim, chega-nos uma vontade de prometermos para dentro aquilo que raramente, depois, trazemos cá para fora. E o pior é quando os compromissos saem do anonimato de segurança, embrulhados ou não nos balanços, que podem querer dizer, tão-somente, que pior do que no ano que acaba seria impossível!

É um momento de catarse universal, em que até as más consciências encontram alívio rápido. Bush garantirá, decerto, para desespero de Blair, que não faz mais guerras… depois de arrazados o Iraque e todos os seus (dele) aliados das trevas. Quanto a Durão Barroso, pode apostar que não vende ?mais anéis? (fiquem os dedos!), alienada que está, já, a principal fatia do património nacional, e esgotadas que foram, por Guterres,as promessas da Oposição.

Será, eventualmente, mais difícil prever, neste voltar da página, a postura, dos ?media? portugueses, na sua condição de ?consciência? de uma sociedade que atravessa um momento particularmente difícil da sua história.

Para Álvaro Ribeiro Fernandes, do Porto, é até, pelo contrário, muito fácil adivinhar, por ?anunciado e preparado?, o comportamento dos órgãos de comunicação social nos tempos mais próximos (em que se inclui 2003), vítimas de um espectáculo de verdadeira autofagia, em que acabam ?de alertadores de consciências?, por transformar-se em ?marionetas habilmente operadas por aqueles a quem a verdade é mais incómoda?.

Pede Álvaro Fernandes ao Provedor que convide os leitores do JN a uma pequena reflexão sobre ?o escandaloso tráfico de meninos asilados para uso de uma élite que subiu na vida até à tara mais abjecta?. Para que tentem esquecer o fortuito, o acessório, debruçando-se, apenas, no essencial. Porque os meninos só interessam como vítimas. Porque todos os Bibis não passam também eles de doentes, mas numa escala social que deles faz ?os eunucos de lupanares do nosso tempo, desgraçados e nojentos?, agora esmagados com a ponta do sapato para que todos voltem a cara e, agoniados, não pensem sequer ?nos verdadeiros criminosos, que foram os mandantes e pagantes, e, mais ainda os seus protectores e encobridores?.

Para o leitor do Porto, os jornalistas acabaram 2002 como protagonistas daquilo a que chama um ?espantoso paradoxo?: denunciaram o crime e, seduzidos pela inegável tabloidização do noticiário, deixaram-se seduzir pelo espectáculo e, perseguindo-o, esqueceram o essencial.

Porque tudo começou de forma serena e vigorosa, com a denúncia da pedofilia e da prostituição infantil. Só que a ânsia de protagonismo a alargar a oferta de testemunhos, por um lado, e o estranho aparecimento de documentos que alimentou o ?voyeurismo? e as audiências por outro, depressa arrastaram as reportagens televisivas para os caminhos favoráveis ?àqueles que, ao que parece, continua a interessar que se protejam?.

Os jornalistas terão sido ludibriados pela a oferta, pela fartura: imagens recolhidas pelo estranho médico pediatra, que nada acrescentaram ao caso, e que ninguém sabe como foram desviadas (uma bobine do lote de dezenas à guarda da Judiciária ou do Ministério Público); denúncias, algumas delas com fundamento mais do que duvidoso e desenquadradas do contexto ? enfim toda uma exaltação que, consciente ou inconcientemente, poderá ter servido importantes e duvidosos interesses. Quanto mais não fosse, pelo desvio das atenções.

Ter-se-á atingido um clima gravosamente desviante daquilo que é essencial, com centenas ou milhares de instituições de solidariedade social a temerem ver-se como ?o escândalo que se segue? (o medo); e com a gestação de um movimento de restauração do dignidade e do bom nome da Casa Pia, de inegável justiça, mas de iniludível conveniência para uns quantos (a fuga para a frente).

Teme Álvaro Ribeiro Fernandes que prescrições ?e outros artifícios da máquina judiciária? deixem tudo como estava antes ou ainda pior, com as suspeitas generalizadas de que muitos dos que quiseram ilibar-se perante a opinião pública terão acabado por ser, apenas, os que tiveram influências ou dinheiro para comprar o silêncio ou o desmentido. E afirma que, ?se assim acontecer, os jornalistas serão cúmplices dos violadores dos meninos da Casa Pia, agravando nos portugueses a perigosa sensação de impunidade de que usufruem certas classes em Portugal?.

Não tendo o Provedor uma posição tão pessimista quanto a de Álvaro Fernandes, resta-lhe, no entanto, neste momento em que formular votos acaba por ser, em cada um de nós, uma manifestação de esperança, acreditar que o novo ano traga a cada um de nós, jornalistas, o discernimento para distinguir entre o essencial e o fortuito, entre a informação e o entretenimento, entre o rumor e o facto, entre aquele que um tribunal designou culpado e o cidadão que será simples suspeito, até que uma sentença transitada em julgado lhe determine uma pena.

Mas, mais ainda, que cada ?medium? reencontre, urgentemente, o seu caminho — que o mesmo quer dizer o seu papel numa sociedade em que a promiscuidade crescente exige que se demarque, com clareza, a diferença entre informação e espectáculo, entre notícia e propaganda.

Muitos desafios se perspectivam para o jornalismo, em 2003, um ano que tem, já, na agenda, uma guerra cruel de contornos e de consequências indefiníveis, à qual não vão faltar profetas dos maniqueísmos do nosso tempo ? seja no campo político, em sede das religiões, ou no foro de uma economia que, em alguns casos, vai fazer sangrar mais ainda do que as armas da vingança.

Tenhamos esperança."