Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quando o ‘moderno’ envelhece rápido

SOFTWARE LIVRE

Rafael Evangelista (*)

Uma disputa tecnológica deve chacoalhar o novo governo. Tradicionalmente ligado aos projetos de informática que utilizam software livre (uma licença que permite a livre cópia, alteração e distribuição de programas de computadores), o PT deve decidir agora se leva adiante (ou seja, aos projetos do Executivo) sua predileção pelo conjunto de softwares liderados pelo sistema operacional Linux.

O governo federal gasta milhões de dólares por ano na compra dos programas de computadores que equipam desde os micros das escolas federais até os sitemas e máquinas (servidores e banco de dados) dos ministérios. O orçamento para todo o setor de Tecnologia da Informação chega a 2 bilhões de reais ao ano. O maior vendedor desses programas para o governo brasileiro é a Microsoft (especialmente sistema operacional Windows e o pacote Office), cujo maior acionista, Bill Gates, manifestou o desejo de encontrar-se com o presidente Lula quando este esteve nos EUA. O encontro foi recusado, em parte por pressões internas do partido que, inclusive, é o autor de um projeto de lei em tramitação no Congresso (Projeto de Lei 2.269/99) cujo texto propõe preferência no uso de software livre nas instituições públicas.

Uma pequena amostra dos argumentos de que se utilizam as duas partes em disputa ? empresas de software proprietário de um lado e de outro a comunidade de software livre ? pode ser encontrada em duas entrevistas publicadas no site Baguete (www.baguete.com.br).

Representando o software livre está Marcelo Branco, da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), responsável pela implantação de redes de sistemas livres na instituição de ensino localizada num estado cujo governo adotou o software livre como linha de frente de uma política pública de desenvolvimento da informática. Falando pelo software proprietário está Eduardo Campos de Oliveira, gerente de servidores da Microsoft do Brasil.

Atrás do que parece ser uma simples disputa entre profissionais especializados, que buscam enfatizar a excelência e a adequação de duas tecnologias diferentes e nas quais são especialistas, esconde-se um enfrentamento mais profundo, de dois grupos profissionais que parecem carregar consigo visões de mundo e ideologias diferentes e opostas. Essas diferenças, na verdade, estão na base do debate, muitas vezes inflamado, que já vem acontecendo há algum tempo entre os defensores das duas opções tecnológicas. Entender no que as diferenças se constituem pode ser interessante na hora de decidir qual a opção mais adequada para o país.

Estrutura aberta

Marcelo Branco foi o primeiro a ser entrevistado. As perguntas giraram em torno da experiência de uso de software livre no Rio Grande do Sul e do esforço que a comunidade tem feito para que o governo Lula adote as soluções livres em âmbito federal. Para Branco, o uso de software livre oferece a possibilidade de desenvolvimento de uma tecnologia nacional autônoma. Seria uma oportunidade para que empresas brasileira pudessem entrar no mercado internacional de uma maneira independente. Essa autonomia a que ele se refere parece ser, embora Branco não explicite isso, frente às grandes empresas de software, como a Microsoft. Ele critica um certo modelo de inserção brasileira no mercado (o atual) a que chama "inserção passiva", afirmando que esse tipo de inserção contribui para a exclusão digital na medida que não há domínio completo da tecnologia. Com o software livre, as empresas brasileiras poderiam ser agentes da tecnologia e não apenas consumidores.

A partir dessa posição de Branco é possível dizer que, para ele, o Estado ocupa uma posição planejadora do desenvolvimento e da tecnologia. Cabe ao governo atuar no sentido de que sejam escolhidas as alternativa que possam resultar em mais vantagens para o país. Não é a "mão invisível do mercado" que tomará essa decisão.

Outro ponto forte das afirmações de Branco se refere
à participação da comunidade e da sociedade.
Para ele, um projeto para informática, como o executado no
Rio Grande do Sul, pertence à comunidade e não ao
Estado; e, por isso, não poderá ser interrompido pelo
novo governo local. A sociedade gaúcha teria abraçado
as iniciativas livres e, mesmo que o governo do estado pare de incentivá-las,
elas prosseguiriam com outros agentes. Os custos também pesariam
nessa decisão, já que uma mudança de direção
significaria novos gastos em licenças para o poder público.

O referencial externo de Branco é principalmente europeu. Ele vê sintonia entre as iniciativas do Rio Grande do Sul e as preocupações da comunidade européia em buscar mais autonomia e independência tecnológica, além de menores custos. Dada a estrutura aberta do software livre, cujo código de programação é franqueado para estudo, Branco afirma que as empresas brasileiras estão atualizadas em relação a essa tecnologia.

Apropriação indébita

De outro lado, a entrevista de Eduardo Campos de Oliveira, da Microsoft, é muito mais crítica ao software livre do que a de Branco foi ao modelo proprietário. Em parte, isso se deve ao fato de que foi Oliveira que procurou os jornalistas, no intuito de contra-argumentar com Branco. Além disso, é preciso notar que a possibilidade de uma possível perda de mercado para as soluções livres tem colocado os defensores do software proprietário em uma posição mais agressiva.

Apesar de Branco não ter defendido a adoção de leis que instituam a preferência pelo software livre, Oliveira critica veementemente esse tipo de idéia. Para ele, essas leis seriam uma reedição da reserva de mercado que vigorou no Brasil até os anos 80. Ele associa, então, a reserva de mercado ao passado e ao atraso tecnológico. A argumentação é muito semelhante àquela em moda no início dos anos 90, quando pregava-se a liberalização econômica como necessária para que as empresas brasileiras se tornassem mais competitivas. Ao comparar as duas regulamentações ? a reserva de mercado e a preferência pelo software livre ?, Oliveira procura desqualificar a defesa que Branco fez de uma autonomia tecnológica das empresas brasileiras, criticando também os subsídios que foram oferecidos nos anos 80.

Mas o centro da argumentação de Oliveira baseia-se na lógica econômica. Utilizando-se de diversos dados financeiros e estatísticos, ele consegue agragar à sua fala uma aparência de realidade, no sentido de um prática cotidiana atualizada com o mercado. O cerne de sua crítica econômica reside no fato de que o software livre, ao autorizar livremente a cópia de programas, não recolhe impostos. Segundo ele, o modelo livre acaba estabelecendo uma quebra na "cadeia de valor" econômica. A essa observação é somada a exposição de números que mostram os empregos diretos e indiretos gerados pela Microsoft e os valores movimentados pela empresa.

Oliveira tenta também mostrar que o software livre, ao contrário do que poderia parecer em um primeiro momento, é mais caro do que o software proprietário. Mas essa afirmação se contradiz com a idéia que ele mesmo expressara anteriormente, de que o software livre quebra a cadeia econômica de valor. Se os sistemas livres acabam sendo mais caros, conforme afirma Oliveira, então não haveria a quebra da cadeia de valor mas, sim, a instituição de uma cadeia diferente na qual o capital não é investido no produto software, mas nos serviços de manutenção que se tornam necessários. A conclusão a que ele não chega é que o dinheiro deixaria de ir para o dono do software e passaria a ser pago para aqueles que são responsáveis pela manutenção e adaptação dos sistemas.

Perguntado pelo entrevistador sobre sua visão do software livre, Oliveira faz uma crítica disfarçada de elogio. Afirma:


"A vantagem que mais admiro é [para] a comunidade, apenas deixando claro que nem todo mundo tem boas intenções e vai criar programas e patches seguros de graça…"


Mais do que um elogio, a frase é um ataque a um dos pilares ideológicos da comunidade livre, o trabalho cooperativo. Procurando minar essa idéia, ele ainda cita a participação de grandes empresas como a IBM e a Oracle em projetos de código aberto como um sinal de que o trabalho cooperativo dos programadores poderia ser apropriado indevidamente por alguns setores. Empresas desse porte não ofereceriam nada "grátis" nem "aberto". Oliveira tenta usar a imagem negativa de parte da comunidade livre das grandes empresas contra a própria comunidade.

Posto de observação

Uma das idéias que sustenta o software livre baseia-se no pressuposto de que o trabalho em informática é basicamente cooperativo. Muito dificilmente um programador, ou mesmo uma equipe de programadores, seria capaz de criar sozinha, a partir do zero, todos os códigos necessários para o funcionamento de um software. No trabalho, sempre haveria, em alguma medida, o reaproveitamento, a reutilização do trabalho alheio. Assim, a detenção do direito autoral sobre determinados programas não se justificaria, já que o trabalho é eminentemente coletivo. Além disso, imagina-se que, quanto maior for compartilhamento dos códigos de um programa, melhor este será, já que haverá um grande número de possoas trabalhando colaborativamente.

Oliveira coloca a liberdade de cópia como um dos maiores entraves das soluções livres. Por causa dessa liberdade, não haveria estímulo para o desenvolvimento, pois os investidores não financiariam um produto sobre o qual não poderiam cobrar. Ele defende as leis de propriedade intelectual, que foram bastante enrigecidas em meados da década de 90, como promotoras do "fantástico desenvolvimento da indústria de tecnologia". Ao fazer essa defesa, acaba dando a impressão, de maneira indireta, de que a comunidade livre defende a cópia ilegal, indevida. Ao contrário, o que a comunidade pretende é a instituição de um novo modelo de proteção, a licença GPL (General Public License), por meio da qual o desenvolvedor coloca o seu trabalho à disposição do público sem restrições, apenas garantindo a manutenção da autoria e dos princípios de utilização da licença (liberdade de cópia, compartilhamento e utilização). Ninguém é mais antipirataria do que a comunidade do software livre, que desenvolveu um sistema operacional próprio, o GNU/Linux, para, entre outros motivos, deixar de usar sistemas proprietários como o Windows.

A palavra "liberdade" talvez seja um dos maiores focos de tensão entre os defensores do software livre e do software proprietário. Ambos os grupos afirmam defender a liberdade. Entretanto, enquanto o primeiro a busca em sua atividade cotidana de desenvolvimento e também para o usuário, o segundo enfatiza a "liberdade de escolha" que as administrações públicas deveriam ter para escolher seus softwares, criticando as leis que instituem a preferência legal por determinadas tecnologias.

Entre os grupos, a interpretação sobre o que é e qual deve ser a liberdade é bastante diferente. Os "proprietários" defendem a liberdade do neoliberalismo, ou seja, aquela em que o Estado deve interferir o mínimo no comércio dos produtos, a não ser que seja para defender os direitos de propriedade (direitos autorais). Os "livres" postulam uma liberdade quase anárquica (o que está muito longe do sentido de bagunça). Talvez nessa aversão às leis possa ser entendida a relutância manifestada por Marcelo Branco em defender uma legislação que institua a preferência pelos sistemas livres.

Os defensores do software livre e do software proprietário filiam-se a grupos ideologicamente distintos. Como toda filiação, ela não é direta, homogênea, unívoca e aceita por todos ? é muitas vezes rechaçada por membros importantes e cheia de contradições. Mas é impossível deixar de notar a afinidade entre o ideário neoliberal, que parece ter vivido seu apogeu nos anos 90, e o grupo dos "proprietários"; do mesmo modo como é clara a afinidade entre os "livres" e o novo ideário expresso nas manifestações antiglobalização, cujos grandes exemplos são Seattle, Gênova e o Fórum Social Mundial. Portanto, faz sentido a presença de Richard Stallman, um dos gurus do software livre, no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e a assiduidade de Bill Gates, em Davos.

Com estrutura que favorece as grandes corporações e os investimentos financeiros, com sua defesa de um desenvolvimento tecnocientífico voraz e acelerado, que sucateia rapidamente os produtos criados, o esquema proprietário se encaixa perfeitamente no modelo de desenvolvimento pretendido pelo neoliberalismo. Alguns sociólogos têm apontado como uma das características da tecnociência, ligada à atual fase do capitalismo, essa aceleração desenfreada. Ao mesmo tempo, a impressão de realismo (daquele que conhece o cotidiano do mercado), dada pelo discurso de Oliveira, é similar à que funciona quando a imprensa classifica toda manifestação neoliberal como "realista" enquanto rotula as falas dissonantes como "utópicas" e "ingênuas".

Recentemente o historiador inglês Eric Hobsbawm disse que a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi uma resposta do país ao mercado e ao neoliberalismo representado pelo Consenso de Washington. Um dos lugares para se observar se esse é um capítulo que se encerra na história brasileira será revelado pelos debates em torno da opção tecnológica a ser feita. A conferir.

(*) Editor do sítio ComCiência <www.comciencia.br>