GOVERNO LULA
Em ano eleitoral, Lula dá agrado às TVs, 9/06/06
‘Rápido flashback. Há dois anos, o governo Lula ameaçou comprar uma briga feia com as emissoras de TV brasileiras e as distribuidoras de cinema norte-americanas com o projeto da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual). Entre outras coisas, a proposta previa a taxação em 4% da publicidade feita na TV para o financiamento de filmes e a fiscalização do mercado pela agência. Com sua eficiência habitual, as Organizações Globo lideraram uma campanha contra o projeto, convenceram parte dos formadores de opinião de que se tratava de uma proposta ‘stalinista’ e conseguiram enterrar a Ancinav.
Havia erros e acertos no projeto. Mas a regulamentação do setor era – e cada vez mais é – absolutamente necessária. Um exemplo para comprovar essa idéia: estima-se que o mercado de DVD no Brasil hoje seja três vezes maior que o de cinema; mas, como não há nenhum controle sobre os números de vendas, abre-se uma avenida para a sonegação de impostos.
Corta para o presente. Em ano eleitoral, o presidente Lula e o ministro Gilberto Gil encaminharam ontem ao Congresso um projeto de lei do Ministério da Cultura com agrados tanto para as redes de televisão quanto para as distribuidoras de cinema. Além de ampliar e prorrogar até 2010 a Lei do Audiovisual (que, em essência, concede descontos no imposto de renda para empresas que investirem em filmes), o projeto estende o benefício da renúncia fiscal para as emissoras de televisão (o que já estava previsto no projeto da Ancinav).
Segundo a ‘Folha de S. Paulo’, funciona assim: o governo abre mão de receber parte do imposto de renda devido pelas emissoras para que elas invistam o dinheiro na co-produção de conteúdo audiovisual – pode ser telefilme, minissérie, documentário, longa-metragem; só não vale novela (mas aí já seria provocação). O Ministério da Cultura estima que o valor total da renúncia será de cerca de R$ 40 milhões ao ano.
Da proposta original da Ancinav, o governo recuperou os pontos que haviam agradado aos poderosos do setor e esqueceu aqueles que os incomodavam. O secretário do audiovisual do Minc, Orlando Senna, definiu o projeto de lei (com alguma ponta de cinismo?) como um ‘pacote de bondades’. Repete-se, assim, no audiovisual a sina de outras áreas do governo Lula: despertar a esperança de grandes mudanças e frustrar essa expectativa com a manutenção (ou o aprofundamento) do ‘status quo’. Para as emissoras de TV, esse projeto de lei poderá significar o equivalente aos juros altos para os banqueiros.
Na prática, o projeto estende à televisão um modelo de produção de cinema – baseado na transferência de poder da esfera pública para a iniciativa privada – que tem resultados no mínimo questionáveis – e que deve ser prorrogado, sem grandes modificações, por mais quatro anos. ‘É de fato curioso perceber que o governo atual demorou três anos e meio para decidir que o melhor a fazer é repetir todos os passos do antecessor’, escreve o colega de crítica Daniel Caetano na revista eletrônica Contracampo, em uma nota chamada ironicamente de ‘Não se mexe em time que está ganhando!’.
Que fique bem claro: nada contra o apoio público à produção audiovisual. Ele é sempre necessário para o cinema e, em alguns casos, também para a TV. Apenas em três ou quatro países do mundo foi possível criar uma indústria cinematográfica sem algum tipo de financiamento do governo. E a idéia de um casamento entre cinema e TV, como ocorre na Inglaterra e na França, é sempre bem-vinda. Mas, se há dinheiro público envolvido, é preciso haver também algum tipo de controle público – sem que alguns saiam por aí denunciando censura. Deixar essa questão nas mãos do mercado é pedir para o macaco vigiar o cacho de bananas.
O projeto de lei que prevê renúncia fiscal para a televisão levanta algumas questões preocupantes. Será possível conseguir abatimento de imposto para produzir programas popularescos? Se dinheiro público patrocina desde ‘O guarani’, de Norma Benguell, até o Cirque du Soleil, o que garante que não irá financiar um ‘Zorra total’ ou um ‘Ídolos’? Se um programa de TV recebe dinheiro de renúncia fiscal, a emissora pode também vender anúncios para os intervalos comerciais – e, assim, ganhar dinheiro duas vezes, do governo e dos anunciantes? A próxima pergunta foi levantada por Paulo Betti na ‘Folha’: ‘Com essa concorrência das TVs, que tem mais espectadores, quem vai querer colocar dinheiro no cinema?’
Por fim, a questão que considero mais importante. Não seria melhor aplicar esse dinheiro da renúncia em emissoras públicas como a Cultura e a TVE, que estão sendo sucateadas por falta de grana? Não faz mais sentido investir diretamente em uma programação de qualidade (para ficar em um exemplo, o ‘Castelo Rá-tim-bum’) do que lavar as mãos e deixar a decisão para o mercado? Espero que o governo tenha boas respostas para essas perguntas. Mas acho pouco provável.’
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