NAZISMO REDIVIVO
Alberto Dines
[Publicado originalmente no Jornal do Brasil, 1/2/03]
Edmar Freitas, 18 anos, era um jovem normal, ensino médio completo, bom aluno, calmo, retraído e educado. Não fumava, bebia ou consumia drogas. Nasceu e cresceu em Taiúva, pacata cidade de 5 mil habitantes perto de Ribeirão Preto, na região da chamada Califórnia brasileira, a 363 quilômetros de São Paulo. Pai, lavrador, tudo fazia pelo filho único, obeso, que detestava o apelido "gordo": seguiu um regime e emagreceu 30 quilos. Segundo a diretora da escola, "ficou muito bonito".
Na tarde da segunda-feira, Edmar Freitas invadiu a escola e, armado com um revólver calibre 38, fez 15 disparos: feriu seis alunos ? dois em estado grave ? uma professora e o caseiro da escola. Depois matou-se com um tiro na cabeça. No bolso outras 89 balas. Em casa, outro revolver, este calibre 22.
Tragédia não muito diferente das outras chacinas escolares nos EUA e Alemanha se colegas e policiais não tivessem revelado um dado crucial: Edmar era admirador de Hitler e tinha em seu poder diversas publicações nazistas. Foi o que a polícia disse aos jornais.
Hitler em Taiúva não é apenas insólito. É aterrador, sobretudo se lembrarmos que o atentado ocorreu no dia 27 de janeiro e, três dias depois, na última quinta-feira, transcorria o 60? aniversário da ascensão de Hitler ao poder. Edmar Freitas, certamente, desconhecia a efeméride (que aliás passou em brancas nuvens), mas ele descende em linha reta dos protagonistas de uma das maiores tragédias já registradas na história da humanidade.
Adolf Hitler não aconteceu por acaso, não caiu do céu nem saiu das profundezas do inferno, não disparou um tiro para abancar-se como chanceler do Reich alemão. Carreira política fulminante: em 13 anos o desconhecido agitador anticomunista tornou-se um dos homens fortes da política mundial. Um sem-biografia galvanizou um dos países mais adiantados do mundo justamente porque nada tinha a ostentar, a não ser o rancor.
Uma história de sucesso que seus marqueteiros chamaram de "triunfo da vontade". Em quatro anos, os camisa-marrom atraíram 13 milhões de votos dos eleitores da classe média, conservadores e centristas. Um ano antes, nas eleições presidenciais, o marechal Hindenburg, de 85 anos, derrotou o "cabo da Bavária" de 43. Mas em janeiro de 1933, ajudado pelo chanceler von Papen e convencido pelo banqueiro Schroeder, entregou o poder de mão beijada ao fenômeno Hitler.
Para desarmar os espíritos, os nazistas ficaram apenas com duas das onze pastas ministeriais. Aos jornalistas americanos e ingleses o novo chanceler assegurou que era um democrata, nos comunicados garantia que seria o único capaz de respeitar a Constituição. O terror começou imediatamente: 10 dias depois de empossado, Fuhrer declarava guerra aberta à democracia parlamentar.
Na incrível ascensão de Hitler costuma-se passar ao largo de um evento concomitante: o fim da República de Weimar. Hitler subiu e Weimar acabou. Símbolo de uma nova Alemanha, seis meses depois da derrota na 1? Guerra Mundial, criou-se na cidade natal de Goethe a primeira república germânica. Localização e nome evocavam um compromisso com a cultura, rompimento com o belicismo prussiano, promessa de mudanças.
Apesar da agitação política, da inflação, do pagamento das reparações de guerra, em menos de 15 anos Weimar fez um extraordinário percurso da utopia ao desastre. Parte do que hoje conhecemos como "modernidade" é fruto de Weimar, fora de Weimar.
Graças a Hitler. O nazismo produziu um dos maiores êxodos da história da humanidade e na bagagem dos fugitivos estava a quimera em homenagem a Goethe. No exílio inglês e americano os egressos de Weimar escreveram os livros, realizaram os filmes, desenharam as formas, desenvolveram as ciências e geraram as idéias que o ditador não queria ao seu lado.
Hitler durou menos do que Weimar. No entanto, 60 anos depois, Hitler reaparece em Taiúva com o mesmo dedo no mesmo gatilho. Edmar Freitas não comprou as revistas nazistas na banca da esquina, não achou-as no lixo. Na biblioteca da escola pública certamente não existem obras de louvação ao nazismo, jornais e rádios da região não veiculam tais loucuras, muito menos jornais e revistas nacionais. Dificilmente algum filme filonazista apareceria na TV ? seria crime.
Edmar, parece, queria vingar-se dos colegas que riam das suas banhas e captou Hitler em algum lugar da sua insanidade. Em Taiúva, entre laranjais e canaviais, a máquina de propaganda do dr. Goebbels ressuscitou um fantasma. Decorridas duas gerações, o veneno do nazismo ainda está ativo e a memória ? único antídoto ? desativada. Hitler, 60 anos depois, é um perigo.