A GUERRA NA TV
Paulo José Cunha (*)
Oba! Ainda bem que está vindo uma guerra aí, pra quebrar a sensaboria da programação. Nada como um choque de realidade para arejar a modorra da ficção seriada das novelas, a mesmice das duplas sertanejas, a choradeira dos atores e atrizes nos faustões e gugus, as conversinhas insossas dos big brothers, os bordões surrados dos humorísticos, as surpresas ? tão previsíveis ? das pegadinhas e a monotonia das programações elaboradas de acordo com as expectativas do público testadas por grupos focais.
Agora, não: vem sangue novo. Ah, vem. Literalmente. Sangue fresco, quente. Tão real e emocionante que dá pra sentir o cheiro. Se tudo correr bem e Deus ajudar teremos não apenas sangue novo, mas tudo o que acompanha uma boa guerra: esposas desoladas, filhos cabisbaixos, soldados em lágrimas, corpos desembarcando de aviões em assépticos sacos plásticos pretos, toques de cornetas, salvas de tiros, bênçãos, uniformes impecáveis e passos de ordem unida em volta de caixões cobertos por bandeiras. E lágrimas. Daqui pra frente tudo vai ser diferente, como diria o rei Roberto. Você vai ver. Com uma guerra, a vida diante da tevê se torna muito mais emocionante, concorda? O Bush, doido pra elevar a audiência dele, acha que sim.
Finalmente, vamos ter imprevistos, ação, emoção, aventura, heroísmo, drama, tragédia, horror, morte. Blood, sweet and tears, baby. Içaaa! Ânimo novo para repórteres e editores, situações criativas, material farto e inédito para telespectadores ansiosos. Só isso justifica toda a euforia e a excitação que já contamina as redações, antes mesmo da explosão da primeira bomba. E depois que começa… Ah, depois que começa é só o prazer luxuoso de acompanhar o espetáculo de local privilegiado, poltrona macia, televisor de 38 polegadas, pipocas, queijos, uisquinho twelve years old.
Ah, uma guerra. Enfim! E esta chega tarde, é bom que se diga (numa hora dessas não aparece ninguém pra pedir desculpas pelo atraso).
Ainda não tenho programa para esta guerra. O Millôr contou outro dia que em 91 reuniu os amigos em seu estúdio pra assistir à abertura da guerra do Golfo. Enquanto as primeiras bombas desabavam sobre Bagdá, os convivas acompanhavam a insensatez humana narrada por Bernard Shaw enquanto degustavam pequenos goles de um rouge de Málaga tirando gosto com queijos suíços. Para esta, Millôr reservou um Brunelo de Montalcino. Não me dei a tal requinte. O máximo a que me concedi em 91 foi pedir aos donos do meu boteco que instalassem um televisorzinho para não perdermos a estréia da guerra. Ainda nos esfalfávamos para reduzir os estoques mundiais de armas químicas escocesas quando alguém gritou: "Começou, gente, vem ver!" Foi até legal, no início. Mas logo enchemos o saco com a repetição daqueles luzinhas esverdeadas cortando o céu de Bagdá. Voltamos às armas químicas. Curioso é que ninguém perguntou se morreu algu&eaeacute;m. Não nos pareceu necessário tocar num detalhe insignificante desses. Mas valeu pela novidade da batalha eletrônica. Parecia vídeo-game. Desconfio que era mesmo.
Melhor ver o soldado Ryan
Já a guerra do Afeganistão não teve, assim, um começo bem definido, porque os caras já vinham esburacando aquilo lá há algum tempo pra ver se acertavam a cabeça do Bin Laden. Ruins de pontaria, de vez em quando acertavam era nos soldados deles mesmos ou no pessoal da Cruz Vermelha. E foi só. Além do mais, convenhamos, foi uma guerra muito da sem graça. Só um lado atirava, e a gente não conseguia sequer saber em quê nem em quem, porque, a confiar nas imagens, não havia nada lá em baixo, só deserto. E os barbudos da Al Qaeda se esconderam nas cavernas. Até hoje a gente continua sem saber se alguém morreu. Parece que não. A não ser uns tais de "objetivos". Todo dia saía na tevê que os americanos tinham acertado um.
Estou aceitando sugestões sobre o que fazer para assistir à abertura dessa guerra que vem aí. O diabo é que o Gabriel Priolli, em belo artigo na Época, já avisou que nossas redes de televisão, todas com a faca no pé da goela, não têm grana pra mandar correspondentes. Significa que vamos comer de novo o prato feito pela CNN. A menos que a gente acompanhe pela BBC. Ou então por alguma emissora daqui que aproveite a transmissão da BBC, que fez contrato com a al-Jazeera (aquela redinha de tevê do Catar que botou um prego no sapato do Bush durante o bombardeio do Afeganistão). Além disso, Robert Fisk, em artigo para o Independent, já mandou dizer que não se deve esperar muito da cobertura dessa guerra, pois os repórteres de toda parte já estão se "ajustando" aos generais americanos para fazer uma cobertura, digamos, "apropriada". Eqüidistância jornalística? Nem falar. Independência? Tás brincando.
Já que é assim, esqueça a minha euforia das primeiras linhas. Merda de guerra. Aliás, já não se fazem guerras como antigamente. E a gente aqui, numa secura danada, confiando que, enfim!, ia acontecer alguma coisa na tevê e não vai acontecer mesmo é coisa alguma, só aquelas luzinhas verdes. Ainda se fosse em cores… Então, o melhor é garantir logo na locadora o DVD de O Resgate do Soldado Ryan pra não correr o risco de assistir dublado na Globo. Soldado americano falando português é dose. Não sei não, mas tô achando que o Ryan vai ser mais legal. Pelo menos mais real do que a guerra, com certeza vai ser. No Ryan pelo menos morre gente. Na guerra da tevê não morre ninguém, não é mesmo? Coisa mais sem graça.
(*) Jornalista, pesquisador, professor da professor da Faculdade de Comunicação da UnB. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>