Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Otavio Frias Filho

GOVERNO LULA

“Sopa no mel”, copyright Folha de S.Paulo, 30/1/03

“Quando o governo Fernando Henrique reclamava que, sem as reformas previdenciária e fiscal, o Estado brasileiro continuaria quebrado e a produção econômica manietada, estava a serviço do pérfido neoliberalismo. Quando o governo Lula diz e faz a mesma coisa, está dando os passos iniciais para mudar o modelo que herdou e que não pode descartar da noite para o dia.

Quando o governo anterior mantinha a taxa de juros nos níveis mais elevados do planeta, estava a serviço dos bancos e da agiotagem internacional. Quando o novo governo eleva ainda mais os juros básicos da economia, está eliminando a desconfiança que restava nos mercados e dando provas de condução responsável da economia.

Quando o antigo governo usava todo o poder da máquina para debelar resistências no Congresso, estava praticando política fisiológica para se perpetuar no poder. Quando o governo instalado faz a mesmíssima coisa, está mostrando competência e habilidade políticas. Por maiores que sejam a credulidade popular e a hipnose publicitária, tudo tem limites: cedo ou tarde a máscara cai.

Quantas eleições mais serão necessárias até ficar claro que compromissos de campanha são promessas ao léu? Quando será matizado -já que erradicar parece impossível- esse sebastianismo nacional que, de tempos em tempos (Tancredo, Collor, Lula), gera a alucinação coletiva de mudar ?tudo o que está aí?? Ilusão nada inofensiva, pois logo se converte em frustração raivosa e busca do próximo salvador.

No caso presente, o entusiasmo acrítico tem raízes robustas. Tendo chegado pela primeira vez ao poder, depois de tantas perseguições e ostracismos, a esquerda reluta em abandonar suas fantasias. Precisa acreditar no caráter ?progressista?, ?transformador? do novo governo. Os atrativos do poder e a longa prática do ?duplipensar? (tal como Orwell chamou o raciocínio dos primeiros parágrafos acima) ajudam.

A direita, por sua vez, tem toda razão para estar sem medo de ser feliz. O resultado das urnas saiu melhor do que a encomenda: em vez de um presidente autocrata e problemático, cheio de idéias próprias, sobreveio um governo que mantém as linhas de força do malanismo no essencial, dando-lhe porém nova legitimidade, novo fôlego, novas aparências e símbolos.

Não há surpresa no apoio da mídia televisiva, que é o que conta em termos de massas, ao governo do PT. Por sua natureza como veículo, a televisão apóia qualquer governo, sobretudo se for popular, mais ainda se não agride o andamento dos negócios. A maioria dos profissionais que atua nos ?aparelhos ideológicos do Estado? tem extração petista: sopa no mel do consenso.

A latitude decisória dos governos, sempre restrita, é mais exígua do que nunca. A transição continua e deverá prosseguir por vários anos. Se isso é bom ou ruim, depende de juízo de valor de cada um. Mas quando surgir a palavra de ordem ?Fora Lula?, democraticamente empregada contra FHC, não tenha dúvida: é golpe!”

“Governo omite custos de caravana”, copyright Folha de S.Paulo, 1/2/03

“Passadas três semanas da viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao semi-árido com seus ministros, o governo se recusa a fornecer informações sobre os custos da viagem. O grupo esteve em Teresina (PI), Recife (PE) e Itinga (MG). Após insistentes pedidos da Folha, desde o dia da viagem, a posição oficial do Planalto continua sendo a mesma fornecida pelo porta-voz, André Singer, em 17 de janeiro: informações sobre o custo de viagens serão divulgados apenas depois de concluído um levantamento sobre as viagens presidenciais dos últimos dez anos.

?Não há nenhuma recusa em fornecer informações. A informação que eu tenho é a de que esses custos serão levantados. No que diz respeito à orientação geral com relação a viagens, o presidente me pediu que transmitisse que ele solicitou um estudo da média de gastos com as viagens presidenciais da última década?, disse Singer, na ocasião.

?À luz dessa informação, ele quer adequar os seus gastos àquilo que estiver dentro desse parâmetro?, completou.

A assessoria de imprensa do Planalto informou ontem que ainda não poderia fornecer o custo e que a resposta do porta-voz ainda era válida. Não há prazo para a conclusão do estudo.

Por meio de assessores, o presidente se declara preocupado em reduzir os custos de viagens. Por essa razão, optou por viajar em avião comercial de São Paulo para Paris. No entanto, não foi divulgado quanto seria economizado dessa forma. Lula voltou de Paris em no Boeing-707 da FAB (Força Aérea Brasileira) apelidado de ?sucatão?, que havia levado assessores. A opção fez com que fosse enviado à Europa às pressas o Boeing-737, o ?sucatinha?.

O Planalto não divulgou o custo adicional da viagem, lembrando que isso dependeria da conclusão do estudo sobre as viagens da última década. A Aeronáutica disse que não poderia informar o custo da hora-vôo do Boeing reserva, por uma questão de ?centralização e hierarquia?. A recusa em fornecer informações sobre os custos das viagens presidenciais contraria a promessa de transparência do governo e fere as regras estabelecidas pela Presidência para todo o Executivo.

As três primeiras diretrizes da carta aberta assinada pelo secretário de Imprensa do Planalto, Ricardo Kotscho, são: 1) a informação é um bem público, não é propriedade do governo; 2) a informação é um direito, não um favor; 3) a informação é um requisito básico para o exercício de outros direitos, como os de escolher, julgar, optar e participar. A cartilha proíbe ainda assessores de ?tergiversar? (procurar rodeios, evasivas ou usar subterfúgios).”

 

CRÍTICA DIÁRIA

“Corações e mentes”, copyright Folha de S.Paulo, 29/1/03

“George W. Bush encenou sua peça com cuidado e dedicação. Fez diversos ensaios do discurso, no pequeno teatro da Casa Branca.

Na platéia de ensaio estavam seu ?diretor de comunicações? e seu dramaturgo -o chefe dos escritores de discursos. Em fotos dos ensaios reproduzidas por canais como Fox News, via-se Bush buscando gestos e testando falas, em mangas de camisa, dramático.

Antes da apresentação, à meia-noite de ontem, ele ainda se encontrou reservadamente com aqueles que comentariam depois o espetáculo, no ar: seus críticos teatrais, os âncoras das grandes redes.

Começou por eles, pela mídia, o esforço de ganhar o que Bush chamou de ?corações e mentes de meus concidadãos? -só os americanos.

Com a queda da aprovação de Bush pelos ?corações e mentes? dos Estados Unidos, constatada em pesquisas feitas nas últimas semanas, é lá que vai se decidir a guerra. É lá que está a última esperança.

Nos vários trechos do discurso distribuídos pela Casa Branca, o presidente primeiro apela ao bolso dos cidadãos.

Não comete o erro de seu pai, que perdeu a reeleição depois de vencer a guerra contra o mesmo Iraque. (Foi a campanha que deixou na história o mote ?é a economia, estúpido?.)

No discurso, Bush começa pelo fortalecimento da economia e pela promessa de empregos e empregos e empregos. E saúde pública, remédios grátis, até proteção ambiental.

Só na segunda metade entra a guerra. Uma guerra, é claro, contra os ?homens do mal?, ?evil men?.

Bush não capturou Osama bin Laden ?vivo ou morto?, como prometeu, mas é ainda aquela ?guerra contra o terror? que sustenta sua sede.

Uma sede que, na peça dele, se mascara de ?compaixão? da nação ?honrada no uso de sua força?, da nação que até mesmo se ?sacrifica pela liberdade de estranhos?.

Esse drama autoelogioso cai bem, por lá.

O resto importa pouco.

Lula pode bradar contra as ?loucuras? da nação americana e Míriam Leitão pode se debater contra ?a guerra do senhor Bush? feita para a ?indústria bélica americana?.

Os ?Corações e mentes? daqui não são pesquisados.”

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“Sai CNN, entra Fox”, copyright Folha de S.Paulo, 30/1/03

“A Fox News, canal de notícias ultraconservador que superou a CNN em audiência nos EUA, chega ao Brasil no momento em que deve tomar de vez o lugar da concorrente -com a guerra.

Quanto à CNN, após ter sido engolida pela AOL Time Warner, perdeu de vez seu fundador. O liberal Ted Turner, que já não tinha muita voz no canal, deixou a corporação. A notícia saiu na Fox News.

Quem questionou a cobertura da última guerra do Golfo como muito pró-americana não perde por esperar.

O discurso sobre o ?estado da nação? ou o ?estado do mundo?, na ironia de um republicano na Fox News, mostrou um George W. Bush contido ao falar da economia e apaixonado ao falar da guerra.

Se ainda havia, não sobra dúvida de que o presidente deseja e fará tudo por ela. Para o comentarista da CNN, ?pode não ter sido uma declaração formal de guerra, mas chegou muito, muito perto disso?.

Pelas pesquisas, ele já seduziu os ?concidadãos?.

E foi só o início do que a CNN chamou de ?agressiva campanha de lobby?, que prosseguiu com novo discurso e a visita dos secretários de Estado e de Defesa ao Congresso americano. É lá que está o resto de resistência, nos parlamentares.

A ?agressiva campanha de lobby? também vai para cima da ONU, com questionamentos como o de ontem, feito pelo próprio presidente:

– Eu quero que a ONU seja mais do que uma sociedade de debates vazios.

É lá que será dada, na semana que vem, a maior cartada: a apresentação das supostas provas levantadas pela CIA contra o Iraque.

A cobertura especulou que seriam gravações e ?fotos de satélite?, mas logo veio o secretário de Defesa, na Fox News, dizer que não é bem assim, que ?as pessoas querem fotos? mas nem sempre é possível:

– Às vezes, o governo tem que agir antes do fato.

Quer dizer, sem provas.

Sem mais a fazer, o Brasil se prepara para a guerra. Antonio Palocci, na Globo:

– Estamos preparando uma ação no campo econômico para suportar o choque. Vamos fazer um superávit que torne nossa vida sustentável.

Míriam Leitão traduziu como ?mais restrição?.”

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“Torcida adversária”, copyright Folha de S.Paulo, 31/1/03

“Raras vezes um programa de governo foi recebido sob tal vaia da opinião pública como o Fome Zero.

Só ontem, falavam mal dele na Globo a coordenadora da Pastoral da Criança, Zilda Arns, e Eduardo Suplicy.

Fátima Bernardes, no Jornal Nacional, dizia gravemente que o programa ?enfrenta críticas até numa das primeiras cidades beneficiadas?.

No Jornal da Record, que ao contrário do JN nem destacou o plano na primeira manchete, Boris Casoy criticou acidamente o ?amadorismo? na condução e afirmou temer um ?estrondoso fracasso?.

Na rádio Jovem Pan, Antônio Ermírio de Moraes disse jamais ter visto alguém morrer de fome no Brasil e que o problema é a falta de trabalho.

Nos últimos dias foi ainda pior, em toda parte.

Não é de estranhar que Lula tenha feito um discurso acuado, de justificação do Fome Zero, mais do que de convocação à ?guerra contra a fome?.

Ao vivo nos canais de notícias, falou sem parar que o programa é ?muito mais do que doação de alimentos?, que é necessário ?ensinar a pescar?, não apenas ?dar o peixe? etc.

Quer dizer, como fez antes em sua ação na Venezuela, ouviu as muitas críticas e adaptou-se, cedeu.

No final do pronunciamento, diante de semblantes fechados, animou-se com a guerra que ?não é para matar ninguém?, mas ?simplesmente para salvar vidas?.

Chegou a ser fascinante, como ele quase sempre é, mas restou claro que precisa ?persistir? não só contra a fome, como afirmou, mas sobretudo contra a torcida adversária.

Não está tão sozinho.

Elogios inusitados ao Fome Zero surgiram aqui e ali, até no editorial usualmente antipetista da rádio Bandeirantes, pela manhã.

Alexandre Garcia afirmou que, ?ovacionado em Davos, apoiado na Alemanha, elogiado na França?, o programa faz a coisa certa:

– País rico com povo pobre tem que começar aplacando a fome.”