Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Marcelo Migliaccio

TELEDRAMATURGIA

“Esperança convicta”, copyright Folha de S.Paulo, 2/2/03

“Aclamado como um dos diretores mais talentosos da teledramaturgia brasileira -e do cinema, com seu ?Lavoura Arcaica? (2001)-, Luiz Fernando Carvalho, 42, vive agora a experiência da tumultuada troca de autor em ?Esperança?, cujos índices de audiência nunca chegaram ao patamar projetado pela Rede Globo -nem mesmo após a substituição de Benedito Ruy Barbosa por Walcyr Carrasco. Entretanto, em sua primeira entrevista depois da crise na novela, Carvalho diz à Folha, por e-mail, que não abandona suas convicções.

Com ?Esperança? no final, que balanço você faz da novela? O que ela lhe trouxe em experiência televisiva?

Nada foi tão forte quanto a confirmação de que é preciso, na televisão de hoje, trabalhar na direção contrária à dos clichês. O clichê aponta para uma falta de confiança no homem, já que ele pressupõe que é impossível impor-lhe opiniões. Ao contrário, é preciso que as televisões gerem mais conteúdo e mais conhecimento. É preciso ensinar as pessoas a pensar, e não o quê elas devem pensar. Isso é algo muito diferente do que se faz habitualmente.

Adquirir mais conhecimento é um empreendimento tão belo quanto desenvolver o mundo da imaginação. ?Esperança? foi um trabalho que nos desafiou em vários sentidos. Sempre fui bastante crítico quanto à escolha do tema para a novela, já que a imigração italiana me soava saturada. Por outro lado, o tema das correntes migratórias sempre chamou minha atenção. Então, talvez o maior desafio -e o maior estímulo- tenha sido procurar uma motivação para que aquilo tudo que me soava como clichê voltasse a simplesmente existir.

Durante a troca de autor, você manteve a discrição. Gostaria de ouvir algumas reflexões de quem está no olho do furacão.

Todos sabemos o quanto é desgastante o trabalho de um autor de novelas, mas sabemos também o quanto estar preparado é tudo. Tenho o maior respeito e admiração pela obra do Benedito Ruy Barbosa, mas eu, que já dirigi cinco outras novelas suas de sucesso, pude sentir, desde o início, que ele não estava pronto.

Esse é um ponto importante, que determina e reflete uma carência real por novos autores, capazes de reoxigenar a dramaturgia e, ao mesmo tempo, liberar fôlego aos autores consagrados.

Como você, um diretor bastante autoral, encarou as mudanças na trama?

Como um exercício. Me preparei para receber a entrada do Walcyr como quando um ator de teatro substitui seu colega em uma nova temporada. Foi isso o que aconteceu, estreamos uma nova novela em meio à outra. Reuni o elenco e a equipe, e procuramos nos colocar o mais generosamente possível.

No primeiro mês após a troca de autor, ?Esperança? apresenta, na Grande SP, uma audiência dois pontos mais baixa que a média do último mês com Benedito. Parte do público teria deixado de assistir descontente com mudanças na história?

O decréscimo de dois pontos não foi representativo o suficiente para ser entendido como uma rejeição. Não quero transformar essa questão numa rinha de galos, mas, sem dúvida, o público reencontra agora um vínculo perdido com a novela: picos de 48%, média de 43% e ?share? de 61%. São números que refletem a capacidade de se reconstruir da própria novela. Seria ingenuidade dizer que estamos a reboque de uma mudança de programação. A mudança se verificou e continuará se verificando no corpo da narrativa. O mérito, se é que podemos chamar assim, é unicamente da resistência e da busca por melhores resultados deste grupo de profissionais.

Como é a sua relação com o Walcyr Carrasco? Você opinou sobre as mudanças?

Tudo a que assistimos agora é fruto de uma convergência de idéias entre nós. Apesar de nos conhecermos apenas através desse trabalho, nossa comunicação foi excelente. É um autor estimulante e de traço pessoal muito forte. Tivemos várias reuniões, mas seu conhecimento da novela já vinha de muito antes: há meses o Mário Lúcio Vaz já havia pedido para que ele acompanhasse os capítulos.

Como fica a motivação da equipe depois de uma troca de autor? São profissionais, mas também seres humanos que sentem as pressões e as críticas…

Formamos um grupo maravilhoso. E não podemos negar que a substituição dos autores permitiu desenvolvimentos para algumas tramas. Há que se respeitar uma certa liberdade para quem chega, senão a criação deixa de existir e então tudo perde o sentido. Mas, em toda novela de mais de 200 capítulos, a roda da história gira até mesmo sem substituição alguma. Portanto, o esforço de todos nós -incluo aí o próprio Walcyr- foi o de compreender esse movimento, cuidando para que a qualidade não sofresse em demasia. E nesse esforço, a participação do elenco foi fundamental. Não teríamos conseguido reestruturar a história, aumentar a produtividade e -além de tudo isso- recuperar nossos melhores índices. Não seria exagero afirmar que, naqueles dias difíceis, os atores se transformaram em verdadeiros co-autores.

Ainda mantém contato com o Benedito?

Confesso que foi muito delicado continuar mantendo um contato diário com o Benedito. A cada telefonema, sentia sua dor encarnada no tom da voz. Aquilo me desequilibrava, e eu precisava me concentrar nos novos capítulos que chegavam. Na última vez em que nos falamos, ainda me lembro, pedi que ele procurasse se desligar da novela emocionalmente, procurasse cuidar da saúde e fosse descansar, que, em breve, ele estaria pronto para mais um de seus bons trabalhos.

Outros telefonemas vieram, mas tentei evitá-los ao máximo. Sei que nossa cumplicidade é, e sempre será, muito forte, eu o considero muito e sei que ele a mim. Tudo o que quero é que ele de maneira alguma sinta que estou decepcionado com ele e vice-versa. Jamais o consideraria um derrotado. Muito ao contrário, trata-se de um guerreiro que lutou até o limite de suas forças.

A TV, talvez a mais imediatista indústria do entretenimento, surpreendeu você?

Neste mundo de hoje, da globalização, da corrida febril atrás das descobertas, o homem foi esquecido e, com ele, todas as suas experiências espirituais, morais e sociais. Em primeiro lugar, temos que perguntar que tipo de homem é necessário ao mundo moderno. Em segundo, que tipo de televisão será necessária a este homem. Uma televisão que necessitará de consumidores em massa ou de indivíduos conscientes? Qual o destino reservado à televisão e aos homens? Que a televisão seja apenas diversão, me parece bastante contestável. Precisamos de diversão, mas também precisamos nos orientar e entender o mundo.

No horário nobre da TV aberta ainda há espaço para a qualidade, a narrativa trabalhada, as nuances de iluminação e de interpretação? Existe uma corrente que acha que isso não é mais viável pela competição acirrada entre os canais e a característica da massa telespectadora…

Dante já dizia: ?O que um homem ignora, o outro sabe. O que não é conhecido em um país o é em outro. Todo o conhecimento de que um homem é capaz seria simultaneamente conhecido por todos, se todos fôssemos livres?. Claro, tudo isso é mais fácil de ser dito do que vivido. De minha parte, continuo lutando por uma televisão que possa unir, a um só golpe, o popular e a experiência artística. Por outro lado, se você constantemente navegar contra a corrente você se torna imediatamente um elemento perturbador. Mas, nesta altura, você só tem um problema: para quem deve trabalhar, para si ou para a humanidade? É um problema que pode nos afetar ou não. Se ele nos afeta, e mesmo se o preço for muito alto, sempre o resolveremos da única maneira possível.”

 

MÚSICA NA NET

“Kazaa leva majors para o banco dos réus”, copyright Folha de S.Paulo, 3/2/03

“Desde 99, quando a Recording Industry Association of America (RIAA) -entidade que representa interesses da indústria fonográfica dos EUA- percebeu que estava perdendo dinheiro e que o ?culpado? atendia pelo nome de Napster -serviço de troca de arquivos pela net-, milhões de dólares têm sido gastos pelas gravadoras para levar os ?piratas do WWW? para o banco dos réus. Na semana passada, porém, houve uma inusitada troca de papéis.

Alvo de uma saraivada de processos por parte da RIAA e, mais recentemente, de representantes dos não menos poderosos estúdios de cinema de Hollywood, a Sharman Networks, empresa de software australiana que detém os direitos do ultrapopular Kazaa -grosso modo, o Napster da segunda geração-, move desde a semana passada um processo contra toda a indústria de entretenimento dos EUA por supostas práticas de monopólio, concorrência desleal e, acredite ou não, violação de acordos de copyright.

Em litígio desde meados de 2002, a empresa alega que vem oferecendo às majors saídas possíveis para uma progressiva eliminação da troca ilegal de arquivos na internet, mas que estas têm se negado enfaticamente a negociar com ela, a quem acusam de responsável por construir ?a maior rede de pirataria do mundo?.

Junto com a Altnet, a dona do Kazaa afirma que desenvolveu e já pôs em prática um mecanismo de controle -e cobrança- sobre arquivos com copyright. Bastaria, então, que gravadoras e estúdios de cinema aceitassem tirar proveito da nova ferramenta e oferecessem oficialmente seus arquivos a usuários do Kazaa.

Impasse

E aí é que novos problemas começam: a essa altura, estúdios e gravadoras já têm seus mecanismos oficiais de distribuição digital de conteúdo: Musicnet e Pressplay, da indústria fonográfica, e Movielink, da cinematográfica. Kazaa, Grokster e Morpheus, que também sofrem acusações de conivência com troca ilegal de material, seriam ?persona non grata? no mercado do audiovisual.

Kazaa acusa: ?A indústria de entretenimento conspira para permitir que as alegadas infrações de copyright continuem e escolhe brigar para esmagar a Sharman em vez de se unir a ela (…). Essa decisão é movida pelo desejo de preservar e estender seus próprios monopólios?.

E a RIAA rebate: ?A alegação da Sharman é como a do ladrão que saqueia o Fort Knox [casa das armas dos EUA? e depois diz que não tem culpa, porque foi o Fort Knox quem se recusou a comprar o seu sistema de segurança de segunda categoria?.

Instalado em mais de 180 milhões de computadores, o software da Sharman é de fato a pedra no sapato das empreitadas chapa-branca da indústria na rede.

Limitações

Para baixar cem músicas por mês, sem poder gravá-las em CD ou no cada vez mais difundido iPod (o walkman da geração MP3), o ?sócio? da Musicnet precisa desembolsar US$ 9,95 ao mês. E, em suas 75 mil faixas disponíveis, pode estar certo que não vai encontrar aquela antológica do Balão Mágico nem um mero ?Twist and Shout?, dos Beatles.

Pressplay e Movielink oferecem o mesmo menu dietético aos entusiastas do lado B. Nos três casos, como de costume nas questões americanas, o ?resto? do mundo nem precisa se espremer para conseguir uma senha: o acesso é estritamente a usuários dos EUA.

?O pensamento da indústria é muito limitado. A tecnologia que ela desenvolve é sempre para conter e controlar a movimentação dos arquivos. Ao passo que, para bem ou mal, o grande avanço da internet é justamente democratizar a informação?, diz Fred von Lohmann, 34, advogado do Electronic Frontier Foundation, que atualmente defende o Morpheus.

?O que a indústria precisa é parar de sair chutando para todo lado e, em vez de assustar, familiarizar o usuário com essa nova tecnologia, mesmo que signifique cobrar menos agora, para a médio prazo voltar a ter um consumidor pacífico?, conclui o professor de pós-graduação da FGV-RJ Nehemias Gueiros Júnior, 44, especialista em direito autoral.”