PÚBLICO DA POSSE
Elogio do Desconfiómetro, copyright Público, Lisboa, 31/1/03
“A ?Folha de São Paulo? encomendou um estudo sobre a exacta dimensão das pessoas que assistiram à posse do Presidente Lula da Silva. Conclusão: 71.310 pessoas. ?O Globo? e ?O Estadão?, jornais de prestígio análogo ao da ?Folha?, apostaram em 200 mil presenças.
A forma como os jornais avaliam as multidões, reunidas em estádios, manifestações, avenidas, praças ou ruas das grandes cidades, poderia ser objecto de teses académicas, tal a discrepância de critérios utilizados, em medições a olho ou com base em critérios pouco seguros.
Em Portugal 1974-75, os comícios e manifestações partidários eram generosamente calculados com lentes de aumentar. Bastaria comparar os números indicados na imprensa nacional e estrangeira para verificar a forma como a vontade militante ?empolou? o número de participantes em determinadas manifestações de rua.
O prestígio do número nas civilizações contemporâneas avalia-se pelos generosos cálculos, a olho, de milhares, centenas de milhar ou milhões, consoante a boa vontade do repórter. Noutros casos, o recurso à metáfora resolve o problema sem hipótese de contestação: ?enorme multidão?, ?mar de gente? e outras fórmulas semelhantes.
“A fim de contrariar a falta de rigor dominante a ?Folha de São Paulo? encomendou um estudo à Defesa Civil do Distrito Federal sobre a exacta dimensão das pessoas que assistiram à posse do Presidente Lula da Silva. Os peritos trabalharam com base em fotografias aéreas e na medição (já anteriormente disponível) dos dois principais lugares em que se verificou a concentração em Brasília: a Esplanada dos Ministérios e a Praça dos Três Poderes. No mesmo dia e à mesma hora (15h30m, do dia 1 de Janeiro), concentraram-se nesses dois lugares: 71.310 pessoas.
À primeira vez, pode parecer ?coisa? pouca, se tivermos em conta os cálculos empolados tradicionais no jornalismo, mas se o rigor fosse hábito adquirido nesta matéria, seria fácil concluir que é muita, muita gente. As imagens de televisão deram conta disso e também do entusiasmo transbordante próprio daquele espírito que, no dizer de Roberto DaMatta ?faz do Brasil, Brasil?. A capa do magazine ?Isto É?, com a multidão a aplaudir, sob a chuva, o descapotável presidencial, enquanto alguns participantes ?chapinham? nas águas do lago artificial circundante, é outro ícone deste momento especial da vida política brasileira.
É bom, no entanto, que a afectividade das imagens seja acompanhada pelo rigor dos números: eles mostram que a manifestação de rua é significativa, mas que num país com a imensidão territorial e populacional do Brasil, deve ser lida como aquela figura de estilo que toma a parte pelo todo (sinédoque). Alargar a parcela dos seus apoiantes ao todo da nação brasileira é o desafio que se coloca ao novo Presidente da República, o primeiro emanado da esquerda, na história contemporânea do Brasil.
Alberto Dines, grande figura da imprensa brasileira, louvou o procedimento da ?Folha? e cunhou a palavra ?desconfiómetro? para designar o método utilizado. Com efeito, os cálculos dos outros jornais revelaram todos o entusiasmo que nestas alturas se instala e contagia os repórteres. Por exemplo, ?O Globo? e ?O Estadão?, jornais de prestígio análogo ao da ?Folha?, apostaram em 200 mil presenças.
O método usado pela ?Folha? não é obviamente isento de inconvenientes. Desde logo, em termos jornalísticos, o estudo foi publicado vinte e tal dias depois da posse, o que – como sublinha Dines – é ?uma eternidade em termos de jornalismo diário?. Ou seja, as sobre-avaliações feitas sobre a hora já produziram, há muito, o seu efeito emocional. A correcção estatística fica para os comentaristas sofisticados, os adversários declarados de Lula e os historiadores futuros…
Em qualquer caso, saúda-se o advento da era da precisão na contagem das manifestações, com o recurso, no dizer sugestivo de Alberto Dines, ao ?desconfiómetro para medir os olhómetros?. E, nesta era de inovações tecnológicas, espera-se que os novos métodos de avaliação possam adquirir velocidade que lhes permita acompanhar o ritmo ?imediatista? imposto pelo jornalismo contemporâneo. De outra forma o arbitrário das estimativas a olho continuará a prevalecer na opinião pública, por muitos estudos rigorosos que se divulguem algumas semanas depois…”