MÍDIA vs. MARCO AURÉLIO
“Imprensa não pode vetar manifestação de ministro”, copyright Revista Consultor Jurídico (www.conjur.com.br), 6/02/03
“Jornalistas e jornais morrem de medo de juízes. Mexer com a turma da toga é tabu – só apanham de verdade quando há garantias de que se está chutando cachorro morto. Como o número de processos contra empresas jornalísticas e seus profissionais costuma ser grande, convém manter uma boa relação com os tribunais. Faz parte do jogo, embora nove em dez jornalistas gostariam de assinar aquela matéria definitiva sobre os privilégios do setor, seus inúmeros recessos e outras regalias.
Eu, particularmente (talvez por inveja), tenho restrições a qualquer classe com a prerrogativa de aumentar os próprios salários. Mas vá lá, quem mandou os jornalistas fugirem do estudo sério na época da faculdade? Este artigo, na verdade, nasceu para ser uma defesa do Judiciário. Especificamente de seu representante mais importante, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio Mello, que, a despeito da cautela excessiva dos meios de comunicação, foi eleito pela grande imprensa o vilão do momento.
As maiores críticas vieram da elite de São Paulo – de onde não se vê quem sobe ou desce a rampa e onde os funcionários públicos são vistos como vagabundos encostados na estabilidade de seus cargos. Tudo porque Marco Aurélio Mello alertou para as dificuldades jurídicas que o governo enfrentará caso tente aprovar na marra a reforma da Previdência.
Se já não gozava de simpatia geral desde que foi alçado ao Supremo em 1990 por seu primo, o ex-presidente Fernando Collor, a coisa ficou pior quando acusaram Marco Aurélio de ferir a regra que manda os juízes não se pronunciarem sobre processos em andamento. No caso em questão, Marco Aur&eaeacute;lio não era um juiz, mas o representante de um dos três pilares que sustentam a democracia, do qual a imprensa informalmente entra como quarto elemento.
Sou completamente a favor da reforma da Previdência e acho que o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, tem razão ao dizer que as contas públicas não garantem o que está escrito na lei. Mas vetar a manifestação da Justiça (com J maiúsculo) não difere em nada das atitudes condenáveis do presidente/ditador venezuelano Hugo Chávez.
A grande maioria dos advogados, procuradores e pessoas do meio jurídico avalia positivamente a postura do presidente do STF no caso. Para a reforma passar, será necessária, sim, uma ruptura jurídica. Saber se a sociedade quer ou não é outra conversa.
Quando Marco Aurélio se posicionou contra o sigilo em processos envolvendo juízes, ninguém o elegeu um combatente do corporativismo.
Nunca estive com presidente do STF, não o conheço nem tenho interesse em processo algum na Justiça. A motivação para este artigo foi o temor com a poderosa e devastadora conjunção de interesses do Poder Executivo com a grande imprensa. Os riscos são maiores do que parecem à primeira vista.”
QUÉRCIA vs. VEJA
“Quércia processa revista Veja por capa de dinossauros”, copyright Consultor Jurídico (www,conjur.com.br), 8/02/03
“O ex-governador de São Paulo, Orestes Quércia, não gostou de ver a montagem de seu rosto sobre o corpo de um dinossauro e nem da análise da revista Veja de 16 de outubro do ano passado. Para ele, a publicação, em vez de fazer jornalismo – o que prevê o direito à crítica – preferiu partir para a desmoralização, o que a lei não permite.
Como as imagens, títulos e legendas não têm seus autores identificados, Quércia acionou o dono da editora, o diretor editorial e o diretor da revista. Em relação ao texto jurássico, o ex-governador investiu contra os seus autores, o editor Alexandre Secco e a subeditora Sandra Brasil.
A reportagem em questão, sob o título ?Barrados pelas urnas?, procurou mostrar que antigos caciques da política brasileira perderam espaço no último pleito. Mas, em estilo peculiar, fez afirmações como a de que ?foram abatidos exemplares do enricossauro, como o paulista Orestes Quércia?, para referir-se ao fato de que o ex-governador não foi eleito senador em 2002.
Quércia procurou o escritório L. Aro Advocacia que protocolou, em 22 de novembro, queixa-crime por injúria e difamação contra o publisher Roberto Civita, o diretor editorial e vice-presidente, Thomaz Souto Corrêa, e o diretor de redação, Tales Alvarenga.
Se a queixa-crime for aceita e a ação penal julgada procedente, Quércia quer na capa da Veja uma foto sua de corpo inteiro e a ?parte dispositiva da sentença condenatória?. Pede ainda que a íntegra da inicial seja veiculada na revista com o mesmo número de páginas que a referida reportagem.
Na queixa-crime, a advogada Luciana Ribeiro Aro de Aquino afirma que ficou nítido que a revista agiu ?com a intenção e o desejo de total aniquilação da dignidade e do decoro do querelante [Quércia], que teve, respectivamente, os seus atributos morais e físicos ridicularizados publicamente?.
O texto analisa ponto a ponto os trechos da reportagem em que Quércia se sentiu ofendido, transcrevendo as frases entendidas como ofensivas e explicando, em seguida, o porquê de tal interpretação.
Luciana R. Aro entendeu, por exemplo, que, por ter sido chamado de dinossauro, o ex-governador foi ?taxado? de ?monstro pré-histórico?, ?abominável? e ?repugnante?. Sobre o termo ?enricossauro?, a advogada afirma que foi colocada em dúvida a favorável situação financeira de seu cliente e que isso equivale a terem se referido a ele como ?dinossauro ladrão? ou ?monstro ladrão de verbas públicas?.
Como a Veja vê a história:
Quando a Editora Abril foi citada, seus advogados rebateram o argumento de que a equipe agiu com má-fé. Segundo eles, a capa da revista ?não tem o condão de achincalhar a imagem do querelante [Quércia] comparando-o com a imagem do animal dinossauro, na acepção literal da expressão, mas, sim, foi utilizado como recurso lingüístico para informar os leitores que todos aqueles políticos cujos rostos estavam estampados na capa da respectiva revista não foram eleitos aos cargos que disputavam pois representavam para a sociedade um modelo político ultrapassado.?
A defesa da editora afirmou ser impossível publicar a foto de Quércia e a ?parte dispositiva da sentença condenatória? na capa da Veja, caso a ação penal seja aceita e julgada procedente. A legislação, afirma a defesa, prevê ?apenas a publicação da sentença na parte interna do jornal, revista ou periódico para aquele que sucumbir na demanda?.
A Abril alegou ilegitimidade da parte passiva para fundamentar seu entendimento de que o presidente, o vice e o diretor de redação não deveriam ser responsabilizados pela capa e pelas manchetes da revista.
O princípio da indivisibilidade da ação penal também teria sido violado pela formulação da queixa-crime, segundo os advogados da editora. Eles alegaram que ?a reportagem pela qual os jornalistas supra citados (Alexandre Secco e Sandra Brasil) respondem pela acusação de crime de imprensa tem mais um autor, perfeitamente identificado no final da matéria tida como ofensiva, de nome Luis Henrique Amaral.?
A empresa sustenta que a inicial é inepta porque não aponta os fatos que seriam difamatórios ou injuriosos e questiona, até mesmo, a competência do foro escolhido. A ação prescreve em dois anos.”
ENTREVISTA / ROGER SILVERSTONE
“Inventar o Quinto Poder”, copyright Carta Capital, 12/02/03
“A imprensa britânica (e, talvez, não apenas a britânica) caminha para a autodestruição. A lógica da criação e destruição de celebridades, o círculo vicioso de sensacionalismo e fofoca, o interesse puramente comercial e a recusa em abrir-se para o questionamento de seus próprios mecanismos e valores são indícios de uma crise nos meios de comunicação cujo resultado é o declínio do engajamento político, o aumento do individualismo e o ocaso da cidadania. Essa é a opinião de Roger Silverstone, titular da cadeira de Mídia e Comunicações da London School of Economics, em Londres, que lança no Brasil Por que Estudar a Mídia?
Silverstone argumenta que a mídia se tornou central para a experiência humana. Seu controle sobre o fluxo de palavras e imagens em escala global – e sobre processos sociais, políticos e culturais – só aumenta, como também aumentam as reações de indivíduos, comunidades e governos contra sua influência. Por isso, ela tem de ser estudada. Mais que isso: esse conhecimento deve se difundir na sociedade, criando uma massa de cidadãos alfabetizados em mídia, que só assim poderiam desafiar seus pressupostos éticos e funcionais. Teríamos então um Quinto Poder, constituído por uma cidadania informada cuja missão seria fiscalizar o Quarto Poder – ou seja, a mídia.
Roger Silverstone já teve publicado no País Televisão e Vida Cotidiana, livro influente em que analisa a televisão como um veículo doméstico. Em Por que Estudar a Mídia? reforça o argumento: é no dia-a-dia das pessoas, e não na cobertura de grandes eventos e catástrofes, que a força da mídia se mostra mais eficaz, contribuindo decisivamente para a formação do senso comum. E procura explicar como a mídia funciona e como nos relacionamos com ela, analisando da poética de Aristóteles à transmissão pela tevê do funeral da Princesa Diana.
Silverstone escreveu um manifesto, distante da famigerada linguagem acadêmica. ?Eu quero ser lido?, diz ele, para quem o conhecimento da mídia e sua democratização são um projeto político fundamental para formar cidadãos no século XXI. A seguir, os principais trechos da entrevista.
CartaCapital: O senhor diz que os estudos de mídia devem falar com a sociedade, ?alfabetizando? os cidadãos em relação à mídia. Quais os desafios desse projeto?
Roger Silverstone: A cidadania no século XXI requer um grau de conhecimento que até agora poucos de nós têm, que requer do indivíduo que saiba ler os produtos da mídia e que seja capaz de questionar suas estratégias. Isso envolveria capacidades que vão além do que foi considerado alfabetização em massa na época da mídia impressa. Houve um tempo em que a mídia impressa colocou esse desafio: foi considerado suficiente que as populações pudessem ler, e os avanços na leitura, ou seja, um questionamento crítico do que se lê, sempre foram considerados uma ameaça para os poderes estabelecidos. A facilidade com que consumimos a mídia atualmente, pela atração de suas imagens e simplicidade de suas formas narrativas, poderia sugerir que a alfabetização não é mais uma questão. Eu sugiro que a alfabetização em mídia é mais necessária do que nunca, precisamente porque ela é fundamental para a construção de identidades, o senso de nós mesmos no mundo e nossa capacidade de agir dentro dele. Tenho em mente um debate contínuo: o cidadão deve se tornar um membro do Quinto Poder alfabetizado em mídia, para desafiar o Quarto Poder – ainda que os pontos levantados pelos estudos de mídia não sejam sempre fáceis de se traduzir em recomendações claras para a conduta do dia-a-dia.
CC: E quais os obstáculos?
RS: São muitos. É improvável que a própria mídia dê apoio – ela tem sido crítica em relação à produção dos estudos de mídia, que vê como irrelevantes; ou cínica na mobilização das descobertas desses estudos que considera cômodas para si. É improvável que os políticos também enxerguem nossa agenda de maneira clara; para eles, a mídia é um instrumento para a administração da realidade política, um espinho em suas costas ou marginal aos verdadeiros negócios da política. No Reino Unido, os estudos de mídia têm uma reputação terrível de ensinar coisas sem sentido sobre novelas e programas de auditório. Seus objetivos são mal compreendidos e eles podem estar sendo mal-ensinados. A conversão desse baixo nível de conhecimento em um conhecimento ligado à criação e prática da cidadania é uma tarefa imensa e essencial. O declínio no engajamento político em tantos países avançados e a ascensão do individualismo não podem ser dissociados dos altos níveis de consumo acrítico da mídia.
CC: A sociedade, no entanto, parece impregnada de pânico moral (medo diante da inovação tecnológica e dos valores divulgados pela mídia). O que o senhor diria a uma dona de casa: a violência como aparece na mídia influencia ou não as crianças?
RS: Eu diria a essa dona de casa que uma dieta contínua de violência e sexo na televisão vai trazer consequências negativas para a qualidade de vida de seus filhos. Isso em si não vai transformá-los em assassinos psicopatas, apesar de poder fazer isso se a criança for particularmente instável ou vulnerável. Por outro lado, uma dieta descontínua desses programas, um menu mais variado, assim como um meio social que faça a mediação daquilo que aparece na tevê – através de conversas, maior envolvimento dos pais, uma classificação clara do conteúdo e uma educação em relação à mídia -, poderia reduzir os perigos e criar um engajamento mais positivo e criativo. Há pouca evidência de que a mídia sozinha nos transforme em psicopatas e de que assistir uma só vez a uma cena terrível irá produzir um dano permanente.
CC: O senhor diz em seu livro que a mídia reflete o dia-a-dia, como um espelho da sociedade. Por que, ao contrário dos políticos, os profissionais de mídia não se sentem na obrigação de prestar contas pelo que fazem?
RS: A imprensa tem uma história de ser agente de oposição política e questionamento radical, assim como de ser um instrumento de governo e agente de repressão. Sociedades diferentes tiveram uma imprensa que aceitou um certo grau de responsabilidade e de serviço público – a BBC é um exemplo. Nesses casos, a mídia assumiu e assume essa ?responsabilidade pelo social?. Mesmo os tablóides britânicos, que atualmente estão em seu período mais populista e irresponsável, argumentariam que não apenas eles estão entregando o que seu público quer (e, nesse sentido, oferecendo um serviço público), mas de fato fornecendo uma crítica apropriada das hipocrisias do governo. Eles iriam igualmente argumentar que o seu sucesso e, em conseqüência, sua responsabilidade devem ser medidos em leitura e índices de audiência. Mas há, no entanto, observando a imprensa britânica, uma absoluta crise de responsabilidade. A imprensa britânica está se movendo para a autodestruição, do mesmo modo que Marx acreditava que o capitalismo iria se autodestruir: uma implosão na base de seu próprio sucesso e como resultado de suas próprias regras de acumulação. A imprensa está num círculo vicioso de sensacionalismo e fofoca que mina cada vez mais os limites entre a vida pública e a vida privada, e está totalmente escrava do círculo infinito de criação e destruição de celebridades. E os grandes jornais estão sendo arrastados a esse mesmo discurso, pelas mesmas press&otildotilde;es de vendas em queda e contração de mercados. Isso só pode resultar em desastre, com um progressivo desencantamento e o abandono do noticiário como um todo e, em conseqüência, de uma cidadania informada e engajada.
CC: A mídia, porém, não reflete sobre si mesma; os veículos evitam ao máximo indagações sobre o ?como somos feitos?. Se ela é tão central, como abrir mão de que ela própria seja uma plataforma de debate sobre os seus mecanismos?
RS: A mídia é intensamente não-reflexiva sobre a sua própria prática. Mas ela deve ser encorajada a mudar. Agora, na Grã-Bretanha há iniciativas acadêmicas de estudos e debate público sobre ética na mídia. Será interessante observar como a imprensa, principalmente, irá responder a uma interrogação informada e persistente sobre a sua prática.
CC: No Brasil, há quem defenda o controle do conteúdo da mídia, feito pela sociedade e intermediado pelo Estado. O senhor diz em seu livro, no entanto, que governos temem perder controle sobre esse conteúdo…
RS: É possível que cada vez mais tenhamos uma situação polarizada em que, de um lado, uma mídia poderosa e independente vai tornar as sociedades ingovernáveis; ou, de outro lado, a necessidade que percebemos para um controle estatal máximo vai resultar numa mídia totalmente subjugada. A primeira situação é visível, ainda que embrionária, no Reino Unido; e, a segunda, nos EUA pós-11 de setembro. Parece improvável que sem um esforço político apoiado por estudos radicais de mídia possamos encontrar uma terceira via. Será cada vez mais difícil controlar o fluxo da mídia através de atos do governo, porque a tecnologia e as empresas irão encontrar meios de driblar a regulação. Os lares têm poder de fazer escolhas (de fato o mercado pede a eles que as façam); os Estados podem restringir mas não eliminar completamente essas escolhas. Há duas maneiras pelas quais indivíduos em seu espaço doméstico podem ser encorajados a tomar decisões informadas sobre seu consumo de mídia. A primeira é rotular o conteúdo de acordo com um padrão (algo que pode ser imposto em convenções internacionais); e instituindo um programa de alfabetização de mídia, no qual poderiam aprender a fazer escolhas sobre o que e como consumir.”