JORNAL DE NOTÍCIAS
"Algumas reflexões sobre o sensacionalismo dos ‘media’ portugueses" copyright Jornal de Notícias, 8/2/03.
Ainda que a propósito de um outro tema, o Provedor já reflectiu nesta página, em conjunto com os leitores, sobre as razões que, de repente, parece terem irmanado os ‘media’ portugueses. Se a guerra das audiências nas televisões deu corpo à informação-espectáculo, nos graus diversos que desaguam na sarjeta de alguns ‘reality shows’, a verdade é que, subitamente, a própria imprensa (a de cariz mais popular e a dita de referência) como que assumiu a vestimenta tablóide: o sensacionalismo parece transbordar das parangonas das manchetes.
Se olharmos para trás, a acusação de fuga ao fisco que pesou sobre António Vitorino; o ‘escândalo’ da renovação da casa de banho da moradia de Cavaco Silva; ou mesmo o processo do fax de Macau, que alguém crismou de ‘Caso Melancia’, parecem hoje ridículos, se comparados com a intrincada trama do infindável e ainda pouco claro processo da Universidade Moderna; com as investigações em curso de corrupção em forças policiais; ou com as surpresas que o desbobinar do fio da rede nacional de pedofilia vem proporcionando, dia após dia!
E, pelo meio, jazem, vítimas da pior das mortes que é o esquecimento, os ‘Big Brothers’ e outros subprodutos de sucesso.
O que mudou, de facto, na sociedade portuguesa?
Não houve, decerto, uma súbita inversão no quotidiano nacional, que conduziu os cidadãos, muitos cidadãos, a comportamentos desviantes. Até porque, de uma forma geral, são conhecidos hoje alguns pormenores dos ‘ballets rose’ dos anos 50 do século passado. E porque os casos de abuso de menores são velhos como a Humanidade, e a maior parte permanece no secretismo das famílias que os protagonizam. Por seu turno, os acontecimentos que envolvem meninos da Casa Pia, e que agora despoletaram o escândalo, remontam, pelo menos, já aos tempos do PREC.
Mas está por explicar, ainda, o silenciamento, durante quase 30 anos, da miserável exploração de crianças.
Mesmo depois de retirada a mordaça de Censura, quando nas ruas se gritavam todas as liberdades de todos os quadrantes. Liberdades mas não tanto – que os meninos vendidos pelos salões e pelas alcovas não tiveram direito de escolha; e aos portugueses, a todos os portugueses, a democracia só ofereceu o silêncio erguido para protecção dos poderosos.
E quem (e quando) vai responder por este silêncio cúmplice dos violadores?
A verdade é que, três décadas volvidas, explodiu subitamente em todas as verdades e em todas as mentiras a certeza de que não há mais lugar para os silêncios protectores. E, admitamo-lo, os ‘media’, ainda que com alguns reconhecidos excessos, foram importante elemento da viragem, dando à primeira denúncia uma dimensão que nada e ninguém conseguiria mais deter, e impulsionando a exigência nacional da verdade completa.
Porém, como quase sempre acontece, são interesses exteriores ao mundo da informação aqueles que primeiro descobrem o resvalamento da função social dos ‘media’. Que vislumbram a oportunidade de distorção e que dela se servem, promovendo, consciente, deliberada e inconfessadamente, os tenebrosos linchamentos na praça pública, ouvidos que são, sumariamente, uns quantos testemunhos credibilizados por vontades, por paixões. Ou, pior ainda, por desígnios que podem ser, tão-somente, o prazer do protagonismo.
Os jornalistas têm, hoje, obrigações acrescidas, que passam pela necessidade de aferir, tão rigorosamente quanto possível, a idoneidade das suas fontes, e de tentar pesar os interesses, muitas vezes habilmente disfarçados, ou exacerbados pelo impacto mediático dos verdadeiros protagonistas – sejam eles suspeitos ou acusadores.
Algo mudou, de facto, em Portugal, quase 30 anos depois da Revolução. Como se, de repente, fossemos todos mais iguais. Como se germinasse a esperança de que, no futuro, ninguém, mas ninguém mesmo, estará acima da lei e ao abrigo dos interesses dos poderes.
Algo mudou, ao ponto de os factos serem tomados por mera exploração de sensibilidades.
Foi a realidade que ‘tabloidizou’ os ‘media’ portugueses! O espanto e a indignação terão sido, de facto, mais fortes do o sensacionalismo.
Três leitores, Maria Emília Falcão, de Paramos (Espinho), Joaquim Pereira Domingos, dos Carvalhos (Gaia), e José Manuel Freitas, de Viseu, não gostaram da forma como, em ‘Caras e Casos’ do passado domingo (Última Página), foi criticado um erro do ministro da Educação, David Justino, proferido num debate televisivo.
O ministro disse ‘interviu’, quando deveria ter dito ‘interveio’.
Qualquer dos três leitores reconhece que o erro existiu, e que o membro do Governo deveria ter tido mais cuidado para não incorrer numa falha que, apesar de muito frequente, não deixa de constituir um erro. E existe também, entre eles a unanimidade que expressam por aforismos: ‘não deve ver-se o argueiro apenas no olho do vizinho’, ‘quem tem telhado de vidro não deve andar à pedrada’ e ‘não se deve cuspir para o ar’. Explicitando…
‘Sendo o JN um jornal onde, frequentemente, o Português não é bem tratado por jornalistas e colaboradores, entendo que, prioritariamente, esse jornal deverá voltar-se para si próprio e corrigir as falhas que apresenta no tocante à Língua Portuguesa’ (Joaquim Domingos)
‘Oxalá o JN trouxesse também, semanalmente, os deslizes ortográficos e de sintaxe praticados pelos jornalistas que trabalham nessa empresa. Teríamos muito que ler’, comenta Maria Emília Falcão, que acrescenta: ‘Vou continuar a ler o JN, mesmo com todos os erros. É que os outros jornais, rádios e televisões não andam melhor’.
José Manuel Freitas, por seu turno, considera irónico o ‘triste reparo’ de quem decidiu ‘fazer gracinha com o erro do ministro (…) logo no dia em que o Provedor lamenta, na sua página, os erros de Português que todos os dias saem no JN‘.
Os leitores, no fundo, disseram o que de essencial havia a referir sobre um paradoxo, que lembra ao Provedor uma história com mais de três décadas…
Havia na altura, no Porto, dois jornalistas, Matos de Carvalho, de ‘O Primeiro de Janeiro’, e António Machado, da delegação do ‘Diário de Lisboa’ (desapareceram prematuramente). Eram ambos coxos.
Sempre que, sentado na esplanada de ‘A Brasileira’, António Machado via, ao longe, Matos de Carvalho encaminhar-se para o nosso grupo, não podia deixar de exclamar, por entre risos:
‘Vejam-me só o desgraçado daquele manco que ali vem, que nem mancar sabe!’