Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Inventário de frivolidades

FRASES DA SEMANA

Deonísio da Silva (*)

O brasileiro adora uma boa frase. Sem saber, obedece ao preceito de Santo Tomás de Aquino, que recomendava a síntese, sob a alegação de que tudo o que é disperso, acaba perdido.

Mas não esperemos muito das frases com que nos brindam os jornais e, principalmente, as revistas semanais. Nelas, aliás, de interessante apenas a qualidade do papel, da fotografia e da diagramação. O resto é um amontoado de coisas sem importância, sem nenhuma ligação com os destaques da semana.

Aos exemplos: revistas Época e Veja desta semana (datas de capa 17/2/03 e 19/2/03, respectivamente).

A primeira selecionou frases do presidente Lula, da modelo Daniella Cicarelli, da apresentadora Xuxa, da prefeita Marta Suplicy, do senador Antonio Carlos Magalhães e do ator Matheus Nachtergaele, entre outros. E o que disseram as celebridades?

"Marketing é para quem está no bem-bom, que não olha as necessidades de vocês."

A prefeita de São Paulo teria feito a declaração ao entregar material e uniforme escolar aos alunos da rede municipal, discrepando daqueles que viram no gesto um ato demagógico. Na semana que passou, Marta Suplicy disse certamente muitas outras frases. Será que algum leitor haverá de concordar que a única a merecer destaque foi essa? E o estado das ruas na metrópole não merece da prefeita nenhuma frase?

O presidente Lula: "O povo não espera milagre da gente em 40 dias". Se o objetivo era selecionar uma frase, não seria mais interessante destacar que o presidente, cometendo um engano, disse que a fome era um direito de todos?

Para os leitores que já não conciliam mais o sono, preocupados com Xuxa e seus blue caps, deve ter sido um alívio saber que a rainha dos baixinhos, enfim só, encontrou o bom caminho: "Nunca trabalhei tão feliz. É bom sentar sozinha e fazer o que tenho vontade". Teria dito isso comentando os primeiros meses de trabalho sem ? como direi? ? a empresária Marlene Mattos.

Para colocar uma foto de Daniela Cicarelli, era necessário uma frase. Veja só a escolhida: "Já agradei aos gregos, agora estou atrás dos troianos".

De ACM transcreveram o seguinte: "Na Bahia, sou o mesmo que o Senhor do Bonfim: tudo o que acontece, sou o responsável". O velho senador comentava as acusações de que estaria por trás das obscenas operações que levaram à escuta de celulares de políticos baianos. O embrulho é simplesmente horripilante. Cassado por violar o painel do Senado, ele voltou eleito pelo povo e nem bem assumiu já está sendo acusado de bisbilhotar de novo a vida alheia por meios ilícitos. Mas, ainda que mal pergunte, por que não foi selecionada nenhuma frase daquelas autoridades que teriam obedecido às suas ordens? Não seria mais pertinente os leitores saberem se as ditas autoridades admitiam ou não a suposta subserviência? Afinal, o leitor quer saber se uma juíza determina ação tão grave para simplesmente obedecer ao mais poderoso sátrapa do Estado.

Mortos, censurados e perseguidos

Veja descobriu o filão das frases e dedica-lhes duas páginas. Uma é simplesmente lunática ? "Se a América não existisse e a Europa dependesse da França, a maioria dos europeus hoje estaria falando alemão e russo" ? foi proferida por Thomas L. Friedman, que a revista nem se deu ao trabalho de informar quem é, identificando-o apenas como ensaísta e informando que ele disse que a França é contra a guerra com o Iraque só para ser diferente dos EUA. Friedman venceu o prestigioso Prêmio Pulitzer em 2001, o terceiro pelo New York Times. Seu livro De Beirute a Jerusalém recebeu National Book Award, categoria de não-ficção, em 1989. Um outro livro de sua autoria, The Lexus and The Olive Tree, também premiado, foi traduzido para 20 línguas. Mas, convenhamos, o ilustre ensaísta, que é também pós-graduado em assuntos do Oriente Médio e do Mediterrâneo, perdeu boa oportunidade de dizer coisa interessante sobre o tema ou pelo menos manter-se calado. Seu erro? Nenhum. Mas não se compreende o motivo de a Veja destacar somente esse seu mau momento. Qual teria sido o objetivo?

Outra bobagem semanal presente na mesma seleção foi proferida pelo deputado republicano Peter King: "A França bateu um recorde na II Guerra, com a rendição mais rápida de uma potência mundial". Com pequenas variações na transcrição, a revista registrou também a frase de ACM recolhida por Época.

Mas ali havia outras pérolas. "Um fisioterapeuta disse que quanto maior o seio maior o instinto maternal". A bobagem foi proferida por uma certa Sabrina, modelo ? pois é, mas quem não é? ? que está participando do grande programa cultural, capaz de elevar o nível de instrução de nosso povo e entretê-lo com altos refinamentos, o Big Brother Brasil. É necessário identificar o fisioterapeuta para que responda diante de seus pares. Afinal, trata-se de profissional que atua em área essencial, a saúde. Se acha isso de seio, maternidade e assuntos de domínio conexo, onde foi que estudou?

Ninguém, porém, superou Arnaldo Jabor. "Há três tipos de ?radicais de esquerda?: os radicais de cervejaria, os de enfermaria e os de estrebaria. Os frívolos, os loucos e os burros".

Se não houvesse mortos, feridos, censurados e perseguidos no contexto da declaração do cineasta e comentarista político, tudo poderia sair na urina ? se não na grossa, na fina ?; mas, dado o pano de fundo, é preciso perguntar: em qual das três categorias entra Arnaldo Jabor?

(*) Escritor, doutor em Letras pela USP, escreve semanalmente neste espaço; seus livros mais recentes são A Vida íntima das palavras, A melhor amiga do lobo e Os segredos do baú