JORNAL DE NOTÍCIAS
"Nem sempre há tempo para que o jornalista se distancie da emoção", copyright Jornal de Notícias, 16/2/03
"Várias vezes o factor tempo tem sido chamado a esta página como justificação para alguns erros: quase sempre a hora do fecho da edição a impedir quer a confirmação de elementos de notícia, quer a audição de uma das partes. E quase invariavelmente o Provedor concluiu que o interesse público da notícia não era tanto que justificasse a sua publicação antes de cumpridas todas as obrigações ético-deontológicas. Hoje, porém, fala-se sobre as horas e os dias que por vezes seriam necessários (e que não existem na informação diária) para que o jornalista conseguisse distanciar-se da emoções que uma reportagem ou uma entrevista lhe provocaram.
É aqui que os jornalistas dos semanários estão frequentemente em vantagem: não correm sempre contra o relógio e podem, frequentemente, contar com o travesseiro, às vezes mais do que uma noite, para recuperar a serenidade e o equilíbrio que, como seres humanos e sensíveis que são, perderam aquando do choque com a realidade.
Teófilo Moreira detecta, na entrevista feita a uma alegada vítima dos abusos sexuais atribuídos a Carlos Cruz, uma carga emocional que, considera, não devia existir – até porque os sentimentos expressos pelo jornalista acabam por ampliar o libelo acusatório de alguma opinião pública contra o conhecido comunicador da Rádio e da Televisão. Por isso lamenta, junto do Provedor, não a entrevista, mas a forma como foi redigida, a sua carga emocional.
O autor da entrevista, que aborda, ainda, aspectos como a dimensão humada da personagem entrevistada e o ?carácter cívico? do jornalismo, responde, através do Provedor:
?No artigo ‘Só queria poder olhá-lo nos olhos’, o redactor não pretendeu mais do que apresentar um trabalho jornalístico, cuja pertinência se reclama credora, antes de mais, da agenda mediática de então, marcada pela prisão, apesar de preventiva, de uma figura pública em que o país – por força do complexo comunicacional e da sociedade medática em que Portugal também se converteu, onde a televisão, magna produtora de afectos, assume papel central – adoptou como credível, embora só lhe (re)conhecendo a faceta construída pelos meios de comunicação social.?
E, prossegue o jornalista:
?(…) Ora, se a pertinência daquela testemunha se justifica à luz da lógica própria do complexo informacional (que as alegadas ameaças de morte apenas sublinham), o estilo adoptado no artigo decorre de duas condições: a dimensão humana – logo sensível aos dramas do seu semelhante – do jornalista; e o carácter cívico que o jornalismo deve observar, sob pena de se tornar supletivo (logo, inútil) à sociedade que procura servir.
Na informação diária quase sempre falta tempo ao jornalista para sedimentar emoções
?Do primeiro aspecto, a enfatização descritiva do estado de espírito da testemunha, assum como o seu aspecto físico, resumem horas de observação participante da equipa de reportagem, numa situação de fractura radical com a normalidade do quotidiano (em que os próprios jornalistas se tornaram intervenientes a determinada altura), e que apenas por pudor e por limitações de espaço não foi possível aprofundar. De algum modo, o drama enfatizado ficou, seguramente, muito aquém do drama vivido. Ora, o jornalista, para fazer jus à ideologia da objectividade – que qualquer obra séria da história do jornalismo poderá explicar as origens, em que a vertente comercial tem quase que o exclusivo da paternidade – que usualmente norteia o seu mister, não poderia ignorar a tragédia que se desenrolou, horas a fio, defronte aos seus olhos, e confirmada por testemunhos recolhidos entre a vizinhança. Se o fizesse, seria cínico e não objectivo, porque estaria a sonegar elementos importantes ao leitor.
?Quanto ao segundo aspecto, procurou-se, de algum modo, alertar as consiências dos leitores para um aspecto que tem sido demasiado esquecido na vertigem da mediatização da Casa Pia: as crianças violentadas. Para a equipa de reportagem do JN, mais importante do que procurar culpados, é fazer perceber a Opinião Pública da existência de gente anónima que, ainda hoje, e volvidos anos tantos anos, continua a reviver no quotidiano as sevícias de que foi objecto enquanto crianças, num sofrimento permanente que as entidades responsáveis não quiseram, ou não puderam, procurar minimizar. Talvez agora.
?Em suma, enquanto pai, homem e jornalista, seria impossível ignorar a enorme tragédia daquela mulher. Negá-la, seria recusar também aquelas três dimensões que me constituem enquanto indivíduo; ignorá-la, seria violentá-la outra vez.?
Justificou o jornalista as emoções vertidas para a entrevista – peça cujo estilo pode discutir-se ao nível das preferências individuais, mas nunca na perspectiva de classificá-la como panfletária, ao contrário de tantas e tantas manifestações mediáticas promovidas sob pretextos confessados, os mais diversos, entre os quais a amizade e a convicção.
O jornalista, quando reproduz emoções de terceiros, é sempre intérprete dessas mesmas emoções. E, qualquer que seja o seu distanciamento, acaba, inevitavelmente, por verter uma parcela considerável da sua sensibilidade.
Manuel Marques, médico do Porto, é apenas mais um entre os leitores que advogam que o Provedor devia nomear os jornalistas cujos textos são alvo de análise nesta página.
Como que sintetizando anteriores intervenções com o mesmo sentido, discorda que ?o jornalista em causa, o autor da notícia, o merecedor dos elogios, o alvo das críticas? nunca veja o seu nome exposto, enquanto que o leitor que dirige os reparos ao Provedor vê o seu tornado público. Pensa que à publicação do nome corresponderia uma responsabilização dos autores dos textos e a uma consequente melhoria da qualidade do JN.
O Provedor, todavia, mantém as linhas que norteiam a forma como vem exercendo a função desde há três anos: rejeita que a sua análise corresponda a um qualquer julgamento público da sua profissão ou de alguns dos elementos da classe.
Não há réus na página do Provedor. Há casos motivados por falhas cujas causas se pretende averiguar, para prevenir a repetição do erro.
O Provedor, na defesa de um jornalismo de maior qualidade (dos pontos de vista técnico e deontológico), acaba por defender objectivos que são, simultaneamente, dos leitores e do próprio jornal – jornal que é, no fundo, o maior beneficiário da exigência dos consumidores.
Os reparos dirigidos ao Provedor são objecto de consultas que, incidindo quase invariavelmente sobre o ciclo de produção do texto jornalístico (numa Redacção, as responsabilidades são repartidas por uma hierarquia por vezes complexa), não descuram os parecereres frequentes do Conselho de Redacção e de especialistas.
Ao Provedor cabe, naturalmente, uma palavra mediadora ? que vale proporcionalmente à credibilidade que os leitores lhe emprestam.
Os julgamentos (porque haverá sempre um inquantificável número de julgamentos e de sentenças) — esses cabem aos leitores. E só a eles.
A decisão de não publicar o nome dos jornalistas é da responsabilidade do Provedor. Tão pessoal como a de (partilhando embora o parecer daqueles que põem reservas fundamentadas à autenticidade das assinaturas das mensagens recebidas por correio electrónico) não achar necessário introduzir um processo que torne menos falível a identificação dos leitores.
Não vê o Provedor nem a facilidade, tão pouco a utilidade de um qualquer meio de prova. Será que a fotocópia de um documento de identidade não é, também ela, facilmente forjável?
Depois, o que perde o JN (os seus leitores) pelo facto de uma observação, de um reparo, ser subscrito sem frontalidade, sob a protecção de uma assinatura apócrifa?
A falta existe ou não existe, e cabe ao Provedor decidir da sua abordagem pública ou interna, tendo como objectivo uma função pedagógica da análise.
Tudo o mais terá a ver, tão-somente, com a fragilidade dos que se escondem num anonimato disfarçado. Mas nem por isso as suas observações deixam de cumprir, ainda que por caminhos sinuosos, uma função útil."