Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Paz, pacifismo e as ilusões da guerra

NEM BUSH NEM SADDAM
(*)

Alberto Dines

O homem distingue-se das bestas porque tem a consciência de que está vivo. É a sua condição primal. Mesmo a fantasia da imortalidade não esconde uma desmedida e truncada prova de amor à vida. O ser humano, porque é humano, quer viver. Morrer é a sua negação.

O mandamento mosaico "não matarás", a profecia de Isaías, das espadas convertidas em arados, a decisão do rei Asoka na Índia, de abdicar das guerras (século 3 a.C.), são sinais de que a assim chamada "civilização" é, em si, um repúdio ao assassinato, às violências e guerras.

A paz como ideal de convivência entre as nações configurou-se em Westfália, quando se selou o fim da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). O pacifismo como ideal humanitário, mais recente, propagou-se gradualmente no início do século 20 sob a forma de uma cruzada dos espíritos mais sensíveis e lúcidos para prevenir um conflito que todos pressentiam como iminente, mas ninguém imaginava como se manifestaria.

O pacifismo é anterior ao conflito 1914-1918 e só se materializou como movimento organizado porque a primeira experiência de destruição massiva foi a mais estúpida de todas. Não havia causas, não estavam em jogo ideais, não se discutia se era uma guerra justa ou injusta. Imperava a prosperidade e o desenvolvimento tecnológico prometia a todos as mesmas vantagens. O problema balcânico que deflagrou o confronto não era novo e poderia ter sido facilmente negociado entre os impérios russo e austro-húngaro.

A bandeira do pacifismo só conseguiu impor-se porque empunhada simultaneamente por franceses, ingleses, alemães, austríacos e russos. Até os americanos aderiram à causa (só entraram na guerra no último ano). Ficaram de fora os otomanos. Ninguém estava a serviço das patriotadas, não se pretendia diabolizar ou idealizar qualquer dos integrantes dos dois blocos de tríplices alianças. Aos nacionalismos insensatos opunham o inevitável internacionalismo. Vilões eram todos, o inimigo era a guerra, combatia-se a morte, a afirmação da vida era o fundamental. O denominador comum não impedia que, concomitantemente, os protopacifistas estivessem comprometidos com opções políticas diferenciadas.

O escritor francês Romain Rolland sonhava com uma Europa unida, integrada, liberada através da cultura do espírito de manada que anulava a consciência individual. Jean Jaurès, o grande tribuno-jornalista, anarquista e socialista, um dos campeões da defesa do capitão Dreyfus, não queria os trabalhadores do mundo fornecendo as pilhas de cadáveres sobre os quais desfilariam os senhores da guerra (foi assassinado por um nacionalista francês, na véspera da guerra).

Herman Hesse, o utopista alemão radicado na Suíça, acreditava no homem livre, liberado das convenções e do sectarismo. Leon Trotsky e Vladimir Lenin viam na guerra o agravamento da miséria e da servidão no seu país. O mais jovem deles, o austríaco Stefan Zweig, preconizava o derrotismo como antídoto aos venenos do fanatismo xenófobo e do triunfalismo. A lista inclui o inglês Bertrand Russell e, por antecipação, o sueco Alfred Nobel, inventor da dinamite, que determinou no testamento a criação do Nobel da Paz (1901).

O menos conhecido dos militantes antibelicistas e talvez o único que legou um raciocínio definitivo contra todas as guerras foi Norman Angell (1872-1967). Nascido na Inglaterra, estudou na França e na Suíça, viveu nos EUA onde foi vaqueiro, carteiro, repórter e, em 1910, quatro anos antes da Grande Guerra, alarmado com a resignação diante da maré armamentista escreveu A grande ilusão. Best-seller mundial, continuamente atualizado, serve até hoje como obra de referência nos institutos de relações internacionais e escolas de diplomatas [Norman Angell, A grande ilusão, Imprensa Oficial de São Paulo-UnB-IPRI, Ministério do Exterior, 2002, 310 pp.]

A primeira edição brasileira acaba de ser publicada, oito décadas depois, mas desde o seu lançamento teve aqui grande repercussão. Rui Barbosa nele inspirou-se amplamente em uma das suas brilhantes intervenções (conferência em Buenos Aires, 1916).

Angell não é retórico, não é panfletário, não emociona, não pretende levar multidões às ruas. A sua importância reside justamente na sua capacidade de raciocinar de forma realista e insofismável suplantando a argumentação daqueles que se consideravam donos do realismo e da lógica. Escreveu o livro porque o pacifismo era então defendido por uma minoria e o belicismo majoritário decorria de uma resignação geral ao pragmatismo.


"Há uma ilusão ótica e uma falácia lógica na idéia (…) de que uma nação aumenta a sua riqueza ao expandir o seu território (…)". Em obra posterior à Segunda Guerra: "(…) Do caos da guerra surgiu o fascismo, não o socialismo; não a revolução social prognosticada por Marx, mas a contra-revolução, a destruição dos frutos da Revolução Francesa (…)". Reconhecia que o fanatismo era um fato da condição humana e que "os seres humanos amam a violência", mas garantiu que "a inteligência é o único meio de fazer frente às forças da natureza".


A leitura do humanista-racionalista nestes dias de ira nos conduz à rejeição da estúpida polarização na qual estamos aprisionados. A Europa de Romain Rolland está sendo revitalizada, não apenas porque cria alternativa de poder mundial, mas porque propõe o enquadramento progressivo da sanguinária ditadura iraquiana através de controles internacionais.

A grande ilusão, desvendada há 82 anos, reforça as evidências da interdependência mundial e reanima os ideais do internacionalismo. O pacifismo não pode esquecer da paz. Caso contrário dará razão a Angell, que enxergou o perigo do "pacificismo, que culminou no engodo da pax soviética no auge da Guerra Fria.

Nem Bush nem Saddam, nem o big stick do Dr. Strangelove, nem o sanguinário Saddam, beneficiando-se do horror mundial à guerra.

(*) Copyright Jornal do Brasil, 22/2/03