ACM SOB SUSPEITA
“ACM: ?Fiz o grampo?”, copyright Época, 26/02/03
“No fim da tarde da sexta-feira, a advogada Adriana Barreto e seu marido, Plácido Faria, desembarcaram discretamente em Brasília. Pouco antes das 7 da noite eles chegaram à garagem do Ministério Público Federal para um longo depoimento sobre a máquina criminosa que montou 232 grampos na Bahia. Numa conversa preliminar com os procuradores da República José Roberto Santoro e Ronaldo Albo, a que ÉPOCA teve acesso com exclusividade, Adriana Barreto fez revelações destruidoras contra o senador Antonio Carlos Magalhães, que o incriminam como o mandante das escutas telefônicas ilegais feitas pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia. Adriana iniciou a conversa contando que foi namorada de ACM durante nove anos. Também deixou claro que acumulou vários documentos que registram essa convivência, como recibos, contas de hotel e de restaurante, passagens. ?Também guardei muitas cartas?, disse. Quando os procuradores quiseram saber a razão de prestar essas informações, Adriana explicou que não pretende divulgar nem exibir papéis que envolvem seu convívio com o senador. ?A menos que ele tente me desqualificar,? esclareceu. Adriana disse aos procuradores que o objetivo de seu depoimento era elucidar uma questão grave, que é o grampo telefônico. ?Isso me deixa indignada?, diz. Não é retórica. Quando se refere aos grampos de que foi vítima, Adriana fica com os olhos marejados.
Adriana contou aos procuradores que em sua convivência com o senador teve duas conversas com ele sobre escuta telefônica. A primeira, há cerca de dois anos, ocorreu quando os dois estavam juntos. O senador mostrou à namorada transcrições de grampos de conversas de alguns adversários de ACM na política baiana – como uma em que os deputados Jonival Lucas (ex-PPB) e Leur Lomanto (ex-PFL) se referiam ao deputado Geddel Vieira Lima (PMDB), arqui-rival do senador, como ?agatunado?. Acompanhadas de grifos feitos pelo senador, essas transcrições, relatou Adriana, chegaram a ser publicadas numa revista semanal.
A segunda conversa ocorreu em meados do ano passado, quando a advogada já havia rompido com ACM e se unira a Plácido Faria. Desta vez, ACM foi explícito. Contou que tinha uma relação de políticos ä grampeados e que decidira incluir Plácido nas escutas. ?Eu vou grampear seu namorado. Vai ser para seu bem.? A advogada disse que mais de uma vez ACM telefonou para ler trechos das transcrições para Adriana. Ela contou que o senador mandava tirar fotografias e filmá-la quando saía à rua. Dias depois, ocorreu uma cena inesquecível. Adriana e Plácido tiveram uma conversa acalorada pelo telefone. O advogado tentava convencer a namorada, recém-rompida com o governador, a abandonar seu emprego público. Adriana se negava. Disse que já era grande e sabia como conduzir sua vida. Os dois discutiram. Para surpresa de Adriana, depois dessa discussão ela recebeu um telefonema do senador. ?Você reagiu muito bem?, disse-lhe ACM. A advogada revelou ainda que Antonio Carlos Magalhães continuava ligando com freqüência quando ela já morava com Plácido. ?Dessa vez ele disse: ?Eu fiz o grampo?, contou Adriana Barreto aos procuradores.
Ela lembrou ainda que, no telefone, Plácido referia-se ao senador em termos cabeludos e impublicáveis – e que, mais tarde, ACM se queixaria a sua mãe pelas palavras grosseiras do namorado. Plácido disse aos procuradores estar convencido de que ACM decidiu perseguir a antiga namorada não por ciúme, mas por prepotência. Plácido contou uma história como exemplo do comportamento do senador. Atuando como advogado, Plácido participou de um júri para o deputado João Carlos Bacelar. ACM ficou sabendo e ligou para o deputado. Ameaçou tirar de Bacelar de 8 mil a 10 mil votos na última campanha eleitoral. Plácido resolveu, então, forjar uma briga com Bacelar por telefone. Logo depois, ACM voltou a receber o deputado – coisa que não vinha fazendo – e recompôs a aliança.
Oficialmente, o depoimento de Plácido foi marcado para a tarde do sábado 22 de fevereiro. O de Adriana para o domingo 23. Antes mesmo da chegada dos dois a Brasília, contudo, a situação política de ACM tornara-se uma ruína. Em conversas reservadas, cardeais do PFL, partido do senador, já avaliavam que a única forma de ACM escapar de um processo de cassação seria a renúncia ao mandato, vexame idêntico ao de 2001, quando ele foi forçado a recorrer a esse expediente para não ser cassado pela violação do painel de votação do Senado. O problema, em 2003, é o mesmo das histórias que se repetem. A primeira vez pode ser uma tragédia. Já a segunda é sempre uma farsa.
O próprio ACM chegou a lamentar com amigos ter oferecido de novo a própria cabeça à ação da guilhotina. Na semana passada, ÉPOCA conversou com cinco deputados pefelistas que estiveram com o senador. Todos estão convencidos de que ACM foi o responsável pelos grampos. Um dos deputados, um dos amigos mais próximos do senador, chega a elaborar uma desculpa para tentar justificar a ilegalidade. ?Para agradar ao senador, algumas pessoas começaram a produzir as escutas ilegais. O problema é que o senador começou a gostar do que ouviu?, diz o amigo. ?Ele ficou um ano e meio longe do Senado. Nesse tempo, assumiu de novo o governo da Bahia como se fosse seu e aproveitou para ir atrás dos desafetos?, afirma uma liderança do PFL.
Até a semana passada, a Polícia Federal já recolhera evidências para indiciar como os executores da escuta ilegal o delegado Valdir Barbosa e o assessor da Secretaria de Segurança Pública, Alan Farias. Na quarta-feira Barbosa pediu afastamento temporário do cargo de chefe da Polícia Civil baiana. Alan Farias, um dos coordenadores da Central de Telecomunicações da Secretaria de Segurança Pública, onde eram gravadas as conversas das pessoas grampeadas, disse que está sofrendo ameaças de morte e só apareceu duas vezes no trabalho, sempre com a escolta de policiais civis. Os policiais e procuradores na investigação dos grampos acreditam que poderão chegar a ACM seguindo a trilha das ligações entre Farias e a delegada Kátia Alves, secretária de Segurança Pública na ocasião dos grampos.
Formado em artes plásticas, mas com especialização em engenharia de telecomunicações, Alan Farias, de 29 anos, comandava uma equipe de cinco pessoas que faziam o trabalho braçal de ouvir as fitas e transcrever os grampos. Ele está na Secretaria desde 1997 – seu primeiro trabalho foi no desenvolvimento de um software que ajudava a localizar a origem das ligações telefônicas. A partir de 2000, Farias passou a chefiar a área de comunicações da Secretaria voltada para investigações policiais, onde ele opera um sistema de escuta telefônica bastante rústico. Ele funciona da seguinte forma: a pedido da Secretaria, a empresa telefônica cria um clone do celular grampeado, que funciona como uma extensão. Para captar as conversas, uma equipe fica atenta às ligações dos celulares para acionar um gravador. É um sistema eficiente para bisbilhotar, mas primitivo demais para investigações sérias. Num caso de seqüestro real, a polícia baiana foi incapaz de rastrear 28 telefones, diz o engenheiro Roberto da Costa e Silva, ex-professor e ex-chefe de Alan Farias. Isso reforça a suspeita de que muitos celulares foram colocados na lista autorizada pela Justiça apenas para disfarçar o interesse no grampo de alguns poucos números. O ex-professor está convencido de que Alan tinha conhecimento de todas as conversas grampeadas. ?A responsabilidade dele era menor, mas ele sabia muito bem o que estava sendo grampeado?, diz Costa e Silva. Como responsável direto pelos grampos, informa o professor da UFBA, Farias tinha acesso direto a Valdir Barbosa ä e, principalmente, à secretária Kátia Alves, uma delegada que caiu nas graças de ACM depois de resolver com espantosa rapidez o caso de um assalto ao apartamento do senador em Salvador.
O depoimento da ex-secretária, atualmente diretora da Empresa Baiana de Saneamento, é aguardado com especial interesse pelos policiais federais e procuradores envolvidos na investigação dos grampos. Segundo aliados de ACM, Kátia era vista com freqüência em visitas ao escritório do senador no jornal Correio da Bahia, que está sob suspeita de publicar em forma de notícia informações obtidas por meio das conversas grampeadas ilegalmente. Sua ambição para ocupar a Secretaria de Segurança chegou aos ouvidos de Adriana Barreto. ACM lhe contou que Kátia chegou a procurá-lo para pedir a nomeação para o posto – ainda que, formalmente, o responsável pelo cargo fosse o governador Cesar Borges. ACM no início resistiu, mas, depois de apurar algumas informações sobre a candidata, decidiu por sua posse. ?Mandei nomear a Kátia Alves?, contou o senador, que naqueles dias não dispunha de um único cargo eletivo em Salvador. Como secretária, Kátia era a superior imediata dos policiais incriminados pelo grampo.
?Eu me assustei com a divulgação de uma notícia em que eu e Geddel (o deputado Geddel Vieira Lima) tratávamos das dificuldades de uma viagem de José Serra ao interior da Bahia durante a campanha presidencial?, diz o deputado Jutahy Júnior (PSDB-BA). ?Cheguei a pensar que havia um espião trabalhando para o adversário na campanha. Era grampo.? O líder do PT na Câmara, deputado Nélson Pelegrino, outra vítima do grampo, também foi personagem de um episódio intrigante que virou notícia no Correio da Bahia. Pouco antes da eleição, Pelegrino envolveu-se num acidente de carro. No dia seguinte, seu automóvel foi fotografado, saiu uma nota no jornal de ACM e o petista passou a ouvir insinuações de adversários políticos de que o acidente ocorrera após uma noite de farra. ?Ficou evidente que eles estavam monitorando todos os meus passos para me ameaçar?, diz Pelegrino.
Na semana passada, aconselhado pelo velho amigo José Sarney, presidente do Senado, o senador baiano desistiu de assumir a presidência da Comissão de Constituição e Justiça, uma das mais importantes da Casa, para a qual sido havia indicado uma semana antes. Sarney articulou a renúncia de ACM após uma conversa com o ministro José Dirceu, chefe da Casa Civil da Presidência. Ali os dois discutiram uma estratégia para esvaziar a proposta de criação de uma CPI no Congresso sobre o caso. Logo após o encontro com Dirceu, Sarney propôs que as investigações se limitassem à esfera da polícia e, caso haja uma denúncia formal contra ACM, ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde os processos costumam tramitar com aquela presteza típica da Justiça brasileira. Sarney fez questão de chamar ACM para um jantar em sua residência na semana passada, com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi um encontro animado pela simpatia natural de Lula, que, mesmo à vontade no ambiente, só autorizou a entrada de fotógrafos depois que ACM já havia se retirado.
É útil lembrar que o fogo alto de uma CPI é capaz de atrapalhar o debate de reformas que o governo quer encaminhar e o país precisa discutir. Mas o PT entrou no episódio com a postura de quem se encontra na retaguarda das investigações. As preocupações com os destinos do país têm prioridade indiscutível, mas o jogo de cintura tem limites. Apesar de petistas aparecerem na lista dos grampos ilegais, o partido não endossou sequer a abertura de uma investigação na Comissão de Ética, autorizada apenas a acompanhar os trabalhos da Polícia Federal. ?Foi uma decisão que quebrou nossa tradição, porque sempre defendemos investigações, pelo menos no âmbito da Comissão de Ética?, queixa-se o deputado Walter Pinheiro (PT-BA).
A decisão de centralizar todas as investigações na Polícia Federal representa um desafio especial para o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, a quem a Polícia Federal está subordinada. Thomaz Bastos já foi advogado de ACM. No escândalo da violação do painel, elaborou a linha de defesa de ACM no depoimento na Comissão de Ética – aquele em que o senador sacou o argumento de que algumas mentiras se justificam sob razões de Estado. Ao assumir o Ministério da Justiça, Thomaz Bastos mostrou que sabe separar contas e esferas políticas. Ele confiou a administração de seu patrimônio, durante sua permanência no governo, a um blind trust – um fundo cego em que ele não toma conhecimento do que está acontecendo com seu dinheiro. Também abandonou o escritório, um dos mais procurados de São Paulo, para os antigos sócios. Agora que a PF faz investigações sobre um cliente tão poderoso, Thomaz Bastos foi colocado diante de um desafio complicadíssimo. Não lhe basta ser isento – ele também terá de parecer que é isento. É uma situação mais complicada do que parece.
Num país que viveu duas décadas e meia de regime militar, a máquina criminosa dos grampos baianos representa uma afronta às conquistas da democracia. Não é um retorno ao passado, mas uma desmoralização do presente. Deve ser apurada e investigada com serenidade, sem caça às bruxas nem condenados por antecipação. Não cabe ao governo do PT, contudo, fraquejar diante desse desafio. Compreende-se uma aliança com os mercados para dar rumo seguro à economia. Mas será difícil entender um governo capaz de vacilar na defesa da ética e da democracia.
“Confissões de ACM”, copyright IstoÉ, 26/02/03
“?Eu mandei grampear o Geddel?, disse o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), sem ser perguntado, ao repórter Luiz Cláudio Cunha, de ISTOÉ, na tarde de quinta-feira, 30 de janeiro, um dia agitado no Congresso, conturbado pelos últimos acertos políticos para a eleição das mesas da Câmara e do Senado. ACM discorria sobre seu acerto de contas com um arquiinimigo na Bahia, o deputado federal Geddel Veira Lima, durante anos o poderoso líder da bancada do PMDB e candidato, naquele dia, a primeiro secretário da Mesa. O repórter procurava esclarecer fatos que envolviam o nome do deputado com denúncias de corrupção e, nesse campo, o senador é sempre uma fonte incansável. Ele recebeu o repórter da revista em seu gabinete, na ala nobre ao lado da presidência do Senado.
Sentado na poltrona, à esquerda do jornalista, ele negou ter qualquer informação sobre suposto envolvimento do deputado com uma empreiteira de Minas Gerais. ?Mas eu tenho uma coisa melhor do Geddel?, revelou, com um sorriso maroto, apontando com os olhos para o grosso volume em espiral, com capa de plástico preto, pousado em seu colo. ?O que eu vou lhe dizer você não pode publicar: eu mandei grampear o Geddel. Gravei quase 200 horas de conversas vergonhosas dele, inclusive com o presidente da República.? Surpreso com a revelação, o repórter pergunta se o próprio senador gravou. ?Não, uns amigos meus gravaram. Gravaram tudo, a meu pedido. Cheguei a mandar alguns expedientes ao Fernando Henrique, mas ele não tomou nenhuma providência.?
ACM esclareceu que o documento de 170 páginas sob o título ?Relatório confidencial?, com o registro de 126 conversas de Geddel entre 19 de maio e 21 de agosto de 2002, não é a degravação, mas ?um resumo do CD que mandei gravar?. A reportagem de ISTOÉ indaga pelo CD original, e o senador faz uma nova revelação: ?Eu não tenho mais. Na época em que estava sendo grampeado, o Geddel desconfiou de alguma coisa, acionou a Polícia Federal e o meu pessoal destruiu o material de gravação… Se apavoraram e, sem me consultar, destruíram o material. Destruíram tudo. Fiquei irritadíssimo quando soube que destruíram…? Quando o repórter pede para ver o material, ACM recusa: ?Não, isso aqui é um crime, não posso lhe mostrar.? O senador revela que os únicos repórteres que receberam o material, ?em confiança?, foram dois jornalistas, um da Folha de S.Paulo e outro da revista Veja. ?Mas ninguém tem o CD. Eu não disse que ele foi destruído? Fiquei puto por isso. O que a Folha tem é isso, o resumo. A primeira parte é em ordem cronológica. Depois, na segunda parte, o material está reunido por temas. Está tudo aqui, com algumas anotações minhas, alguns comentários?. Se alguns jornalistas têm, o senhor podia nos dar uma cópia também, insiste o repórter. ?Não, não pode publicar isso. Isso é crime?, repete o senador. O jornalista da revista esclarece que o material, por ser mero resumo e não a transcrição do grampo, não pode ser publicado, mas pode servir como pré-pauta para futuras investigações. ACM concorda, sob o compromisso de receber o material de volta até o final da tarde do dia seguinte, sexta-feira 31 de janeiro. ?Vou viajar à noite para Salvador e preciso dele.?
Megagrampo – O repórter de ISTOÉ fez uma cópia do material e devolveu o original ao senador, no prazo marcado. Na semana seguinte, o caso tomou outro rumo – e mais grave. Na quarta-feira 5, o diretor-geral da Polícia Federal, delegado Paulo Lacerda, revelou à revista que um inquérito da PF descobrira que o grampo envolvendo Geddel tinha sido executado pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia. O que antes parecia uma mera briga política local, com disputas típicas da província, transbordou para uma megaoperação de grampo, sem precedentes na história da República, envolvendo o uso de funcionários, equipamentos e estrutura operacional de uma Secretaria de Estado para investigar não uma, mas centenas de pessoas, políticos ou não. ?Esta é uma rara oportunidade. Nunca antes se teve tantas provas, em tão grande quantidade, envolvendo tanta gente, sobre a prática do grampo no País?, disse o espantado diretor da Polícia Federal a um parlamentar. A xeretagem privada e restrita feita por ?uns amigos?, na versão de ACM, extravazou para um grampo estatal e irrestrito que atropelou a privacidade e os direitos de centenas de pessoas autorizados, segundo a PF, por hierarcas da segurança pública da Bahia, da intimidade de ACM, valendo-se de documentos forjados que engambelaram uma juíza do interior do Estado interessada apenas na escuta legal de supostos sequestradores.
A dimensão do crime revelado pela Polícia Federal, e que fez de vítima até a Justiça, levou ISTOÉ à decisão de divulgar – na edição 1741 de 12 de fevereiro – a prova do grampo, distribuída, ?em confiança?, pelo senador. O que parecia ser apenas o abuso inconsequente de um atrevido adversário político revelou o senador, na verdade, como principal suspeito de um crime que feriu os direitos e garantias constitucionais de centenas de brasileiros – dentro e fora da Bahia, dentro e fora da política. O resumo do grampo, com as anotações de próprio punho de ACM, tinha que ser publicado no momento em que ficava evidente a montagem e o uso ilegal de um aparato estatal para benefício privado. Antes mesmo de admitir a autoria intelectual do crime, o senador quebrou o decoro ao distribuir em pessoa o resultado de uma escuta criminosa, feita de forma fraudulenta sob o manto da Justiça, iludida por fraude: no ofício datilografado em que a juíza Tereza Navarro Ribeiro autoriza a escuta de telefones da Maxitel, o número do celular de Geddel é acrescentado à margem, escrito à caneta de forma grosseira.
Anotações – A publicação de trechos do grampo com anotações do senador, em cinco páginas da edição 1741 de ISTOÉ, provocou indignação nacional. Uma primeira listagem apontava 232 telefones grampeados, envolvendo, além de Geddel, o ex-deputado Benito Gama e o atual líder do PT na Câmara, Nelson Pellegrino. Até uma ex-namorada de ACM, a advogada Adriana Barreto, foi vítima do grampo, junto com o atual marido e sua família – o pai, a ex-mulher, o irmão da ex-mulher e o ex-sócio. Antônio Carlos Magalhães entregou pessoalmente o resumo do grampo a ISTOÉ, na tarde do dia 30 de janeiro, 43 dias depois de ser diplomado para um novo mandato, recuperado nas urnas em outubro de 2002 com os votos de três milhões dos 7,5 milhões de eleitores baianos. O inquérito da PF revela que os executores do grampo, mais do que amigos, integravam o alto comando da segurança baiana, sob influência direta de ACM, padrinho político dos ex-governadores César Borges e Otto Alencar e da ex-secretária Kátia Alves.
Erro digital – Não eram simples amigos, mas o próprio aparato do Estado da Bahia. Na semana passada, a Folha de S.Paulo revelou mais alguns detalhes sobre o material a ela repassado pelo senador, em agosto do ano passado. O jornal revela que as gravações eram realizadas diretamente em um computador, pelo processo digital, que elimina o uso de fitas. Mas um erro do araponga, segundo versão de amigos do senador, teria apagado boa parte do CD-ROM que continha os grampos. Técnicos de fora da Bahia teriam sido contratados para tentar recuperar o disco rígido do computador, o que dá a medida da irritação de ACM com a perda do material. Sobraram apenas trechos de 16 conversas, cujo áudio foi ouvido pelo repórter da Folha. O restante do material, transcrito em papel de forma reduzida, com ênfase nas conversas em torno de Geddel, é que acabou sendo distribuído por ACM aos jornalistas de Brasília – e este foi o material publicado, com exclusividade, por ISTOÉ.
Confirmada a extensão do grampo encomendado por ACM, o repórter de ISTOÉ obteve na quinta-feira 6 com o próprio senador mais detalhes. Ele estava em São Paulo e, no diálogo, voltou a confirmar seu envolvimento com o grampo. ACM reconheceu que a gravação ?é ilicitude? e continuou resistindo à publicação do resumo que distribuíra também a outros repórteres, explicando: ?Por que, então eu vou dizer que existe gravação.? Acrescentando mais adiante: ?Porque não tem nenhuma prova de que foi gravado. E que foi gravado, muito menos por mim… Agora, vocês botando isso é que vai provar.?
Falta de decoro – Na conversa, o senador acaba assumindo a quebra de decoro parlamentar, ao reconhecer sua responsabilidade direta na disseminação do grampo – tanto em agosto, em plena campanha eleitoral, quando entregou cópia do material para a Folha de S.Paulo, quanto agora, já diplomado para novo mandato, ao entregar em seu gabinete do Senado um resumo do grampo a ISTOÉ. O senador tinha tanta intimidade com a central de grampo que reafirmou ter ficado ?irritadíssimo? com a notícia de que ?destruíram? um material precioso ?que não precisava destruir?. Havia um motivo adicional para tanta irritação: ?Para mim era bom por causa do Fernando Henrique?, um velho desafeto que mesmo à distância de Paris não deixa de ser seu alvo preferencial. No resumo transcrito do grampo, existem três conversas que envolvem diretamente o ex-presidente. No dia 20 de junho do ano passado, é FHC quem liga para Geddel. Nos dias 15 de junho e 13 de agosto, Geddel é quem toma a iniciativa de ligar para o ex-presidente, segundo o resumo distribuído por ACM com a ressalva a caneta: ?FHC?.
Na investigação da Polícia Federal, ACM é uma peça decisiva para chegar à identidade dos executores do trabalho encomendado por ele.
Para os investigadores da Polícia Federal encarregados de apurar a rede de arapongagem que bisbilhotou a vida privada de 232 pessoas na Bahia, ?já existem fortes indícios? do envolvimento do senador Antônio Carlos Magalhães. Um desses indícios a serem apontados no inquérito oficial, além do grampo contra uma ex-namorada de ACM e seu marido, apareceu no depoimento prestado pela juíza de Itapetinga, Tereza Cristina Navarro Ribeiro, que autorizou as escutas. Ela confirmou que um sequestro na sua cidade estava sendo usado para justificar os números de telefone grampeados. A juíza contou que o delegado-chefe da Polícia Civil, Valdir Barbosa, um amigo de ACM, foi ao cartório de Itapetinga e extraviou do processo um ofício de outubro de 2002, no qual um advogado da TIM/Maxitel apontava discrepâncias entre os números telefônicos apresentados pela juíza. A lista de grampos era levada à operadora pelo técnico de telecomunicações da Secretaria de Segurança, Alan Farias, que assinou o ofício adulterado com o número telefônico de Geddel.
O delegado Gomes disse na quinta-feira 20 que o cerco aos autores materiais do grampo está fechado e o trabalho foi executado pelo técnico Farias e o delegado Barbosa, que devem ser indiciados pela PF. De acordo com Gomes já estão caracterizados os crimes de interceptação ilegal, falsificação de documentos e falsidade ideológica. O delegado da PF contou que os pedidos de quebra de sigilo telefônico feitos pela delegada de Itapetinga, Ângela Labanca, nunca foram renovados para o mesmo número. Mas com os pacotes enviados pelo delegado Barbosa acontecia o contrário: as linhas monitoradas começaram a se repetir. ?Um detalhe intrigante é que renovaram quatro vezes os pedidos relativos ao Plácido (Plácido Faria, marido da ex-amante de ACM). Em 15 dias já dava para concluir que ele não tinha nada a ver com o sequestro de Itapetinga?, disse Gomes, deixando claro que outros motivos levaram ao grampo do casal.
Na quarta-feira 19, um grupo de 20 deputados estaduais da Bahia, liderados pela petista Moema Gramacho, foi ao Congresso para exigir apuração rigorosa. Cobraram CPI dos deputados, agilidade do Conselho de Ética e apoio da PF. Eles circularam, no bem-humorado estilo baiano, com celulares presos com fita adesiva a enormes grampeadores. Bem menos discretos do que os que existem na Bahia de ACM. a de Ação de Graças.”