Embora tenha sido criado, em 2000, por meio de uma parceria entre as Organizações Globo e o Grupo Folha para ser um jornal de economia e disputar um nicho de mercado com grande potencial de crescimento – então ocupado pela Gazeta Mercantil –, o jornal Valor Econômico tem se caracterizado, neste momento de radicalização e partidarização da ‘grande imprensa’, como um dos órgãos mais equilibrados em termos de cobertura política.
Colabora para tal estado de coisas, além da equipe de jornalistas de alto nível que reúne, o fato de, como ‘jornal de economia’, ocupar uma posição distante do tiroteio tripartite entre ‘grande imprensa’, oposição e blogosfera. Assim, sem que os interesses empresariais dos dois grupos mantenedores se façam sentir na mão pesada do diretor de Redação – como ora acontece em outros veículos –, o Valor, que evita incorrer em simplificações maniqueístas ou dar a impressão de estar ao lado desta ou daquela corrente política, tem provado que é possível produzir um jornalismo de qualidade na ‘grande imprensa’ hoje em dia.
Entrevista histórica
O ponto culminante na trajetória do jornal foi, até agora, a entrevista com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na quinta-feira (17/9) – a primeira após a crise global –, conduzida pelos repórteres Claudia Safatle, Maria Cristina Fernandes, Cristiano Romero e Raymundo Costa.
O primeiro ponto positivo da entrevista é técnico e faz-se sentir logo na abertura do texto: sua edição. Ao contrário do que ocorre com uma frequência irritante na imprensa brasileira de modo geral – e na Folha de S. Paulo particularmente –, o texto que introduz a entrevista a Lula não obedece à lógica de selecionar uma ou duas declarações potencialmente polêmicas e, retirando-as de seu contexto original, explorá-las visando o escândalo. Ao contrário: a introdução publicada pelo Valor, mais longa do que a habitual nos ‘grandes jornais’, produz uma síntese dos principais pontos, polêmicos ou não, da entrevista. Ou seja, cumpre a função que um texto introdutório deve cumprir – fato que se tornou um feito no atual estágio do jornalismo brasileiro.
Lula nunca esteve tão à vontade, tão fluente numa entrevista – uma das mais longas das poucas que concedeu desde que assumiu o cargo. A equipe de repórteres, por sua vez, foi incisiva sem ser deselegante, fez apostos, repisou alguns temas quando Lula deles tentou se esquivar. Não foi conivente nem, o que tem sido mais frequente em nossa imprensa, agressiva à deselegância.
Ser híbrido
O personagem que emerge da entrevista é um ser híbrido: o presidente em final de mandato, querendo eleger sua sucessora, ali se apresenta inteiro, mas, um tanto paradoxalmente, como se uma metamorfose estivesse em gestação, já começa a dar lugar ao ex-presidente que tenta ver seu legado com distanciamento crítico.
Por se tratar de um presidente no final de seu segundo mandato, trata-se de uma entrevista atípica. Em primeiro lugar porque o entrevistado, com índices de aprovação em queda, mas ainda surpreendentemente altos, está longe de ser um ‘pato manco’ (lame duck) como, por exemplo, George Bush no ano que precedeu as eleições vencidas por Barack Obama.
Em segundo porque, ao contrário do que seria natural nesses casos, a entrevista é antes um balanço positivo apontando para o futuro do que uma frustrante prestação de contas sobre oportunidades perdidas e do que não pôde ser realizado – como nos acostumamos a ver no Brasil desde a década de 1960. Isto porque, como repisaria a pré-candidata Dilma Rousseff em entrevista à Folha no domingo (20/09), seria obtuso negar que o Brasil de 2002 e o de 2010 são países com perspectivas marcadamente diferentes.
Não que a entrevista traga propriamente ‘furos’ capazes de provocar estupefação. Traz, sim, algumas novidades, como um projeto de ‘Consolidação das Leis Sociais’, à maneira da CLT varguista, visando institucionalizar a cesta de políticas públicas capitaneadas pelo Bolsa Família, e anúncio do projeto de integração do país por fibra ótica como forma de promover a inclusão digital.
A atuação dos entrevistadores
Em duas ocasiões, a equipe de entrevistadores deixa passar pontos que poderiam ter sido repisados. A primeira delas é quando Lula afirma que mandou duas reformas tributárias ao Congresso e, referindo-se ao ex-presidente Jânio Quadros, afirma que ‘o ‘inimigo oculto’ não deixa que sejam aprovadas’. Ora, que inimigo oculto é esse? Os leitores certamente gostariam de, nominalmente, saber.
O segundo foi quando Lula, instado a comparar Serra e Dilma (a favor de quem já havia esgrimido com destreza duas perguntas ariscas) tergiversou. São dois pontos pouco relevantes da entrevista – e que não envolvem diretamente o presidente – mas, do ponto de vista jornalístico, poderiam ter sido aprofundados.
Além disso, fica evidente que faltou uma pergunta sobre a questão ambiental – o calcanhar de Aquiles da gestão Lula. Sua não ocorrência não deixa de ser particularmente demeritória para um jornal de economia, o qual pode passar a impressão de ter uma visão anacrônica da relação entre desenvolvimento e ecologia (crítica que, pessoalmente, não endosaria em relação ao Valor).
Crítica ao Estado mínimo
A entrevista começa morna, cordial, com a agenda do pré-sal e os projetos de inclusão digital e aumento de verbas para a Copa; logo esquenta e quase atinge o ponto de fervura com o longo debate sobre privatização e a relação entre governo e empresas; e vai paulatinamente arrefecendo à medida que as respostas e a de certo modo surpreendente fluência do presidente vão desarmando os repórteres.
A indefectível metáfora futebolística, que tanto irrita uns (e diverte outros) foi reservada para um momento climático, quando Lula afirma ter revertido, como forma de debelar a crise, a decisão da Petrobrás de adiar investimentos: ‘Quem sustentou [sic] essa crise foi o governo e o povo pobre, porque alguns setores empresariais brasileiros pisaram no breque de forma desnecessária’. Formalmente a frase se ressente da má escolha vocabular, mas seu sentido é claro – e, além do grande potencial eleitoral que tal discurso embute, fornece um retrato de nossa elite empresarial.
Há um momento particularmente curioso na entrevista, quando Lula, ao final de uma resposta, contra-ataca com uma pergunta: ‘Você sabe quanto o país inteiro gastou em 2002 em saneamento?’.
‘Valor: Quanto?
Lula: R$ 262 milhões. Então, estamos colocando num bairro de Fortaleza o que foi colocado no Brasil inteiro naquele ano.’
Ou seja, o entrevistado, sem que tenha sido inquirido sobre o tema, cria uma oportunidade de, a um tempo, realçar o investimento realizado pelo seu próprio governo e, de quebra, pela comparação, alfinetar a presidência de Fernando Henrique Cardoso. Goste-se ou não de Lula, como estratégia discursiva é irretocável.
Outro ponto alto da entrevista é quando, inquirido se, por ser a Vale uma empresa nacional, não seria indevida sua intromissão nos negócios dela, questiona o axioma neoliberal de que a esfera privada, por sê-la, estaria descomprometida de agir a favor dos interesses do país: ‘Pode ser privada ou pública. O interesse do país está em primeiro lugar (…) Os empresários têm tanta obrigação de serem brasileiros e nacionalistas quanto eu!’.
Seguindo na mesma linha com a crítica ao Estado mínimo, o presidente demonstra que ele e seu grupo político parecem ter achado a linha argumentativa e o tom certos para sublinhar, a um só tempo, as diferenças com o governo anterior e com a concepção econômica do principal adversário político nas próximas eleição (constatação que a referida entrevista de Dilma à Folha corrobora). Mais: demonstra ter também à disposição uma linha de ataque que tem tudo para, se devidamente explorado por um marqueteiro com um mínimo de competência, ser utilizado com resultados efetivos em favor de sua candidata.
Novo paradigma
Eis porque a entrevista de Lula ao Valor é histórica: respaldado pela internacionalmente reconhecida eficiência na administração da crise, o presidente ousa enfrentar os dogmas neoliberais hegemônicos desde a ascensão de Fernando Collor e assumir um novo discurso de administração pública visando instaurar um novo paradigma, baseado em uma maior autonomia na ação do Estado, e na perda do receio de se assumir nacionalista. Demarca, assim, para os que insistiam em não ver, as diferenças essenciais na concepção de Estado e na condução da política econômica entre o governo de Lula e o de FHC.
Não é, certamente, uma posição desprovida de contradições e perigos, mas ao menos os repõe em nova clave, em discordância com a ortodoxia neoliberal. E já não era sem tempo: não apenas porque os governos que antecederam o atual provaram, de forma amarga para a população mais pobre, a ineficiência de tal ideário, mas, sobretudo, porque a crise global deriva precisamente da crença cega nos mercado como regulador das relações econômicas.
No restante da entrevista, Lula abordaria temas como o desenvolvimento industrial por meio do pré-sal, a primazia do controle sobre a inflação, a nova política externa multilateral e as relações com a França, demonstrando uma capacidade analítica afiada e uma concepção consolidada das conquistas e desafios que se apresentam ao país. Mas o essencial já havia sido tido.
Devido a essa capacidade analítica, à visão estratégica do país e de sua inserção no contexto político-econômico global e ao estabelecimento de um novo paradigma público distinto do modelo neoliberal, ao final – simpatize-se ou não com a figura de Lula, apoie-se ou não a sua gestão – o que emerge da entrevista é uma avis rara, há décadas ausente da política nacional: um estadista.
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Jornalista e cineasta, doutorando em Comunicação pela UFF; seu blog