Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

No interior do salão de espelhos do Kremlin

Para Margo Gontar, era mais fácil trabalhar com as imagens de crianças mortas. Elas estavam em todas as telas do seu computador – nos sites de notícias e nas redes sociais – ao lado de títulos que atribuíam as mortes a gangues fascistas ucranianas treinadas pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Era o início de 2014, a Crimeia acabara de ser tomada por soldados que pareciam russos, falavam como russos, mas não usavam as insígnias nacionais russas e, como Vladimir Putin anunciava ao mundo todo, não eram russos. O leste da Ucrânia começava a ser tomado pelos separatistas. Gontar tentava revidar.

Ela localizava em geral imagens originais de gente morta numa simples busca no Google. Na realidade, algumas das fotos eram de outras guerras, mais antigas. Outras, ainda, eram tiradas de cenas de crimes que nada tinham a ver com a Ucrânia ou até mesmo de filmes. Margo postou sua pesquisa em um site chamado StopFake, cujo objetivo é destruir alguns mitos, criado em março por voluntários como ela na escola de jornalismo da Universidade Mohyla, em Kiev. Dava uma sensação de satisfação poder separar a verdade da mentira, ter alguma certeza em meio a tanta confusão.

Às vezes, no entanto, as coisas ficavam mais complicadas. Os noticiários transmitidos pela televisão estatal russa começaram a dar muito destaque a mulheres gorduchas aos prantos e a velhos que falavam de nacionalistas ucranianos que espancavam cidadãos de língua russa. Os testemunhos pareciam absolutamente autênticos. Mas logo Margo notou que as mesmas mulheres gorduchas e os homens machucados apareciam em diferentes noticiários, identificados como pessoas diferentes. Em uma notícia, uma mulher era identificada como “residente em Odessa”. Na notícia seguinte, a mesma mulher era “mãe de um soldado”. Mais adiante, era uma “moradora de Kharkiv” e depois “ativista anti-Maidan”.

Em julho, depois do acidente com o voo MH17 da Malaysia Airlines sobre o leste da Ucrânia, Margo pesquisou na internet e selecionou trechos de teorias da conspiração pró-russas. Ela encontrou no Twitter o perfil de um controlador de tráfego aéreo que teria identificado jatos militares ucranianos seguindo o avião, mas não achou nenhuma prova de que o controlador existisse realmente. Achou dezenas de sites em russo e em inglês que, quase ao mesmo tempo, afirmavam que o MH17 fora derrubado pelos EUA numa tentativa desastrada de atingir o avião de Vladimir Putin. Líderes separatistas russos na Ucrânia divulgaram até mesmo notícias segundo as quais a bordo do avião só havia cadáveres, colocados antes da decolagem – um autêntico enredo da série de Sherlock Holmes da BBC.

As histórias eram claramente grotescas, como se seus criadores não tivessem a menor preocupação de serem apanhados e apenas quisessem desviar a atenção das evidências de que o avião havia sido derrubado por milícias apoiadas pelos russos. Margo começou a indagar se estaria caindo na armadilha do Kremlin dedicando todo esse tempo à tentativa de desmascarar suas histórias obviamente falsas.

Não demorou a perceber que ela e o StopFake estavam se tornando parte da história. A mídia russa já citava o StopFake em seus artigos, mas como se Margo Gontar apresentasse a história fictícia como uma verdade, em lugar de desmascará-la. Ela tinha a sensação de se ver refletida num espelho de cabeça para baixo.

Nestes momentos, ela sempre recorria à imprensa ocidental em busca de algo sólido, mas essa também começava a tropeçar. Sempre que fontes como a BBC ou o Tagesspiegel publicavam um artigo, sentiam-se na obrigação de apresentar a versão dos fatos fornecida pelo Kremlin – fascistas, conspiração ocidental, etc. – procurando dar o outro lado da história em busca de certo equilíbrio. Margo pensou, então, se não seria inútil ela buscar alguma certeza. Se a verdade mudava continuamente sob seus olhos e sempre havia o outro lado em todas as histórias, sobraria algo sólido para ela se orientar?

Depois de trabalhar durante meses no StopFake, ela passou a duvidar de tudo. Quem poderia afirmar que a fotografia “original” de uma criança morta que ela encontrara era autêntica? Ou será que também havia sido plantada? A realidade parecia maleável, esponjosa. Tudo o que os russos faziam não era mera propaganda com a finalidade de convencer e passível de ser desmascarada. Era completamente diferente: não só não podia ser refutado, como parecia dissolver a própria ideia de prova.

Tática

No fim do ano passado, encontrei um manual russo intitulado Informação e Operações da Guerra Psicológica: Breve Enciclopédia e Guia de Referência (A edição de 2011, atribuída a Veprintsev et al. e publicada em Moscou pela Hotline Telecom, pode ser adquirida online por 348 rublos). O livro destina-se a “estudantes, políticos especialistas em tecnologia, aos serviços de segurança do Estado e a funcionários públicos” – uma espécie de manual para jovens guerreiros da informação. As armas da informação, sugere o texto, “produzem uma espécie de radiação invisível” sobre seus alvos.

“A população nem sequer percebe que está sendo manipulada. Portanto, o Estado não aciona seus mecanismos de defesa.” Enquanto a guerra tradicional emprega canhões e mísseis, prossegue a enciclopédia, “a guerra da informação é maleável e nós nunca podemos prever o ângulo ou os instrumentos de um ataque”.

A enciclopédia de 495 páginas continha uma introdução à guerra psicológica pela informação, um glossário de termos básicos e gráficos detalhados que descreviam os métodos e as estratégias de operações defensivas e ofensivas, incluindo “a trapaça operacional” (maskirovka), a “influência matemático-programática”, a “desinformação”, a “imitação, e “a radiodifusão e a TV”. Na “guerra normal”, explica a enciclopédia, “a vitória se fundamenta no sim ou no não; na guerra da informação, ela pode ser parcial. Os oponentes podem lutar a respeito de determinados temas sem que as pessoas tenham consciência disso”.

Eu sempre imaginara que a expressão “guerra da informação” se referia a algum tipo de debate geopolítico em que propagandistas russos de um lado e propagandistas ocidentais do outro tentavam convencer os que se encontravam no meio do conflito de que o seu lado era o certo. Mas a enciclopédia sugeria algo mais abrangente. A guerra da informação não teria tanto a ver com métodos de persuasão quanto com a capacidade de “influenciar as relações sociais” e de “controlar as fontes das reservas estratégicas”.

As armas invisíveis agiriam como a radiação, passando por cima das respostas biológicas e apoderando-se das reservas estratégicas? O texto se assemelhava mais a uma confusa ficção científica do que a um guia para estudantes e funcionários públicos.

Aplicação

Quando me debrucei sobre a recente teoria militar russa – nos livros de história e nas revistas – a linguagem estranha da enciclopédia começou a fazer mais sentido. A Rússia se preocupava desde o fim da Guerra Fria com a necessidade de equiparar sua capacidade à dos Estados Unidos e de seus aliados. Em 1999, o marechal Igor Sergeev, então ministro da Defesa, admitiu que a Rússia não tinha condições de competir militarmente com o Ocidente. Ao contrário, sugeriu, deveria buscar “caminhos revolucionários” e “direções assimétricas”. Ao longo dos dez anos seguintes, os militares e os teóricos da inteligência russos começaram a elaborar ideias mais consistentes sobre a guerra não física – afirmando que a Rússia já estava sendo atacada, em termos semelhantes, pelas ONGs e pela mídia ocidental.

Em 2013, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da Federação Russa, Valery Gerasimov, afirmou que agora era possível derrotar inimigos lançando mão de uma “combinação de campanhas políticas, econômicas, da informação, tecnológicas e ecológicas”. Isso fazia parte de uma visão da guerra que não se encontrava no reino do contato físico, mas no que os teóricos russos descreviam como a “psico-esfera”. Essas guerras do futuro seriam travadas não no campo de batalha, mas nas mentes dos homens.

A desinformação e as intervenções sobre a psicologia dos indivíduos são tão antigas quanto o Cavalo de Troia. Mas o que distinguia o enfoque do Kremlin daquele de seus rivais ocidentais era a nova ênfase na “psico-esfera” como o teatro no qual ocorria o conflito. A informação já não era um elemento auxiliar de uma luta física, ou de uma invasão militar: agora, ela se tornava um fim em si mesma. De fato, como a enciclopédia russa concluía: “Em muitos lugares, a guerra da informação substitui a guerra tradicional”.

A ideia é clara. Mas o que obteria de fato a “radiação invisível”? Seria uma simples tentativa de dotar de certa dureza o que os americanos chamam de “poder brando”, favorecido pela aproximação cultural e pela diplomacia? Ou seria uma nova forma de guerra – que permitiria levar a melhor sobre os inimigos da Rússia sem disparar nenhum tiro?

Temores

No fim do ano passado, viajei para a Estônia, pequeno país do Báltico com população de 1,3 milhão, a 150 quilômetros de São Petersburgo. Depois da anexação russa da Crimeia, em março de 2014, muito se falou sobre a possibilidade de a Estônia ser a próxima anexada. “Hoje, a Crimeia. Amanhã, a Estônia”, dizia uma manchete no Spectator. Alguns meses antes da minha visita, o presidente Barack Obama havia visitado a capital, Tallin, e declarara que os americanos estavam empenhados em garantir a segurança do país. “A defesa de Tallin, Riga e Vilnius é tão importante quanto a defesa de Berlim, Paris e Londres”, disse Obama. “Portanto, se neste momento vocês perguntarem novamente quem virá ajudá-los, já sabem a resposta: a aliança da Otan e as Forças Armadas dos Estados Unidos da América, bem aqui, presentes, agora.”

Enquanto ao lado de Toomas Ilves, o presidente da Estônia, eu percorria um longo corredor em sua residência em Tallin, ele foi me indicando os retratos dos homens que governaram o país durante o primeiro período de independência – entre a queda do Império Russo, em 1917, e sua ocupação pelos soviéticos durante a 2.ª Guerra. Eles não tiveram um destino feliz: “Esse foi morto, esse outro desapareceu – aparentemente, assassinado – esse aqui foi deportado”, explicava Ilves diante de cada quadro.

Ilves vestia a roupa de tweed e a gravata borboleta que são suas marcas registradas, como contraponto à sua missão de tornar a Estônia o país mais progressista da Europa no campo digital. O governo declarou o acesso à internet um direito humano, os cidadãos podem votar, obter receitas médicas, lidar com impostos e com os bancos eletronicamente e pagar o estacionamento com um celular. Um novo programa escolar exige que todos os alunos aprendam a programar desde os 7 anos de idade. Ilves, que provavelmente usa o Twitter mais do que qualquer outro chefe de Estado, costuma referir-se ao que há de mais moderno em termos de tecnologia em suas conversas e discursos.

Esse projeto, intitulado “e-Stonia”, é prático – a busca de um nicho econômico –, mas também simbólico. É uma maneira de desvincular o país do seu estereótipo soviético de província atrasada de Moscou. O rompimento com o passado aparentemente estava concluído quando a Estônia ingressou na Otan, em 2004 – momento com o qual se pretendeu assinalar o surgimento de uma nova Estônia digital no cenário internacional, livre da coerção russa para sempre.

População

Desde a era soviética, todos os anos, no dia 9 de maio, conhecido como o dia da Vitória na 2.ª Guerra, os russos nacionalistas e veteranos de guerra que vivem na Estônia costumavam se reunir para comemorar no centro de Tallin, em frente à estátua do Soldado de Bronze – um enorme e belo soldado de tipo ariano, que celebrava a vitória soviética contra os nazistas. Cerca de um terço dos estonianos é de origem russa, ou pelo menos é composto fundamentalmente de russófonos. A imensa maioria é formada por descendentes de russos que foram trazidos da União Soviética depois da 2.ª Guerra, enquanto milhares de estonianos foram deportados para os gulags e espalhados por toda a URSS.

Entre 1945 e 1991, o número de russos na Estônia cresceu de 23 mil para 475 mil. Depois do colapso da União Soviética, as novas leis sobre cidadania exigiram que os russos que chegaram depois de 1945 e seus descendentes nascidos na Estônia soviética fossem submetidos a testes em língua estoniana para obter a cidadania. As tensões se intensificaram. Muitos russos, ou seus pais, não se consideram colonizadores. Segundo o discurso oficial do Kremlin, a Estônia renunciou “voluntariamente” à sua independência em 1941. Alguns se sentiam cidadãos de segunda classe na nova Estônia. Por que as receitas médicas não eram redigidas também em russo? Por que, nas cidades de língua russa, a sinalização das ruas não podia ser em russo?

Então, por ocasião das reuniões dos nacionalistas russos diante do Soldado de Bronze em que se entoavam canções soviéticas e a estátua era enrolada em bandeiras, os nacionalistas estonianos começaram a organizar manifestações contrárias no mesmo local.

Em 2006, um escritor nacionalista estoniano ameaçou explodir a estátua. Em março de 2007, o Parlamento aprovou em votação a transferência da estátua para um cemitério militar – oficialmente, para preservar a paz. Mas os políticos e a mídia russos reagiram enfurecidos. “Os líderes estonianos colaboram com o fascismo”, disse o prefeito de Moscou. “A situação é deplorável”, afirmou o chanceler. A imprensa russa apelidou o país de “eSStonia”. Um grupo armado que se denominava Ronda Noturna acampou ao redor do Soldado de Bronze para protegê-lo e impedir a remoção.

Na noite de 26 de abril, quando a estátua estava prestes a ser retirada, multidões de russos passaram a atirar tijolos e garrafas contra a polícia estoniana. Eclodiram tumultos. Houve saques em massa. Um homem morreu. Segundo noticiou a mídia russa, que é popular na Estônia, foi morto pela polícia (nada disso), os estonianos o espancaram até a morte no porto das balsas (não era verdade), os russos foram torturados e obrigados a tomar psicotrópicos durante o interrogatório (uma inverdade).

No dia seguinte, funcionários do governo, dos jornais e de bancos estonianos descobriram que não podiam trabalhar, pois seus computadores haviam sofrido o maior ataque cibernético registrado até então. A “e-Stonia” ficara offline.

Acusações

Hoje, na Estônia, muitos estão convencidos de que a crise foi coordenada a partir de Moscou. Mas não é possível provar nada. Depois do ataque cibernético, um parlamentar nacionalista russo, o assessor de relações públicas Sergey Markov, disse à imprensa que seu assistente coordenara o ataque com a ajuda de “hackers patrióticos”, mas ele agira independentemente do Kremlin. Os serviços de segurança estonianos declararam ter observado reuniões de integrantes da Ronda Noturna com membros da embaixada russa. Mas provar que a agitação fora coordenada pelo Kremlin era uma coisa muito diferente.

Tudo o que se poderia dizer com certeza era que alguém queria que o governo estoniano se conscientizasse de que não estava tão seguro quanto imaginava. Mas, seguro em relação a que? “Às vezes, ficamos pensando se o objetivo dos ataques não seria apenas nos tornar paranoicos e pouco dignos da confiança de nossos aliados da Otan”, Ilves sugeriu, “e desse modo minar a confiança na aliança”.

Um conceito tático que serve de orientação na guerra da informação russa é o “controle reflexo”. Segundo Timothy L. Thomas, analista do Departamento de Estudos Militares Exteriores do Exército dos EUA e especialista em história e teoria militar russa recente, o controle reflexo implica “transmitir a um adversário informações especialmente elaboradas a fim de levá-lo a tomar voluntariamente decisões predeterminadas por quem iniciou a ação”. Em outras palavras, conhecer os padrões de comportamento de seu adversário tão profundamente a ponto de induzi-lo a fazer o que se quer.

Um exemplo notório disso durante a Guerra Fria eram as paradas militares anuais na Praça Vermelha, quando a URSS exibia ao mundo suas armas nucleares e seus mísseis balísticos. Os soviéticos sabiam que esse era um dos raros momentos em que os analistas ocidentais tinham a possibilidade de ver seu arsenal e faziam desfilar falsas armas nucleares com ogivas excepcionalmente grandes destinadas a difundir o pânico no Ocidente diante do poderio e da inovação do armamento soviético. “O objetivo”, escreve Thomas, “era levar os cientistas estrangeiros, que queriam copiar a tecnologia avançada, a um beco sem saída, com desperdício de tempo e de dinheiro preciosos”. Na era soviética, o “controle reflexo” tornou-se tema de amplos estudos acadêmicos, cujo pioneiro foi VA Lefebvre, um psicólogo matemático que, segundo Thomas, “descreveu o controle reflexo no contexto e na lógica de um jogo reflexo”. No início dos anos 2000, o Instituto Russo de Psicologia publicou uma revista semestral dedicada a esse tópico, com artigos sobre a álgebra da consciência e os “jogos reflexos entre pessoas e robôs”.

Aplicado ao panorama da guerra da informação, “controle reflexo” significa que os estonianos ficam adivinhando as intenções do Kremlin, paralisados pela incapacidade de formular uma resposta a provocações cujas origens e objetivos é impossível determinar – na realidade, cujos objetivos talvez se reduzam a induzir uma reação excessiva. “Quando os políticos russos fazem ameaças alertando para a capacidade do seu país de conquistar a Estônia, quer dizer que a ocuparão de verdade?”, questionou Iivi Masso, assessora de segurança de Ilves quando ela visitou conosco a residência do presidente. “Será que eles procuram apenas nos desencorajar? Ou querem que os jornalistas ocidentais os citem, indicando aos mercados que não somos um país seguro, arruinando o clima para os investimentos?”

Dilema

Alguns meses após minha visita à Estônia, participei de um seminário sobre política organizado pela Otan em Kiev. O local em que o seminário foi realizado parecia o salão de baile de um grande hotel, com colunas ornamentadas e tetos espelhados. Na frente do público estava um escocês baixinho e, atrás dele, uma apresentação em PowerPoint. Era Mark Laity, antigo correspondente da BBC para a área da Defesa que agora dirige o departamento de comunicações estratégicas da Otan.

Um fluxograma foi projetado na enorme tela atrás dele para explicar os elementos básicos de uma narrativa: como o conflito leva ao desejo de uma solução, que é alcançada por meio de “ações, participantes e eventos”. O tipo de coisa que os estudantes aprendem no primeiro ano da escola de cinema ou nas aulas de teoria literária nos primeiros anos da faculdade.

A apresentação ressaltava que o mundo devia ser visto como um “conjunto de histórias” dentro de uma “narrativa”. Para os participantes, especialmente funcionários públicos e militares, essa era uma nova maneira de olhar o mundo. Atentamente, eles faziam anotações.

A Otan continua invencível no campo de batalha, mas Laity quis deixar claro que a “paisagem narrativa” representava um novo e desconhecido espaço de luta – no qual a aliança não estava em clara posição de vantagem. Uma concepção que ficou mais nítida no ano passado, quando o Kremlin pareceu testar os limites da Otan, às vezes de maneira sutil, outras vezes abertamente. O artigo 5.º do tratado de constituição da Aliança Atlântica estabelece que um ataque militar contra qualquer nação membro da Otan constitui um ataque contra todas. Obama citou o artigo 5.º em seu discurso em Tallin, descrevendo-o como “cristalino”. Mas e se fosse possível socavar esse princípio sem disparar um único tiro? Se fosse lançado um ciberataque contra a Bulgária por autores desconhecidos simpáticos à Rússia, o artigo 5.º seria invocado? E no caso de uma minúscula insurreição numa cidade de fronteira do Báltico, organizada por moradores locais com vínculos suspeitos com os serviços de segurança russos? Todos os países da Otan partiriam para a guerra para manter o serviço bancário online da Estônia?

Desde o início do conflito na Ucrânia, o Kremlin tem procurado burlar e provocar seus vizinhos ocidentais utilizando meios mais convencionais. A Rússia, naturalmente, insiste que o contrário é verdadeiro. Em 2010, um navio de guerra russo foi avistado em águas da Letônia. Em 2014, foram 40. Aviões da Letônia decolaram rapidamente cinco vezes em 2010 e em 2014 mais de cem vezes para interceptar aeronaves russas que invadiram o espaço aéreo do país báltico. Ao mesmo tempo, em fevereiro, bombardeiros russos foram vistos na costa da Cornualha.

Todas essas manobras deixaram a Otan num impasse. Uma falta de reação mostraria que a organização é inútil. Daí a necessidade da viagem de Obama a Tallin, ou as palavras duras usadas pelo secretário da Defesa britânico, Philip Hammond, em março, declarando que “a Rússia tem potencial para se tornar a maior ameaça à nossa segurança”. Mas, por outro lado, o Kremlin sabia perfeitamente que a Otan teria de reagir. E se não for necessário mais do que isso para fazer com que a Otan pareça uma organização impotente?

Respostas

Se a batalha mudar para a “esfera psicológica”, a supremacia militar da Otan é irrelevante e, na verdade, seria o tendão de Aquiles, pois a força de fato da aliança a torna mais inepta e mais difícil de subverter. No inverno passado, reuni-me com Rick Stengel, subsecretário de Estado dos Estados Unidos para assuntos públicos e diplomáticos e um dos responsáveis pela formulação da resposta americana às ambíguas operações da Rússia no campo da informação.

Stengel, antigo editor da Time Magazine, trabalha no gabinete em Washington onde George Marshall projetou a reconstrução da Europa após a 2.ª Guerra. Nos fins de semana, ele viaja para Nova York, onde o encontrei no seu café preferido em Upper West Side.

“Na Time, meu lema era: ‘explicamos o mundo para os EUA e os EUA para o mundo’“, disse ele. Stengel considera que seu novo trabalho é a aplicação dessa filosofia num cenário mais amplo, em que a narrativa paciente de uma história, com base em fatos reconhecidos, pode ainda triunfar. Desde a anexação da Crimeia, sua equipe tem compilado listas de fatos que ela faz circular nas redes sociais para tentar contradizer as desinformações do Kremlin – uma espécie de versão oficial do governo americano do site ucraniano StopFake. Stengel chama isso de “monitoramento da veracidade da linha do Kremlin”.

Sua atenção não se limita à Rússia. O Departamento de Estado lançou também uma campanha no Twitter contra o Estado Islâmico (EI), denominada “Think Again Turn Away”, cujo objetivo é apresentar “algumas verdades sobre terrorismo” para desencorajar recrutas de se juntar ao grupo extremista. Diante do alto número de recrutamentos pelo EI, não se sabe com certeza se a campanha vem tendo muito sucesso. É um enfoque fundamentado nas premissas do jornalismo liberal: se apresentar melhores argumentos e evidências mais vigorosas, Stengel acredita que poderá vencer o debate.

Quando me encontrei com ele, em novembro, cartazes da Russia Today (RT) – emissora internacional de notícias russa promovida pelo governo do país – estavam espalhados por Manhattan. A RT America, que iniciou suas transmissões em 2010, havia lançado uma campanha publicitária prometendo uma visão alternativa da mídia convencional americana. “Antes de assumir o cargo, jamais havia assistido à RT”, disse ele. O canal é financiado pelo Kremlin, tem um orçamento estimado em US$ 230 milhões por ano e serviços em inglês, alemão, espanhol e árabe. Segundo o próprio canal, ele atinge 700 milhões de telespectadores e seus videoclipes já foram vistos online por mais de 2 milhões de pessoas, o que o torna “o maior provedor de notícias do YouTube”.

O mantra de Margarita Simonyan, que dirige a RT, é: “não existem reportagens objetivas”. O que pode ser verdade, mas a missão da RT é levar o altruísmo a seu limite máximo. Num momento em que muitos no Ocidente perderam a fé na integridade e na autoridade das grandes organizações de mídia, a RT parece devotada à proposta de que, como a noção de objetividade evaporou, todas as reportagens são igualmente verdadeiras. Nos EUA, onde as pesquisas mostram que a confiança na mídia jamais recuperou os níveis observados antes da invasão do Iraque em 2003, os cartazes espalhados mostravam George W. Bush festejando sua “Missão Cumprida” com a legenda: “Isso é o que ocorre quando não existe uma segunda opinião”. Era difícil não concordar com a mensagem.

Mas os cartazes não oferecem nenhuma razão para confiar na rede de TV de Putin. Sua principal mensagem é que você não deve confiar na mídia ocidental. Mas também é muito fácil mostrar que a cobertura da RT está repleta de teorias de conspiração e mentiras risíveis. Um programa exibiu documentos falsos para “provar” que os Estados Unidos estavam orientando o governo ucraniano a limpar etnicamente locutores russos da Ucrânia ocidental. Outra reportagem da RT procurava investigar se a CIA tinha inventado o Ebola para usar o vírus como arma contra nações em desenvolvimento. Os apresentadores raramente contestam as opiniões de “especialistas” durante discussões de temas como o conflito da Síria – onde Moscou tem apoiado o presidente Bashar Assad. Um convidado regular do programa sugeriu que a guerra civil na Síria havia sido “planejada em 1997 por Paul Wolfowitz”, ao passo que outro descreveu o número de mortes como “uma produção conjunta da CIA, do MI6 e do Mossad”.

Desinformação

As fragilidades da RT estão muito bem documentadas, em especial pelo StopFake, mas a credibilidade jornalística não é o que a rede almeja. Se o compromisso com a impossibilidade da reportagem objetiva significa que qualquer posição, mesmo que bizarra, não é nem melhor nem pior do que qualquer outra, o efeito derradeiro, que pode ser o visado, é sugerir que todas as organizações de mídia são igualmente não fidedignas – e realçar qualquer erro jornalístico cometido pela BBC ou pelo New York Times como sinal indiscutível de que esses meios de comunicação são lacaios dos próprios governos.

As fantasias conspiratórias que preenchem o tempo de transmissão da RT lembram as chamadas “medidas ativas”, táticas psicológicas da velha escola da KGB que o desertor soviético Oleg Kalugin descreveu como “o coração e a alma dos serviços de inteligência”. Departamentos dedicados às medidas ativas não coletavam informações de inteligência. Segundo Kalugin, o objetivo era a “subversão, provocar uma cisão dentro da comunidade ocidental, particularmente na Otan, e enfraquecer os Estados Unidos”. Uma tática favorita era plantar histórias falsas, a “dezinformatsiya”, em novas agências de notícias internacionais. Uma reportagem no início dos anos 80 apresentou uma prova médica meticulosamente inventada de que a CIA havia inventado a aids para exterminar a população afro-americana.

Se outrora a KGB gastava meses, ou anos, plantando cuidadosamente informações falsas bem fabricadas por meio de agentes secretos no Ocidente, a nova “desinformatsiya” é barata, grosseira e rápida, criada em segundos e colocada online. O objetivo não é oferecer verdades alternativas, mas criar confusão em torno da verdade. Adotando um estilo similar, o objetivo dos “trolls” – gíria da internet usada para designar pessoas que provocam os membros de uma comunidade por meio de mensagens controvertidas ou irrelevantes – profissionais online pró-Putin que aparecem nas seções de comentários do site é tornar impossível qualquer conversa construtiva.

Como Shaun Walker reportou recentemente, em uma “fábrica de trolls” em São Petersburgo os funcionários recebem 500 libras por mês para fingirem ser usuários regulares da internet na defesa de Putin, postando fotos ofensivas de líderes estrangeiros e difundindo teorias de conspiração. Uma delas, por exemplo, era a de que os manifestantes ucranianos da Praça Maidan se alimentavam de chá misturado com drogas, o que os teria levado a derrubar o governo ucraniano favorável a Moscou.

Artilharia

Reunidos, todos esses esforços constituem uma espécie de sabotagem linguística da infraestrutura da razão. Se a real possibilidade da argumentação racional se esvai numa nuvem de incerteza, não há motivos para o debate – e o que se espera é que o público decida que não existe nenhum sentido em tentar escolher o vencedor ou até mesmo se preocupar em prestar atenção.

A disposição mental que a guerra de informação do Kremlin pretende incentivar se ajusta muito bem aos cidadãos europeus neste momento particular. Num recente estudo intitulado “The Conspirational Mindset in an Age of Transition” (A mentalidade conspiratória numa era de transição), que examina a proliferação das teorias de conspiração na França, Hungria e Eslováquia, uma equipe de pesquisadores europeus concluiu que “o atual período de transição na Europa resultou numa maior incerteza sobre identidades coletivas e numa perceptível perda de controle. Por outro lado, essas são condições ideais para a proliferação da conspiração.” As tendências conspiratórias são especialmente fortes entre partidários de partidos nacionalistas de direita e agremiações populistas, como a Frente Nacional (FN) na França ou o Jobbik na Hungria – que apoiam e são apoiados por Moscou. Marine Le Pen, da FN, admitiu em novembro ter recebido nove milhões de euros de um banco de Moscou cujo proprietário é ligado ao Kremlin. Ela insistiu que o empréstimo não teve nada a ver com o seu apoio à anexação da Crimeia por Putin. Cerca de 20% dos membros do Parlamento Europeu hoje pertencem a partidos de extrema-direita simpáticos a Moscou.

A importância desses partidos aumentou em conjunto com o declínio da confiança nos governos nacionais. Em momentos de incerteza financeira e geopolítica, as pessoas adotam teorias bizarras para explicar as crises. Seria essa a “radiação invisível” à qual a enciclopédia russa da guerra psicológica da informação se referia? Quando a ideia do discurso racional é corroída, tudo o que resta é o espetáculo. O lado que narra belas histórias – e o faz de modo mais agressivo, sem escrúpulos quanto à sua veracidade – derrotará quem tentar de maneira ordenada “provar” um fato.

Qualquer coisa mais que possamos dizer sobre a estratégia de informação do Kremlin sem dúvida está em sintonia com o espírito do tempo, o que também é visível nos EUA e na Grã-Bretanha, onde o que Stephen Colbert memoravelmente chamou de “truthiness” (uma espécie de “verdade subjetiva” ou “instintiva”) pode derrubar um discurso fundamentado em fatos.

“Existem dois possíveis enfoques da guerra da informação”, assevera a enciclopédia. O primeiro “reconhece a primazia dos objetos no mundo real” e tenta girá-los numa direção favorável ou desfavorável. O enfoque “mais estratégico” coloca “a informação antes dos objetos”. Em outras palavras, a enciclopédia parece dizer que a realidade pode ser reinventada.

A Rússia não é a única a explorar esses métodos. Na Ásia, a China implementou uma combinação poderosa de guerra legal e psicológica para fortalecer suas reivindicações de hegemonia sobre o Mar da China Ocidental. Um relatório de 2013 chamado “China: The Three Warfares”, preparado pelo Pentágono por um grupo de estudiosos sob a condução de Stefan Halper, da Universidade de Cambridge, descreve a resposta chinesa a um impasse com as Filipinas envolvendo um recife disputado que ambos os países reivindicavam. A estratégia envolveu sanções econômicas, intimidação psicológica (na forma de navios miliares chineses navegando em águas filipinas) e uma campanha na mídia qualificando o comportamento de Manila como perigosamente “radical”. “A guerra do século 21 é orientada por uma nova e vital dimensão”, escreve Halper, “ou seja, a crença de que as vitórias no campo da informação são mais importantes que as vitórias pelas armas”.

“Os jornalistas devem informar sobre ambos os lados”, disse-me Stengel com frustração. “Quando o Kremlin diz que não mantém soldados na Crimeia, eles têm de repetir a informação. Como combater alguém que inventa os fatos?”

Talvez tenha sido o fuso horário ou a maneira como a escuridão cobriu repentinamente Manhattan no meio do inverno, mas ao caminhar pelas ruas depois do meu encontro com Stengel não pude deixar de contemplar uma visão de um futuro inundado pela desinformação, onde nenhum argumento jamais será vencedor e nenhuma opinião terá mais autoridade que uma outra. Mas quase que imediatamente eu me dei conta do seguinte: e se temores como os meus fizessem parte do jogo? Na guerra psicológica da informação não existem vitórias claras, não há bandeiras a serem fincadas e fronteiras a serem retraçadas, apenas infindáveis jogos mentais na “esfera psíquica”, onde a vitória pode ser o oposto do que se imaginava no início. O objetivo do canal RT, por exemplo, é divulgar notícias, conspirações e opiniões? Ou projetar uma impressão de força e confiança russas – e isso significa que falar constantemente sobre seu comportamento descarado apenas aumenta essa percepção?

Perguntei a mim mesmo se a própria ideia da guerra psicológica da informação – sugerindo que a Rússia descobrira uma arma sombria para a qual o Ocidente não tem resposta – não seria também uma guerra de informação. Talvez a enciclopédia e a “radiação invisível” que conseguiria anular “as defesas biológicas” fossem simplesmente mais um blefe – como as armas nucleares falsas que desfilaram pela Praça Vermelha para levar os analistas ocidentais excessivamente entusiasmados por uma galeria de espelhos. E se isso fosse simplesmente uma atualização do século 21 do clássico exemplo da antiga tática soviética do “controle reflexivo” visando a induzir o inimigo a fazer o que você deseja que ele faça – então, eu me perguntei, esse ensaio, que você está lendo, faria parte do plano?

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Peter Pomerantsev é produtor de TV, escritor e pesquisador