BAHIA GRAMPEADA
“De volta à lógica do senhor de engenho (II)”, copyright Veja, 5/03/03
“Salvador, início dos anos 90. Duas amigas, curtidas em décadas de troca de confidências, conversam ao telefone. ?Vou lhe contar uma novidade?, diz a primeira. A voz revela euforia que mal se contém. ?Adivinhe quem A. está namorando!? ?A.? é a jovem filha da eufórica amiga número 1. A amiga número 2 diz não ter idéia de quem possa ser. Ela então revela: ?Ele?. ?Ele quem?? ?Ele, ora. Eeellleee. O homem.? ?Não acredito?, exclama a amiga. ?Ela está namorando o homem?!? ?Confesso que nem eu acredito. Preciso me beliscar para ter certeza.? ?E como foi isso??, pergunta a amiga número 2, depois de alguns segundos de muda perplexidade. ?Soubemos ontem?, responde a número 1. ?Confesso que até desconfiava. Você sabe, um olhar aqui, um sorrisinho ali. Mas era bom demais para ser verdade.? ?Minha nossa!?, corta a número 2. ?Imagino a felicidade de vocês.? E a partir daí a conversa não passou de uma troca quase ininteligível de risinhos e gritinhos de prazer. Ao se despedir, disse a número 2: ?Parabéns. Vocês estão de parabéns?. ?Obrigada?, respondeu a número 1, chorando de alegria. ?Muito obrigada.?
Não, não se trata da transcrição de uma das fitas do rico acervo proveniente das escutas ilegais na Bahia. O diálogo acima é fictício. Mas… Quem sabe não poderia ter ocorrido? Ele foi inspirado pela informação, divulgada duas VEJAs atrás, de que os pais da jovem advogada Adriana Barreto deixaram de falar com a filha depois que ela rompeu o caso amoroso que mantinha com o senador Antonio Carlos Magalhães. Se ficaram tão contrariados com o fim do caso, é porque devem ter ficado muito satisfeitos, ou melhor, satisfeitos é pouco – devem ter ficado maravilhados, deslumbrados, e até isso é pouco, com o começo dele. Há pais que se preocupariam com o envolvimento da filha com um homem casado, pai de filhos, e tão mais velho que até avô de netos, e netos adultos. A suposição de que não foi o caso dos pais em questão casa bem com a veneração que o pai da, digamos, ?noiva?, o desembargador Amadiz Barreto, devotava – e, ao que tudo indica, ainda devota – ao, digamos, ?noivo?. Em 1998, ao ser homenageado em sua despedida da presidência do Tribunal Regional Eleitoral baiano, o desembargador declarou, segundo reporta a revista Época: ?Qualquer homenagem deve ser transferida para a figura exponencial de Antonio Carlos Magalhães?.
Na semana passada deu-se ênfase, neste espaço, ao fato de o famoso senador ser acusado de ter incluído a antiga favorita entre as vítimas do esquema de escuta clandestina montado na Bahia. Mais ainda do que a espionagem contra os políticos, tal fato revelaria o reinado da prepotência no Estado, mobilizado, até em suas instituições mais respeitáveis, para a satisfação de uma só vontade, soberana e incontrastável. Afinal, com espionagem por motivos políticos já se está até acostumado. Mas espionagem por motivos amorosos, armada com recursos do Estado, e além do mais seguida de uma campanha de perseguição contra a ex-?noiva? e seu novo companheiro, igualmente executada com instrumentos do Estado, segundo denunciam as vítimas, eis algo que inova a crônica dos escândalos brasileiros. Era a lógica do Brasil colônia que irrompia em cena. O senhor de engenho, titular falocrático de um império de escravas e agregadas, não hesita em chamar o capitão-do-mato para castigar a negra que ousa lhe escapar do leito. Mas, pensando bem…
Pensando bem, igualmente reveladora do que se passa na Bahia, ou até mais, é essa informação singela, e no entanto assombrosa, de que os pais de Adriana Barreto deixaram de lhe dirigir a palavra depois que ela rompeu com o senador. Então é assim? Quer dizer: a relação de sabujice pode ser de tal ordem que se sobrepõe às relações entre pai e filha, mãe e filha? Stalin, o inspirador do Grande Irmão, o ?Big Brother? – não o da TV, mas o do romance do inglês George Orwell -, condecorava os filhos que delatassem os pais. Claro que a invocação de Stalin é aqui um exagero, equivale a lançar mão de bomba atômica para apartar briga de rua, mas justifica-se pela coincidência de, também na Bahia, pelo menos neste caso, a sombra do Grande Senhor lançar sua opressão insidiosa sobre as relações familiares. Também não vem bem ao caso invocar Saddam Hussein, Ferdinand Marcos, Trujillo ou Somoza. Mas que a situação estadual tem algo a ver com tais ditaduras, na forma como se articula em torno do senhor todo-poderoso, inspirador de iguais doses de adoração e temor, lá isso tem. Em regimes que tais, não há pais e filhos. Só há filhos, todos aninhados ao colo não do grande irmão, mas do grande pai. Ou, para ser mais modesto, e ficar na imagem da semana passada, a briga entre pais e filha é mais um sinal de que a política baiana refluiu para a casa-grande, onde pais, filhos, tios, sobrinhos, irmãos e primos não estão ali senão para servir aos caprichos do senhor, dono do destino, distribuidor de graças e desgraças.
“Amante mudou de nome – 2”, copyright Folha de S. Paulo, 28/02/03
“Hoje faz uma semana que usei este espaço para falar da hipocrisia dos meios de comunicação e dos envolvidos no caso dos grampos na Bahia, que insistem em usar o eufemismo ?ex-namorada? para tratar a antiga amante de Antonio Carlos Magalhães, Adriana Barreto.
A repercussão que a coluna gerou foi extraordinária. Nunca, em 12 anos de caderno Cotidiano, um texto meu recebeu a aprovação unânime dos leitores. Das dezenas de mensagens que recebi comentando a impropriedade do tratamento que a mídia reserva à senhora Barreto, não houve uma só pessoa que discordasse do que escrevi aqui. Muitos leitores se disseram, inclusive, admirados com a revelação de que ACM é casado, pois tinham deduzido que o senador fosse viúvo!
Na crítica interna do ombudsman, que circula entre todos os jornalistas, o titular Bernardo Ajzenberg comentou: ?A coluna Barbara Gancia chama a atenção para o fato de que o senador ACM é casado, dá até o nome de sua mulher e questiona a mídia (Folha inclusive) quanto a chamar Adriana Barreto de ex-namorada, e não de ex-amante de ACM. Concordo com a observação. É esquisito que o jornal não tenha, até o momento e salvo engano, sequer mencionado o fato de que o senador é casado. O assunto é delicado e polêmico, mas creio que os princípios estabelecidos pelo manual da Folha, em especial nas páginas 27 e 28, sobre a questão da vida privada e cuidados éticos no que diz respeito a homens públicos, autorizam-nos a dizer as coisas, neste caso, como elas são?.
Parece óbvio que o leitor desaprova o tratamento que a mídia dá ao caso. Ele quer, como diz o ombudsman, que as coisas sejam ditas ?como são?. Pois bem, passada uma semana desde a publicação do meu texto, na prática, o que aconteceu? Nada. O jornal continua a usar o termo ?ex-namorada? e até mesmo o ilustre Clóvis Rossi achou por bem ignorar a existência da coluna e atribuir a uma leitora que escreveu para se manifestar a meu favor um conceito expresso por mim.
De 25 a 27 de março, a rainha Beatriz da Holanda estará em Sampa. Ela será recebida oficialmente pelo cônsul-geral dos Países Baixos, o senhor Hans Glaubitz, e por seu companheiro de vida, o senhor Raul Garcia Lao. Os nomes dos dois serão impressos nos convites oficiais e enviados às mais altas autoridades do Estado. Gente evoluída é outra coisa!”
“O off deve ou não ser respeitado? (II)”, copyright Comunique-se (www.comunique-se.com.br), 26/02/03
“Ainda motivada pela polêmica que surgiu com a publicação das declarações do senador Antônio Carlos Magalhães na revista ISTOÉ, a redação de Comunique-se conversou com mais dois profissionais de imprensa para saber como os jornalistas devem tratar o off. Afinal, dependendo das circunstâncias, ele pode ser divulgado?
Paulo Moreira Leite – diretor de redação de Época
?Jornalistas não devem abrir off. O segredo sobre a fonte é um instrumento básico da profissão e é natural que os jornalistas tentem protegê-lo. Mas é claro que há casos especiais. Para ficar num exemplo clássico: um dia um ladrão telefonou para um grande jornal de São Paulo e avisou que iria cometer um assalto. Em vez de avisar a polícia, atitude que teria prejudicado a notícia, o jornal decidiu cobrir o ?evento? — o que contribuiu para o crime. Nesse episódio do Luís Claudio Cunha, o problema se encontra na incoerência. O repórter recebeu a transcrição dos diálogos grampeados e publicou a história como se fosse a notícia mais natural do mundo. Depois, quando o caso tomou outro rumo, o mesmo repórter resolve revelar a fonte.?
Luiz Recena – diretor editorial da Gazeta Mercantil
?Sou de uma escola onde se aprende a respeitar o off. Acho que só devemos pensar em divulgá-lo se o interesse nacional estiver em jogo. Temos que ter um motivo muito bom para isso. O off tem que ser tratado como segredo de confissão.?”