Saturday, 28 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Nelson de Sá

CRÍTICA DIÁRIA

“No Ar”, copyright Folha de S. Paulo

“25/02/03 – O som do silêncio

O pouco que há de resistência à guerra, nos Estados Unidos, é de celebridades da indústria cultural.

Mas é uma resistência envergonhada, pelo que se assistiu na transmissão do Grammy, anteontem no SBT.

A CBS, que originou a transmissão, teria orientado para ninguém falar contra a guerra. E poucos falaram.

Simon e Garfunkel cantaram ?The Sound of Silence?, que compuseram no auge do movimento contra a guerra do Vietnã, e disseram que a canção tinha ?ressonância? no presente. Nada mais.

Sheryl Crow tinha um pequeno ?no war?, não à guerra, escrito em sua guitarra. Depois, nos bastidores, teria reclamado da censura dos organizadores. Nada mais.

E assim a guerra caminha. A mesma CBS entrevistou Saddam Hussein, que chamou George W. Bush para um debate ao vivo pela TV.

Foi uma piada, é evidente. O importante é que o ditador iraquiano indicou que não vai destruir os mísseis, como exigido pelos inspetores.

Uma boa desculpa fornecida pela própria ONU, no momento em que chega ao Conselho de Segurança -sob a estridente cobertura dos canais americanos de notícia- a proposta de resolução que garante a Bush sua guerra.

Do Jornal de Band:

– Um dia de terror no Rio.

Não se completaram dois meses de novo governo no Rio e o ministro da Justiça já era levado a responder, ontem na CBN, que não vê motivos para intervenção no Estado.

O choque das imagens dos ônibus queimados, do ataque a Ipanema com bombas, em contraste com a fisionomia enfraquecida de Rosinha Garotinho, levou o ministro a prometer transferir o traficante Fernandinho Beira-Mar para São Paulo ou outro Estado.

E nada de intervenção.

Enquanto isso, a CPI fluminense que investiga o caso Silveirinha decidia, segundo a mesma CBN, não convocar Garotinho a depor.

José Dirceu, de outro lado, era a imagem do poder, em longa entrevista à Globo.

Exalava segurança, controle, ao bradar contra a ?herança maldita? deixada pelos que ?agora criticam com a maior cara de pau?.

Distribuía elogios medidos a Antônio Palocci, José Genoino, João Paulo, para não desagradar ninguém.

Parecia até se conter, para não se exceder no poder que detém, cada vez maior.”

 

EXIBICIONISMO MIRIM

“O clube dos exibicionistas-mirins”, copyright Folha de S. Paulo, 2/03/03

“KELLY KEY, Sandy & Júnior e Michael Jackson: o que essa gente toda tem em comum? No últimos dois meses, os quatro têm aparecido na televisão mais do que o habitual e, ainda por cima, tendo que se haver com seus fantasmas sexuais. Criados diante das câmeras de TV, os quatro são vítimas da volúpia voyeurística de gente grande que se encanta com crianças mimetizando a sexualidade e o comportamento adultos.

Kelly Key, moça de 19 anos que na vida real engravidou na adolescência, despontou para o público cantando ?Baba, Baby?, uma canção onde ela chama de otário o adulto que teve a decência (ou talvez a prudência) de recusar seus apelos sexuais precoces. De algumas semanas para cá, ela protagoniza a campanha do Ministério da Saúde incentivando o uso da camisinha como forma de prevenção à Aids -e o fato de ser ela a escolhida para esse papel foi objeto de uma certa indignação por parte de ONGs e educadores. Como mãe adolescente, ou seja, alguém que evidentemente já fez sexo sem camisinha, ela não teria credibilidade para incentivar o uso do preservativo e, como mulher que vive de sua imagem de gostosa, ela não seria moralmente adequada como modelo para garotas entre 13 e 24 anos (alvo principal da campanha deste ano do Ministério da Saúde).

A propaganda veiculada na televisão, entretanto, é bem-feita: Kelly Key entra em uma farmácia e, enquanto os balconistas ficam especulando se a moça vai comprar batom ou xampu para a ?boquinha? ou o ?cabelinho?, ela pergunta: ?Onde é que vocês colocam a camisinha??. Pegos de surpresa pela franqueza da moça e pelo duplo sentido da pergunta, os balconistas ficam com cara de tontos. O que se vê, na verdade, é uma menina com autonomia para se proteger e sem pudores para falar em voz alta sobre preservativo para uma platéia masculina.

Os irmãos milionários Sandy & Júnior, cuja imagem pública foi moldada, com bastante ajuda da TV, bem ao gosto da hipocrisia moralista e machista da classe média, também estrelam uma campanha pelo uso da camisinha, esta da ONG Ação da Cidadania. Sandy e Júnior são ?profissionais? do ?showbiz? praticamente desde que deixaram as fraldas e, a partir da adolescência, passaram a encarnar os filhos adolescentes que toda família conservadora queria ter: a moça é sexualmente atraente, mas afirma ser virgem e quer continuar assim até o casamento; do rapaz diz-se que deixou de ser virgem na idade certa para não ser confundido com um bundão ou para que não pesassem dúvidas sobre sua preferência sexual. Em filmes separados, com linguagem ?realista? (leia-se preto-e-branco) e em forma de ?depoimento?, os dois recitam a ladainha consciente sobre a importância do uso da camisinha, aquela que todo adolescente de classe média sabe repetir na frente dos adultos, mas que poucos praticam de verdade.

E, finalmente, Michael Jackson, patrono e membro-fundador do clube dos exibicionistas-mirins, aos 44 anos ainda tem que se haver com sua sexualidade estagnada na terra do nunca de uma infância que não houve. Nos últimos tempos, ele tem mostrado sinais de que andou perdendo alguns parafusos da cabeça, além de quase toda a cartilagem do nariz. Primeiro, deixou que um ex-diretor de filmes pornô fizesse um ?documentário? (que vai ao ar hoje no canal de TV por assinatura Sony, às 21h) sobre sua vida, onde Jackson, candidamente, admite gostar de dormir com meninos. Depois, fingindo-se assustado com a repercussão dessa e de outras revelações (como o fato de ter, na prática, comprado seus ?filhos?, da mesma forma que comprou o chimpanzé Bubbles), ele prepara um contra-documentário, em que mostra a ?sua? versão, reiterando seu amor pelas criancinhas de todo o mundo, blá-blá. Patético, Michael Jackson não tem nenhuma sexualidade real para se contrapor à que lhe atribuem.

Exibicionistas infantis e sedutores precoces, essa gente cresce meio vítima de si mesma e quase nunca consegue se livrar das armadilhas impostas por essa condição para sempre ambígua entre as sexualidades infantil e adulta. E a TV adora um ?freak show?.”