Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jogo de cena da mídia

GUERRA & CARNAVAL

Ivo Lucchesi (*)

É provável que, ao longo da semana relativa à publicação deste artigo, a protelada invasão no Iraque tenha ocorrido. A julgar por informações circulantes em certos setores, as primeiras operações estão sendo reservadas para 15 ou 16 de março. O complexo midiático industrial não suporta mais tanta espera. Afinal, o noticiário, em tom novelístico, não tem mais de onde extrair "capítulos", em ritmo de anticlímax.

Na ausência (ou impossibilidade) de posições claras e muito menos da promoção de análises consistentes, a mídia (tanto impressa quanto eletrônica) fica redundantemente às voltas com o cardápio da mesmice, somente quebrado por um suposto fato novo, ou quando resolve ampliar artificialmente o dado mais recente. É numa dessas urgências de matéria que uma conversa telefônica entre o presidente do Brasil e o primeiro-ministro da Inglaterra produz generosos espaços no noticiário.

Significados congelados

Por conta do episódio acima mencionado, fico a indagar quem brinca com quem, na grande arena do jet set da política internacional, sob o amparo das coberturas midiáticas. Será o presidente do Brasil, ao imaginar que seu pedido pela paz tem ressonância mundial? Será o primeiro-ministro Tony Blair, ao responder que, prioritariamente, não deseja a guerra? Puro duplo jogo de cena.

Um tem a ânsia de firmar uma imagem de estadista em escala internacional (quem sabe, tentando igualar-se aos propósitos de seu antecessor), ao mesmo tempo em que, por tabela, tenta somar pontos para uma eventual indicação ao Prêmio Nobel da Paz ? proposta, aliás, alavancada pelo Le Monde.

O outro, sem nenhum pudor, a negar tudo que tem feito e dito, desde o fatídico 11 de setembro, na tentativa (talvez) de restabelecer algum "prestígio" frente ao clamor e ao protesto crescentes de seus eleitores (as eleições se aproximam). Para a mídia, porém, essa possibilidade de compreensão não interessa. O fato é que a conversa telefônica transcorreu, sob a mediação do intérprete (nenhum dos interlocutores fala a língua do outro) Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores e ex-embaixador do Brasil na Inglaterra.

Só um diplomata de carreira para amparar (e aparar) um diálogo que, em linguagem popular, significa "jogar para a arquibancada". E como a "galera" gosta! Como se vê, nenhum registro na mídia que pudesse ? ao longe ? oferecer ao receptor mínimo sinal crítico.

A mídia faz supor que acredita (e, às vezes, crê mesmo) que os acontecimentos da realidade não têm outros significados para além dos limites dos próprios fatos. Todo o esforço de compreensão, interpretação e análise fica exclusivamente ao encargo do receptor. Considerando, porém, que o modelo educacional brasileiro, em sua expressiva maioria, não prepara para tais desempenhos, conclui-se que a maioria receptora dos "produtos midiáticos" se torna mera reprodutora de significados congelados pela fonte geradora. E, assim, multiplicam-se as cenas do grande jogo no qual a única derrotada é a criticidade. Como solução, o jogo de cena migra para o sonho do jogo da Sena. Não é apenas um trocadilho…

Novidade que não muda

Seria injustiça com quem faz cobertura jornalística sobre política se igual julgamento não se estendesse a outras áreas temáticas. O recém-findo carnaval deixou inestimável colaboração. Sem entrarmos no mérito de que os "desfiles", há muito, tornaram-se negócios e show, desta feita ? pelo menos no Rio de Janeiro ? deu-se algo que provavelmente em outra região do mundo causaria, na melhor das hipóteses, profundo mal-estar e, na pior delas, processo.

Alguém, na mídia, ousou pôr em questão a explícita associação entre a Rede Globo e a Beija-Flor, escola de samba campeã. Nada contra a escola. Ela cumpriu seu papel. Todavia, sob o aspecto ético, a Rede Globo não cumpriu o seu. Com base em que critério um meio de comunicação, que compra os direitos de transmissão (e retransmissão), "escolhe" uma escola e a leva para o interior da casa-mansão do Big (ou pig) Brother, dias antes do desfile, e ainda escala dois ocupantes do "instrutivo jogo" para desfilarem pela mesma escola? E em nome de que as demais agremiações silenciam? E, principalmente, por que nenhum jornal concorrente fez disso matéria? Estranho silêncio.

Mudando o foco para a Bahia, a mídia se fartou em noticiar as novidades sobre o que não muda. Trios elétricos, celebridades, multidões engalfinhadas e espremidas indo atrás dos divinos que lá, do alto, comandam o espetáculo. Danielas, Ivetes, Gilbertos, Caetanos, Netinhos, Carlinhos e seguidores repetem-se à exaustão enquanto as tribos, na secura do asfalto, disputam o metro quadrado para fazer escoar a alegria com cartão de ponto. Na saia justa da mídia, nada disso tem lugar. Pelo visto, o lema é "silêncio, sempre". E a "egüinha pocotó" cresce…

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV.