LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Waldemar M. Reis (*)
A liberdade de expressão nos EUA é, talvez, o dado mais importante da propaganda política desse país, mais até do que o seu modo de vida, sedutor de nações inteiras e destituidor de lideranças quando sequer põem em dúvida o seu valor. Com "liberdade de expressão", refiro-me ao poder de o indivíduo livremente contestar atos quaisquer, inclusive e em especial os do governo, sem sofrer qualquer forma de ameaça à sua condição cidadã.
Por diversas vezes, antropólogos e sociólogos têm-nos indicado a consideração de vários fatores de modo a não se precipitar uma conclusão acerca do por que se é livre para falar em países como EUA e Inglaterra, mais do que em qualquer outro do mundo. Entre tais fatores, um dos de maior peso é sem dúvida a estrutura legal ? embora haja outro, que reputo mais poderoso ainda: a sua riqueza, traduzida em condição de vida considerada como satisfatória para a maior parte do seu povo.
O mecanismo é simples e se funda no pressuposto ou na evidência (!) de toda lei, por mais perfeita ou bem estabelecida nos costumes de um povo, ser uma constante refém da circunstância, do fato, tendo este o poder, mediante a engrenagem da jurisprudência, de transformá-la nem sempre de forma lenta, mas com freqüência copiosamente. Assim, pouco importando o sistema legal de um povo, havendo riqueza suficiente no poder para sustentarem-se os silêncios e as omissões pelo tempo em que se fizer necessário, é possível tolerar protestos que podem, segundo o caso, ser levados ao esvaziamento em sua própria insistência ou ter atendido o que vindicam, assim reforçando, de um modo ou do outro, as instituições nacionais. Aliado a isto, o povo também deve gozar de situação por este considerada como boa ou satisfatória, pois, havendo muito a perder de sua parte, tende a compactuar com o poder em delito. Mas quando muito pouco ou nada há do cidadão a ser perdido, quando vive este em condições consideradas insuficientes, então ao governo não resta senão o autoritarismo explícito, ou facilmente se espalham as rusgas, quase sempre culminando em revolução.
Dimensões imprevisíveis
É forçoso também que toda situação de grande prosperidade e, em conseqüência, de liberdade expressiva de uma nação, tenha por base a submissão de outros povos ao silêncio e ao medo. Se isto é uma evidência logicamente provável, não é questão aqui, bastando-nos considerar, na História, a sua obstinada recorrência. Sob tal prisma, a "liberdade de expressão" é tão-somente um mito, uma ilusão manipulada no poder cujo fito é o de fazer o povo refém do seu próprio hedonismo.
Esse quadro de coisas pode ser apreciado em Do socialismo utópico ao socialismo científico, onde, ao lado de uma das mais mordazes críticas já feitas ao espírito britânico, Engels desfralda sincero elogio à Common Law por preservar por séculos "a melhor parte daquela liberdade pessoal, aquela autonomia local e aquela salvaguarda contra toda ingerência fora dos tribunais". A extensa argumentação da introdução deixa patente a fragilidade das leis em vista das circunstâncias em que são aplicadas: em uma palavra, a despeito da boa estrutura do direito de uma nação, este será sempre e não mais do que interpretação tendo como base a vida comum e seus caminhos por vezes irrenunciáveis. Como exemplo, Engels nos oferece a ideologia inglesa de então, fundada em preceitos "religiosos", mas tendo como fito hipócrita a manipulação da massa operária nascida do capitalismo, sistema, como o "materialista", natural da Inglaterra.
Que nos eximamos, em favor dos críticos do marxismo, de tomar como definitiva ou imune a questionamentos mais aprofundados a avaliação engelsiana do "filisteísmo britânico", mas nos proponhamos, em troca, a observar a fisiologia cotidiana de lei e vicissitude em qualquer país, pouco importando o período histórico. Paradoxalmente, a própria "liberdade de expressão" de nações como a americana e a inglesa é fonte primária de notícias de sua violação: trabalhos de natureza jornalística como os transportados para o cinema com os nomes de JFK, Todos os homens do presidente e Em nome do pai são pálidos modelos de transgressão legal praticada por quem deveria, por atribuição, coibi-la. Uma lista completa de narrativas semelhantes teria dimensões imprevisíveis, em especial se são arrolados trabalhos escritos e, entre estes, quantidade incalculável de processos ? muitos arquivados e ocultados da vista humana por gerações por vir.
Comédia da liberdade
Mas, argüiria um amigo cronista: em que outro lugar do mundo tolerar-se-iam iniciativas como essas, inclusive a presença conspiratória contra si em seu próprio território? Referia-se ele, claro, aos EUA e ao 11 de setembro. Em face de perguntas assim sou obrigado a conceder: nenhum. Mas não me posso furtar à observação de que, enquanto livremente são expurgados na opinião os delitos passados do poder, outros, obnubilados pela execração pública dos primeiros, são perpetrados ininterruptamente: a liberdade do dizer como embriaguez em prol da livre subversão do poder público.
Leve-se em conta também o que se mencionou no início deste texto em torno à capacidade, diretamente proporcional à riqueza da máquina governamental, de tolerarem-se os queixumes ou de se os silenciarem, seja com prêmios, seja com penas, apagando-se em seguida todas as provas. Quanto às conspirações, isto é um assunto longo, para comentário em separado, bastando aqui perguntar: qual é a natureza real dessa liberdade que, advertida de tramas contra si, no terreno de sua jurisdição, se resume a uma tão-só tolerância?
Boa medida do alcance do ideal de liberdade americano pode ser extraída da inflexibilidade de platéias e leitores dessas denúncias: por mais bem informados que estejam, são incapazes de proferir o menor comentário em desfavor de um sistema no qual todos têm trabalho, automóveis, eletrodomésticos e, de quebra, podem dizer o que lhes vem à cabeça. Desnecessário alongar-me nesse pormenor: proporcionado pela riqueza, o modo de vida estadunidense é coadjuvante indispensável na comédia da liberdade de expressão; para esta brilhar em seu papel é ele quem dá as "deixas". E não são modestas as suas falas: acenam, em uma palavra, com a solução para praticamente todas as aflições da condição humana, em especial o desencargo do trabalho.
Instrumento publicitário
Estou longe de apregoar o estoicismo; não poucas vezes me tenho pilhado em hipnóticos devaneios à volta das maravilhas que a técnica, propelida por economias de grande porte, tem proporcionado ao conforto humano. No entanto, em vista dos desserviços de um hedonismo cego, apontados aqui e acolá nos avanços da própria ciência que o estimula, procuro encontrar no joio o trigo para cozer o meu próprio pão.
Em suma, momentaneamente esquecendo as graves questões da homogeneização das culturas do planeta, o problema não é nem mesmo o american way of life ou o british similar, mas o modo como é posto em prática, particularmente fora do seu próprio território. E aqui recorro a crônicas antigas do jovem Eduardo Galeano, onde é possível realizar a antigüidade da questão. É suficiente uma rápida visita às poucas páginas de Crónicas latinoamericanas para ter uma idéia do repertório de desatinos a que vem dando suporte a propaganda com eixo na liberdade e no conforto: já são nossas conhecidas a fome e sua mãe, a miséria, há muito nas manchetes diárias; a esterilização de mulheres em países de baixa densidade demográfica objetivando conter a demanda por trabalho (vertiginosamente substituído pela eficiência da máquina), por comida (a melhor parte da qual destinada às exportações) e por justiça (!); a conivência revoltante das aristocracias fundiárias associadas aos mirabolantes investimentos dos neocolonos; o descaso e a opressão dos governos compromissados com objetivos alheios à natureza e à condição dos seus povos. Galeano mostra, lá dos anos 60 e 70, em nada termos mudado essencialmente, pois "la propaganda, obra de ficción, convence".
Também a França napoleônica, cujo Código Civil, revisado segundo a tendência capitalista nascente, serviu de base às reformas legais na América Latina e no Japão, construiu desafetos com seu colonialismo, não obstante a propaganda oficial, pavimentando o caminho da perda de muito do seu poderio para o imperialismo britânico. Este, oferecendo um aparato jurídico mais ligeiro, tendo como pivôs a descentralização e a liberdade do empreendimento individual, espalhou-se em promessas não cumpridas para grande parte dos povos sob sua tutela, não o fazendo mais tolerável para estes do que os franceses para as suas colônias. O tema, invariável, é o da submissão da lei à circunstância, esta favorável aos ditames do capitalismo industrial e, logo em seguida, aos do capitalismo financeiro. Das mãos inglesas o bastão passou às dos EUA, primogênito dedicado ao aprimoramento inconcebível das lições do patriarca.
Assim, contrariamente ao veiculado por periódicos como a tradicional Veja <http://veja.abril.com.br/260203/p_036.html>, o antiamericanismo atual, cuja gama vai das manifestações contra a guerra à suposição de gatunagem com o petróleo iraquiano, nada tem de ingênuo. Ingenuidade ? ou má fé! ? é supor a ignorância universal frente às táticas e métodos milenares do poderio imperialista, entre os quais a constituição de ditaduras convenientes, sazonalmente substituídas (alguém sabe a quantas anda a "reconstrução" do Afeganistão?). Esse revista, eximindo-se de discutir, do contexto de que é parte (o brasileiro, o latino-americano e, por fim, o da história), as reais implicações da política americana, alinha-se com o que há de mais duvidoso e, por conseguinte, de mais pernicioso em termos de jornalismo, fazendo-o em mero instrumento publicitário, no qual a rasa sugestão vem substituir o estímulo à reflexão. (E talvez seja nessa linha que a Veja possa ser tristemente declarada tradicional).
Em tempos de falsos alarmes promovendo sismos em economias e demais instituições ao redor do globo, cabe à imprensa responsável, no mínimo, trazer atrelada à notícia suas provas (revelar suas fontes?), constituindo sorte fecunda de neutralidade sobre a qual se plantem os pontos de vista, doam em quem doer.
(*) Músico, regente, compositor e pianista, professor da ESPM-Rio