Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalistas ou invasores?

MÍDIA PARCIAL

Carlos Eduardo Pestana Magalhães (*)

Muito tem se falado da parcialidade da mídia norte-americana na invasão do Iraque. E, pelo jeito, ela é verdadeira. No dia 2 de abril, na Folha de S.Paulo, caderno Mundo, "Ataque do Império", página A 20, foi publicada matéria exemplar. O título: "Para morador, ?estaria tudo bem se os invasores trouxessem água? ? Basra ? Piora nas condições de vida estimula ódio no sul", do "jornalista" Nicholas D. Kristof, do New York Times (tradução de Clara Allain).

A matéria tenta explicar aos leitores norte-americanos que o ódio dos iraquianos de Basra, sul do Iraque, pelos invasores seria minimizado se fosse resolvida situação de falta de água e alimentos para a população local. Só que Kristof "esquece" de mencionar que a estação de tratamento de água da cidade foi destruída (bombas inteligentes?) pelas forças invasoras. A estação, provavelmente, devia ser considerada um alvo militar.

Algumas declarações de moradores: "Estaria tudo bem se os invasores trouxessem água. Até agora, só trouxeram sede", palavras de Munshid, um jovem da cidade. "Os americanos estão nos tratando como animais", queixa-se Muhammad, cidadão de 35 anos.

Não sei se por sentimento de culpa ou por opção ideológica, Kristof acaba se revelando. "É por isso que precisamos desesperadamente acelerar os esforços humanitários agora, e não depois de a guerra terminar. Enquanto fornecemos menos auxílio e segurança nas áreas que controlamos do que Saddam fazia, e se essa falta de assistência continuar, toda a missão será minada". Mais a frente, a mesma toada. "Um dos obstáculos que impedem o socorro é que o sul do Iraque é ainda muito perigoso, mesmo para voluntários de ajuda humanitária. Mesmo eu me juntei aos ?marines? americanos ? acompanhados do comboio de caminhões de alimentos vindo do Kuwait por uma escolta militar mais forte".

Quase no fim do texto ele afirma: "É difícil avaliar a opinião pública daqui, mas a minha intuição é que ainda temos alguma esperança em ganhar aceitação popular, se pudermos tornar a vida dessas pessoas melhores". Afinal, Kristof é o que nessa história toda? É jornalista, e estaria informando sobre os acontecimentos nesta invasão, ou integra as forças invasoras? Não é possível ficar de "pé nos dois barcos". Parece claro que ele está mais para as forças invasoras do que do lado dos leitores, sejam norte-americanos ou não. Ao usar verbos como "precisamos", "fornecemos", "controlamos", "temos", "pudermos" Kristof deixa claro de que lado está neste conflito.

Deus enfurecido

Bem, ao menos ele é honesto. Antes de ser "jornalista" é cidadão norte-americano e deseja que as forças invasoras derrubem Saddam, mesmo que isso signifique matar e destruir parte da população civil iraquiana. Não importa muito se existe ou não apoio popular a Saddam. Ele tem de cair e pronto! Outra coisa que fica clara no texto dele é a visão etnocentrista (categoria antropológica que define julgamentos a partir de um ponto de vista próprio) que caracteriza a postura ianque para esta região do globo. Para o caubói Bush, Rumsfeld, o eterno criado Blair e cia., os árabes ? e os muçulmanos, por extensão ? deveriam ser mais democráticos. Seus regimes políticos deveriam adotar a democracia liberal ocidental, criada e desenvolvida na Europa há pelo menos uns 300 anos. Afinal, a civilização árabe tem só mais de 6 mil anos!

Não importa se há petróleo fácil e abundante na região ? insumo energético fundamental para a sociedade de consumo norte-americana. Não importa se para os gringos é essencial o controle militar e político da área, e que o apoio financeiro e militar a Israel seja estratégico para que tudo isso funcione. Não, nada disso é importante. São apenas detalhes, visto que a missão principal dos invasores é estabelecer a democracia no Iraque, derrubando Saddam Hussein e seus asseclas. Finalizando a matéria, Kristof escreve: "Em uma das cenas de fogo cruzado próximo a Basra, peguei um pouco de munição vazia para dar aos meus filhos, porque eles estão com medo dos tanques. Preciso explicar-lhes, penso, que aqui no Iraque será preciso mais do tanques para vencer esta guerra. Serão necessários segurança, água fresca ? e ovos".

Acho que ele precisa explicar aos filhos ? e aos leitores ? que a falta de tudo não foi por obra de algum deus enfurecido ou de alguma catástrofe natural. Grande parte, se não a totalidade, desta caótica e trágica situação deve-se aos invasores, suas "armas inteligentes" e a pretensão de difundir a democracia no país. E tudo isso de forma totalmente democrática", desrespeitando a ONU e as leis internacionais. Não é um belo exemplo de democracia? Quais países alinhados aos gringos, na região, têm regime democrático de fato? Arábia Saudita (monarquia absolutista), Paquistão (regime militar pseudodemocrático), Turquia (precisa provar a União Européia que respeita os direitos humanos para entrar na União Européia), Afeganistão (país ocupado pelas forças armadas ianque)?

(*) Jornalista