Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O valor da informação

ENTREVISTA / SILIO BOCCANERA

Fabiana Amaral (*)

Silio Boccanera, correspondente em Londres nos últimos 20 anos, dedica-se a análises e reportagens sobre assuntos internacionais. Faz isso por escrito, numa coluna dominical publicada em vários jornais brasileiros, e nas telas, repetindo a dose em dois programas na Globo News: Sem Fronteiras (que trata de um único tema) e Milênio (entrevistas com pensadores). Nesta entrevista à revista Canal da Imprensa, <www.canaldaimprensa.com.br> Boccanera avalia a posição da imprensa na cobertura do conflito no Iraque. O jornalista também traça o perfil do correspondente de guerra: isenção, domínio do inglês e boas fontes. Maior dificuldade: tomar banho.

Você já cobriu guerras e conflitos urbanos. Como analisa a atual cobertura da guerra no Iraque, comparando com o que era feito algum tempo atrás?

Silio Boccanera ? Quando escrevo (14/3/03), a guerra ainda não começou (não vai demorar), mas não vejo por que seria pior do que no passado. Diferente, sim. Cada novo conflito traz novidades, não são em termos de táticas e tecnologias militares, mas também pelo lado da mídia. Avanços de tecnologia interferem também no trabalho do jornalista, como é o caso do telefone portátil via satélite (um celular que dispensa torres retransmissoras no solo) e de videofone (imagem e áudio de tevê também via satélite).

A incógnita sempre é a atitude que os militares terão diante da mídia: sempre vão querer controlar a versão dos fatos (governos também tentam isso), mas varia o nível de controle que impõem. Houve tanta reclamação dos jornalistas durante a última Guerra do Golfo contra o controle excessivo dos militares que há uma expectativa de melhora no conflito que se aproxima. Veremos.

Dá para ser "isento" numa cobertura de guerra?

S. B. ? Implico com a palavra isenção, que dá a impressão de existir um jornalista totalmente automatizado e programado com rigor automático. Todos temos opiniões, o que não significa que vamos ou devemos pregá-las na cobertura. Acho que a obrigação do jornalista é ser equilibrado, o que significa levar ao leitor/ouvinte/telespectador mais de um ângulo da questão. Inclusive aqueles com que ele/ela não concorda. Nem sempre se consegue isso numa matéria isolada. O importante é que o todo do trabalho seja equilibrado. Isso não se aplica apenas a coberturas de guerra, mas a qualquer assunto jornalístico.

Como conquistar fontes fidedignas em um ambiente onde prevalece o blefe e o terreno é desconhecido?

S. B. ? Blefe existe em qualquer terreno. Quem cobre prefeitura no Brasil pode garantir isso. Todos querem fazer predominar sua versão. Terreno desconhecido existe sempre que se cobre qualquer assunto em lugar novo. Pode ser até turismo. A regra é a mesma: saia perguntando e se informando. Naturalmente, não se pode chegar totalmente cru e desinformado para uma cobertura. E aí entra o que considero uma das maiores falhas no jornalista ou candidato a jornalismo no Brasil: não lêem jornais diariamente, obsessivamente, doentiamente, maniacamente. Sem fazer isso, não conseguirão acompanhar o que se passa. Coitado de quem acha que basta assistir ao telejornal da noite para estar informado.

O que pensa sobre a cobertura da guerra dos Estados Unidos contra o Iraque, principalmente de alguns veículos brasileiros que mostram ser necessário o embate, dando a entender um partidarismo pró-EUA?

S. B. ? De longe, acompanho mal (só pela internet) a cobertura brasileira do conflito. Mas não percebo esse partidarismo que você aponta. Tenho visto muita matéria mostrando argumentos e opiniões antiguerra. Uma coisa é defender que o embate é necessário (o que editoriais têm todo o direito de fazer; refletem a opinião do dono do veículo), outra coisa é mostrar que o embate é inevitável, simplesmente porque o governo Bush já decidiu neste sentido há muito tempo, tem poder hegemônico para fazê-lo sozinho, segue o ritual da ONU porque pareceu conveniente, mas vai agir por conta própria quando se cansar de esperar (mais alguns dias).

O que é mais difícil para o jornalista numa cobertura de guerra?

S. B. ? Tomar banho. Brincadeira, difícil é resolver os problemas de logística para poder não só registrar os fatos, mas, sobretudo, transmiti-los à base. Se a pergunta é sobre perigos, acho muito mais arriscado cobrir bandido/polícia/tráfico/corrupção no Brasil, quando você vira alvo específico das partes. Nas guerras, os danos a jornalistas costumam ser acidentais.

Hoje, tendo em vista os modernos e rápidos meios de comunicação, é correto pensar no fim do correspondente internacional?

S. B. ? É tudo questão de recursos e prioridades das empresas jornalísticas. A mídia passa por dificuldades econômicas ? nem preciso explicar isso a quem atua no setor aí no Brasil. Com recursos limitados, é preciso estabelecer prioridades de gastos. E nesta hora, despesas em dólar pesam muito. É caro manter correspondente no exterior. Diretores de redação sabem da importância de ter o olhar brasileiro de seu próprio correspondente no exterior, mas sabem também que isso não sai barato. Como têm a garantia das agências de notícias para pelo menos não ficarem totalmente a descoberto, optam por gastar a verba no Brasil. Lamento, porque estou do outro lado, mas entendo.

Dá para confiar e tratar como "correspondente de guerra" aqueles repórteres que falam da guerra no Oriente Médio do centro de Londres?

S. B. ? Repórteres baseados em Londres não gostariam de outra coisa senão poder cobrir os fatos nos locais reais. Fazem isso de Londres em parte pelos motivos econômicos citados acima. Em contrapartida, é preciso levar em consideração que Londres é o principal centro de captação de notícias de televisão no mundo. As duas grandes agências de telejornalismo ? Reuters TV e APTN ? têm sede na capital britânica (a Globo opera no prédio da segunda). Aqui se pratica o melhor telejornalismo do mundo, na minha opinião de pós-graduado em Telejornalismo nos Estados Unidos. O país tem uma imprensa escrita vibrante (só em Londres, são 10 jornais diários). Existe aqui uma tradição de se interessar pelo que se passa no resto do mundo. O país reúne especialistas nos assuntos mais obscuros (há poucos dias, encontrei um que estuda na Coréia do Norte).

Ou seja, o jornalista em Londres tem condições de acompanhar bem o que se passa em outros locais (exceção feita à América Latina, parte do mundo quase ignorada aqui). Cobrir de Londres não é o mesmo que estar no local, mas é o mais próximo disso. Basta o repórter deixar claro que está em Londres. Desonesto seria cobrir daqui e fingir que está ali. Em 20 anos de atuação profissional aqui, nunca vi alguém ousar isso.

O que você imagina que podemos esperar da cobertura da guerra no Iraque, dada a busca por sensacionalismo, o peso da imagem e a modernidade dos meios de comunicação?

S. B. ? Não vejo por que a cobertura tenha de ser sensacionalista. O assunto já é dramático demais; carregar nas tintas é covardia.

Como você entende a relação entre guerras e mídia ? a primeira utilizando a segunda e a esta provocando aquela?

S. B. ? Como já observei, militares, governos, autoridades, traficantes de droga, dentistas ou lixeiros sempre querem dar sua versão aos fatos. Cabe ao jornalista estar atento, para não virar instrumento. Às vezes, ele cai na armadilha sem perceber, até mesmo em nome de patriotismo, argumento preferido de governos em conflito. Lembro-me bem da então primeira-ministra Margaret Thatcher reclamando da cobertura da imprensa britânica durante a Guerra das Malvinas, quando a BBC reportava: o governo argentino diz isso, o governo britânico diz aquilo. Apelando ao patriotismo, à presença de soldados britânicos correndo risco de vida e ao fato de que o governo argentino era uma ditadura militar, ela queria que a BBC se postasse ao lado do governo britânico. Para sua eterna glória, a BBC se recusou.

O que você acha que os estudantes de Jornalismo deveriam saber sobre correspondentes de guerra antes de saírem dos bancos universitários?

S. B. ? Leiam muito, se informem bastante sobre assuntos internacionais, aprendam idiomas (sem inglês, nem adianta pensar em ser correspondente). Antes de cobrir guerra, convém comer grama em outras coberturas menos agitadas.

(*) Estudante de Jornalismo do Unasp e editora especial da revista Canal da Imprensa <www.canaldaimprensa.com.br>