TV ESPETÁCULO
Flávio Tiné (*)
Não faz muito tempo, quando as famílias ainda se reuniam na sala de jantar ou na calçada para jogar conversa fora, dizia-se que somos um país abençoado por Deus ? sem guerras, terremotos, grandes geadas, nem epidemias. Bastava uma nuvem muito escura no céu para que todos se assustassem: é o fim do mundo! É verdade que Caruaru, no agreste pernambucano, sofre de vez em quando alguns estrondos e dá para sentir pequenos tremores de terra, que não chegam a balançar lustres nem derrubar copos. Comparados com as grandes tragédias da Europa e do Oriente Médio, esses abalos são menos danosos que a secular seca que castiga o Nordeste e Sudene nenhuma consegue debelar. (E ainda ameaçam reativá-la, para gáudio dos sanguessugas das economias do país).
Somos abençoados por Deus quando lembramos os vulcões, as bombas atômicas, os terremotos do Japão e dos Estados Unidos e guerras como essa, que destrói parte das cidades do Iraque. Mesmo sendo Saddam o pior dos ditadores, não cabe aos Estados Unidos e à Inglaterra atacar todo um povo, a pretexto de libertá-lo. Alá os proteja!
Infelizmente, a guerra também está aqui. Nem sempre está no Jornal Nacional da Globo, mas está todos os dias no Cidade Alerta (Rede Record) e no Brasil Urgente (Rede Bandeirantes), com todas as letras, ao vivo e em cores.
Quando não é o assassinato de juízes que condenam criminosos é prisão de pedófilos. Quando não é rebelião de presos é de menores da Febem. Quando não é assalto à mão armada é estupro com arma de brinquedo. Quando não é roubo de carro é roubo de carga. E quando não há nada mais importante para escandalizar recorre-se à gloriosa corporação dos bombeiros para salvar um infeliz que ameaça pular de um prédio. Ou ao serviço de Resgate da Polícia Militar para socorrer um acidentado e filmar detalhadamente o sangue que jorra de suas veias.
Procure a Ouvidoria
Quem assiste a esses jornais não precisa de nenhuma imagem de Bagdá gerada pela CNN. Nossos heróis cinegrafistas são capazes de transformar um simples atropelamento num bombardeio. O efeito é quase o mesmo. Som e imagens interagem, dando ao telespectador a impressão de que algo muito grave está acontecendo. O locutor vai descrevendo a tragédia como se milhares de mísseis estivessem sendo jogados sobre a cidade de São Paulo. Em seguida, após meia hora de espetáculo, o helicóptero levanta vôo, em que direção? Rumo ao Hospital das Clínicas, naturalmente, onde grandes especialistas em traumatologia estão sempre a postos, 24 horas por dia, para sorte de todo e qualquer tipo de vítima de acidente ou de violência.
No pronto-socorro, televisão ligada num canto de parede, como em todo hospital público ou privado, os médicos observam incrédulos. Devem conter as emoções e guardar energias para um grande trabalho. Qual nada! O ferido que acaba de chegar tem um arranhão. É medicado, fica em observação algumas horas, e é liberado. Essa, pelo menos essa, é a guerra que não houve. Claro que nem é sempre assim. De repente, surge nas emissoras de televisão a imagem de uma criança com queimaduras graves. As evidências são de que a criança se queimou no mínimo 10 dias antes do primeiro bombardeio dos EUA. Como, se a guerra começou há apenas três?, fica no ar a pergunta.
O médico Gino César Cunha Arrunategui, especialista em queimaduras, dá entrevistas estupefato, e afirma que alguma coisa está errada. Estão manipulando informação, o que não é exatamente uma novidade na outra guerra suja, a da notícia.
Na porta de todos os hospitais universitários do país, todos os dias, a partir da madrugada, milhares de pessoas fazem fila em busca de atendimento, com os mais diferentes tipos de patologia. São os que não têm emprego, não têm plano de saúde, não têm dinheiro sequer para comprar remédio. Alguns choram e se lamentam. Cada parente leva seu doente. Cada doente leva sua dor. E não há médico suficiente para resolver a contento todas as feridas que lhes são expostas. Ao contrário dos médicos de guerra, que saem de maca em maca tentando minimizar o sofrimento dos feridos, os médicos passam correndo, com receio de que lhe peguem pelo braço para responder o que ele já sabe de cor: não há vagas para internação. Em alguns casos, não há vaga sequer para consultas.
Em meio ao tiroteio, o porteiro, num lance de extrema bondade e comoção, dá a brilhante idéia: procure a Ouvidoria. É na terceira porta, à direita. Onde? É aquela fila, ali, à direita! A guerra, ora, a guerra é aqui.
(*) Jornalista da assessoria de imprensa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP