SANDICE HOLLYWOODIANA
Cláudia Rodrigues (*)
"A opinião pública mundial é hoje uma realidade. Está começando também a ser uma força nas questões mundiais, e uma das coisas que mais detesta e condena é o emprego da força de um país poderoso contra outro mais fraco. Todos os que desaprovam o caráter do regime do país atacado desaprovarão ainda mais fortemente a ilegalidade e a violência internacionais implícitas num ataque a um país mais fraco por outro mais forte, em quaisquer circunstâncias." (Arnold J. Toynbee, A América e a revolução mundial. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1962, pp. 118)
O feitiço virou contra o feiticeiro. A máquina de comunicação global colocada em movimento pelos EUA nas últimas décadas está permitindo à população mundial testemunhar ? praticamente online ? a invasão de um país fraco por outro mais forte. Censurada ou não, cooptada por este ou por aquele governo, agora isso já não importa, e nada pode impedir que seja a própria mídia a responsável pela aceleração da derrocada do jovem império americano.
Já não estamos mais no tempo em que um filósofo como Voltaire podia brincar escrevendo que "Deus é contra a guerra, mas favorece quem atira melhor". Assistimos, nesse momento da história, ao término do mais efêmero dos impérios desde que os seres humanos começaram seus processos de uniões e retaliações, amores, acordos, disputas, batalhas e guerras em busca de poder e concentração de bens e riquezas.
Nada apaga o sofrimento das pessoas, impresso na memória genética; nada paga o desaparecimento, provocado por bombas e mísseis, de uma cultura, de sua arquitetura, seus costumes e até de seus problemas originais, que certamente teriam evoluções e soluções menos violentas.
Não há prazer algum em presenciar os últimos suspiros dos EUA nessas circunstâncias, mesmo com tudo o que passamos, nem sendo antiamericano fanático.
Mais uma vez, como de todas as outras, um império não passa a coroa, sequer imagina render-se ao seu tamanho máximo atingível, e muito menos procura entrelaçar-se ao mundo, praticar a tão famigerada, mal-interpretada e mal-aplicada globalização.
John Wayne Jr.
A imagem norte-americana, fabricada durante anos e muito bem distribuída pela fantástica indústria de comunicação e entretenimento criada pelos EUA, dos mocinhos e heróis, não foi arranhada depois do Vietnã. Pelo contrário, ganhou força. Aquela foi, como a maioria das guerras em todos os tempos, uma guerra altamente rentável. Dá até para dizer que o próprio cinema americano se divide entre o antes e o depois do Vietnã.
Mas, de uns tempos para cá e muito para lá de Bagdá, inclusive, as guerras só têm trazido prejuízos econômicos, além das costumeiras, e consideradas pouco importantes, perdas humanas, sociais e culturais. As guerras modernas empobrecem o mundo porque a falta de fraternidade na economia é um meio que não justifica os fins. A ausência de lucro é tão fatal para a sanidade econômica de qualquer negócio quanto o excesso. São doenças tão antagônicas que se juntam nas pontas, são faces da mesma lâmina. Ao lucro se deve impor limites; ao excesso, destinos fraternos.
Havia uma certa ética nas batalhas antigas. Por mais insensata que seja uma revolução, a prosperidade pós-guerra é real quando há ideologias, razões e sentimentos fortes que causaram o atrito. A benevolência dos vitoriosos alcançava o inimigo, eles precisavam crescer, aumentar o bolo de aliados, verdadeiramente, não somente pela projeção de uma imagem favorável.
Existe uma lenda no Kuwait que fala de um rei muito mau que só usava a riqueza para si, enquanto os súditos viviam na miséria. Nesse reino ninguém era feliz, havia muitas doenças e má sorte de todo tipo. Quando o rei mau morreu, transformou-se em imensa montanha estagnada que sombreava o reino todo. O filho do rei criou um novo mundo, apesar da sombra, utilizando a escuridão da montanha para fazer crescer um tipo raro de vegetação; libertou os súditos, criou novas condições de vida e de trabalho. Anos depois, quando ele morreu, o reino vivia na mais completa prosperidade e, ao contrário do ocorrido no tempo do pai, transformou-se em algo vivo e em movimento: um pássaro que voa todas as tardes rumo ao Sol se pondo atrás da montanha. Essa lenda é contada em música, e a moral dessas histórias singelas de bons reis e reinos livres não deveria ser ignorada por presidentes, estadistas, políticos ou demais aspirantes ao poder. O verdadeiro poder, a durabilidade de um Império, realmente depende do tamanho da real benevolência de seus líderes.
A indústria americana de imagens foi encarada tão seriamente por seus governantes, por sua mídia e suas empresas, que esqueceram a qualidade principal dela: tratava-se de fantasia. O que era entretenimento virou lição obrigatória. A realidade passou a ser ficção. E, de repente, surge um presidente que imagina ser John Wayne Jr., uma espécie de cowboy infantil pós-moderno que fica em seu forte apache, Camp David, jogando WAR com amigos mais velhos. Como um moleque de 6 anos que ainda busca a aprovação e o colo do pai, tenta vencê-lo pela imitação, fazendo, sem questionar, tudo o que os amigos mais experientes, alguns amigos do pai inclusive, dizem que deve ser feito. Não haveria problema algum nessas travas psíquicas, comuns na vida dos seres humanos, se elas não viessem justamente do homem mais poderoso do planeta que, como não poderia deixar de ser, sofre de profundo narcisismo, tão inexoravelmente arraigado a ponto de fazê-lo crer, piamente, que a publicidade favorável o salvará, desculpando-o pelo que tem feito, por ser quem é.
No jogo das imagens
A chance de os EUA de permanecerem como nação-líder do mundo por mais algum tempo, se é que se precisa de um país que lidere os demais, foi-se, não no dia 11 de setembro, mas nas atitudes tomadas pelo governo dos EUA após o 11 de setembro. A guerra contra os famintos do Afeganistão, com o sinistro objetivo de encontrar um homem supostamente responsável pelo terrorismo mundial, pela raiva de muitos, talvez até somatizada por bin Laden e seus seguidores, foi um grande atestado da sandice hollywoodiana de que padece o governo dos EUA.
E não foi por causa da desmoralização mundial de terem devastado um país miserável, matando milhares de civis, sem encontrar o tal homem responsável pelos atentados de 11 de setembro, que os EUA afundaram ainda mais economicamente. E também não será agora, depois da guerra contra o Iraque, que o Império conseguirá crescer para se manter no poder. Nem que achem o Saddam, pouco importando se vivo ou morto, independentemente do que a ONU fará ou deixará de fazer por lá no pós-guerra.
A fórmula investimento bélico sobre miséria multiplicada por criminalidade está vencida. Sempre esteve, mas não contávamos com a comunicação em larga escala.
O maior bem que os EUA fizeram ao mundo ? a fantástica fábrica de telecomunicações e seus rizomas em todos os setores da sociedade, mais ou menos contaminados ? é também o seu maior algoz nesses momentos finais. A imagem da máscara já estava abalada, já era feia o bastante e já havia causado bastante mal. O rosto, revelado agora, é ainda mais assustador. Nem os americanos conseguem engolir a imagem da imagem, a ficção vestida de verdade, a realidade transfigurada pela ficção.
A longo prazo teremos ainda gratidão aos norte-americanos, o legado positivo que deixarão será cada vez mais reconhecido por todos, inclusive pelos povos árabes. E a longo prazo também teremos muito trabalho para reorganizar um planeta que se acostumou aos excessos, que hiperinvestiu na desigualdade em nome da abundância concentrada, que massacrou os sentimentos em nome das aparências, um mundo que está literalmente atolado num lamaçal de injustiças acobertadas por fachadas.
Da medicina à puericultura, destacando o grande estrago na agricultura, sem esquecer os excessos na engenharia e a desigualdade na justiça, nada escapou do jogo das imagens. Tinha tudo para dar certo, mas esqueceu-se o principal: o sentido maior. Agora, nem Deus salva a América.
(*) Jornalista