LÍNGUA & LEITURA
José Carlos Aragão (*)
Quero começar por Quintana: "Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem". Cito-o a propósito de artigo de Deonísio da Silva, no último Observatório da Imprensa, que sugere que os cursos de Letras de nossas universidades ? que estão despejando no mercado milhares de jovens fadados ao desemprego ? poderiam prestar grande serviço na luta contra os abusos que se cometem contra nossa querida língua pátria. "Se a língua, além de nossa mãe e símbolo de nacionalidade, é também instrumento de cidadania, que seja protegida e defendida. E, principalmente, estudada", escreve.
Lembrei-me também de Quintana por causa de outro artigo, publicado na mesma edição do Observatório, assinado pelo roteirista multimídia e escritor Alexandre Gennari, que retoma o mote da "crise na dramaturgia", já abordada aqui por outros escribas ? eu, inclusive. Gennari escreve: "Também na arte, inclusive na de escrever roteiros, é preciso que se façam investimentos no ensino e na formação das pessoas. Não há outro caminho."
Em princípio, é claro que só posso concordar com os nobres propósitos dos meus ilustres vizinhos deste condomínio do livre-pensar que é o Observatório da Imprensa. Também eu sou um amante do bom texto, da palavra nua e das possibilidades infinitas da língua. Não é à toa que luto para defendê-la como patrimônio cultural inalienável e transcendental, talvez meu único bem ao mesmo tempo pessoal e coletivo, herança que recebi e devo deixar aos meus ? se não enriquecida, pelo menos não depreciada.
Quanto ao papel dos cursos de Letras, compete-lhes, sem dúvida, zelar pela língua ? razão maior de sua própria existência. Mas o que é a escola, senão a conjunção de interesses de quem detém o conhecimento e louva repassá-lo e de quem não o detém e deseja adquiri-lo? Na teoria, isso nada mais é que aquilo que a sabedoria popular consagra como "juntar a fome com a vontade de comer". Na prática, entretanto, não parece ser bem assim.
Tudo porque ? tragicamente ? nossos jovens não lêem.
E, aqui, retomo o que diz Gennari, que defende "investimentos no ensino e na formação", e concluindo ainda que "não há outro caminho". Sem querer partir para uma investigação quantitativa do quanto os governos investem no ensino de seus cidadãos, minha vivência e experiência pessoal me permitem dizer que nossos jovens não são satisfatoriamente orientados para o prazer da leitura. Em todos os níveis de ensino, a leitura é quase sempre praticada como uma obrigação que deverá ser cumprida pelo aluno, em troca de uma nota que deverá ser somada aos pontos necessários à sua aprovação final. É a aplicação do método de "condicionamento instrumental", do behaviorista Skinner, como se os alunos fossem ratos ou pombos apertando botões para ganhar comida.
Como autor de livros infantis, busco estar sempre em contato com meu público e o que percebo é que, a despeito da concorrência de todos os prazeres tecnológicos que invadiram o mundo da criança ? videogames, internet, TV ? ela ainda se encanta com fadas, bruxas e heróis que habitam as páginas de um livro. Mais que isso, vejo-as se encantarem com as possibilidades lúdicas da palavra, especialmente no contexto poético (rimas, sonoridade, metáforas, ritmo).
Vício, não hábito
Em algum momento, todavia, o encantamento e o prazer se perdem, não sei se engolidos pelo pragmatismo da rotina escolar ou pela realidade de uma Bagdá bombardeada.
Logo, esses ex-leitores poderão ser vistos em chats da internet, que são os mais profícuos laboratórios de degeneração e empobrecimento do nosso ? e de outros ? idiomas. Chat, para quem ainda não teve a oportunidade de conhecer e freqüentar, é uma ferramenta que veio para substituir, ao mesmo tempo, a carta e o telefone ? com claros prejuízos aos dois.
Por um lado, uma conversação telefônica que poderia durar 15 a 10 segundos num chat ? em que toda a conversação é escrita ? pode levar um tempo quatro vezes maior, já que cada intervenção de um interlocutor não pode ser interrompida antes que ele a conclua. Na prática, é um retrocesso na comunicação humana, que perde em objetividade, interatividade e tempo.
Por outro lado, potencialmente, o chat teria a virtude de estimular a prática da escrita, por seus usuários. Mas aí, como é preciso ganhar tempo, as pessoas começam a abreviar palavras e acabam criando um dialeto novo, restrito e que, depois, acaba sendo inadequadamente transposto para outras formas de expressão escrita. Nessa prática, cometem anacronismos como escrever "naum" para significar "não". Por quê? Porque querem ganhar tempo na digitação e digitar "ene-til-a-o" é mais demorado que digitar "ene-a-u-eme". Ah, tá…
Sem querer ser saudosista ou retrógrado, a carta convencional permitia que duas pessoas trocassem idéias em parágrafos elaborados e em uma disposição lógica e temática, obrigava a uma argumentação bem fundamentada, clara, objetiva, e a uma prática mais enriquecedora para a linguagem e para o desenvolvimento de um estilo.
Assim, a meu ver, há outro caminho, sim, para a formação de bons autores, dramaturgos, roteiristas ? e jornalistas também: a leitura. Mas a leitura praticada por prazer, não por obrigação. A leitura realizada por necessidade, não por hábito ("hábito é escovar os dentes; leitura tem que ser vício", ouvi uma vez, num seminário, da escritora e pesquisadora Fanny Abramovich).
No mais, comecei com um poeta, quero terminar com outro. Manoel de Barros fala, com entusiasmo e paixão, de como o gosto da leitura o levou ao gosto por escrever:
"O padre me dava livros. Eu não gostava de refletir, de filosofar, mas os desvios lingüísticos, os volteios sintáticos, os erros praticados para enfeitar frases, os coices na gramática dados por Camilo, Vieira, Camões, Bernardes ? me empolgavam. Ah, eu prestava era praquilo!"
(*) Escritor, jornalista e dramaturgo, de Belo Horizonte
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