Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sem muito sangue, por favor

GAME OVER

José Carlos Antonio (*)

Não estava no script, mas a TV mostrou familiares de prisioneiros americanos em situação de desespero, mostrou soldados americanos e iraquianos mortos e estropiados, mostrou velhos e criancinhas iraquianas em frangalhos, casas e escolas destruídas… Mas foi só um pouquinho. Um pouquinho suficiente apenas para que aquelas "almas mais sensíveis" pudessem vestir uma leve expressão tola de asco e reprovação. Nada mais.

O que as TVs americanas, e por extensão todas as TVs ocidentais, têm mostrado desde a Guerra no Golfo, em 1991, é um joguinho de videogame politicamente correto, como aqueles joguinhos chatos em que os monstrinhos (com cara de monstrinhos mesmo) morrem e se desintegram sem espalhar sangue pela tela.

O gado jovem, isto é, os habitantes civilizados do planeta norte-ocidental nascidos depois da Guerra da Coréia, não conhecem muito bem o abatedouro, porque há décadas vêm sendo apenas engordados às custas do capim farto e verde que brota nesses recantos miseráveis do resto do mundo. Desde pequeninos os vitelos norte-ocidentais aprendem que a vida é um jogo de ganhar e que os inimigos são monstrinhos inumanos que devem ser exterminados a fim de se acumular créditos para a próxima fase do jogo. Além disso, nesse videogame, quando alguém perde o jogo vê sempre na tela um tal de game over, mas tem sempre um botãozinho mágico, chamado reset, que permite recomeçar tudo de novo, como se apenas experiência construtiva se somasse à vida.

Quando o vitelo faz um upgrade para novilho e lhe vestem uma farda, penduram-lhe um fuzil e outros badulaques tecnológicos e dizem-lhe "Vai, fedelho, vai defender a democracia e a liberdade da América", é nessa hora que o videogame acaba e começa um outro jogo do qual ele nunca ouviu falar na TV. O jogo da vida. Nesse novo jogo ele vai descobrir que só se perde, mesmo quando parece que se ganha. Aqui, pokemons devoram pokemons e a cada nova evolução eles se tornam ainda mais fracos e cada vez com menos poderes.

Maldito botão

Nossos novilhos e novilhas, e ainda alguns bovinos de carne já mais endurecida, mas ainda assim de "alma sensível", chocam-se com aquelas imagens "fortes" mostradas por engano na TV, porque aquilo é o que lhes parece ser o "irreal". Alguns até se revoltam: "A TV não deveria mostrar isso. O que um jovem vai pensar vendo essas imagens?". É, na verdade a TV deveria mostrar apenas balas tracejantes riscando o breu da noite, mísseis sendo lançados de imensos porta-aviões ou de sofisticadíssimos aviões de combate e, no máximo, imagens distantes de explosões cinematográficas. Tudo como no videogame em que se treinou para a vida de gado… Gado que pensa que se alimenta de outra espécie.

É fácil participar de uma guerra diante da televisão-videogame e é até mesmo possível se ter alguma admiração e espanto pela tecnologia de guerra, pela estratégia animada em três dimensões, pelo volume do dinheiro gasto, pelo som dos caças e pelo risco das balas tracejantes. Mas que graça há em saber que os monstrinhos sangram e berram de dor nas trincheiras tanto quanto nossos bifes o fazem nos abatedouros? É ótimo saborear um bom filé, mas é horrível, para essas almas sensíveis, sangrar o boi para lhe cortar esse apetitoso pedaço.

As almas sensíveis do mundo desejam uma guerra rápida, tanto quanto apressam o garçom, e querem o filé "ao ponto", da mesma forma que querem o petróleo, a estabilidade do dólar e a harmonia dos mercados financeiros. Mas ninguém quer saber o nome dos bois sacrificados, ou se estão sendo "sacrificados cirurgicamente" ou então, como geralmente acontece, sendo mortos a pauladas.

A crueldade da guerra está em expor tanto o sangue dos mortos quanto o nosso rubor amarelado por detrás da máscara de civilizado que compramos no shopping. Maldade é matar criancinhas na nossa frente, quando poderiam ter se transformado apenas em estatísticas, como as 500 mil que já morreram no Iraque por causa do embargo econômico a que o país foi submetido desde a Guerra do Golfo. Estupidez é ver esses monstros maltrapilhos, com aquela expressão quase humana na face, armados de espingardas vagabundas, mas atirando na elite dos super-heróis libertadores da humanidade que só querem matá-los rapidamente e sem muito sofrimento, para seu próprio bem. São animais sem juízo, esses iraquianos tolos, como os novilhos que teimam em ficar se debatendo entre as pauladas, em vez de simplesmente oferecerem a cabeça para o golpe certeiro.

Que droga! Onde está o maldito botão de reset desse videogame nojento?

(*) Professor, autor de material didático, escritor