CORAÇÕES E MENTES
José Carlos Aragão (*)
Ao longo de quase todo o último século, os Estados Unidos investiram incontáveis "zilhões" de dólares em uma poderosa arma de conquista e dominação de todos os povos do mundo: a propaganda. Muito mais eficazes que seus submarinos nucleares, seus mísseis teleguiados ou seus marines superequipados em combate no Iraque, o cinema americano, o rock?n?roll, a Coca-Cola e o MacDonald?s têm disseminado pelo mundo, tragicamente, a cultura do american way of life.
Nós, terceiro-mundistas resignados e submissos, assistimos, ouvimos, bebemos e comemos, há bem um século, uma exótica cultura de massa que nos oprime e que parece dominar inapelavelmente nossos corações e mentes.
Caminhamos, todos, para a obesidade causada pelos hambúrgueres com coca-cola, pelas batatas fritas com ketchup. Uma partida da NBA pela tevê toma ares de Fla-Flu. O halloween (antigamente conhecido por aqui como "Dia das Bruxas") substitui, em nossas escolas fundamentais, as quadrilhas juninas e o Dia de Cosme e Damião.
Copiamos e adotamos modelos e costumes estranhos, sem qualquer questionamento ou contestação. Se um ministro se levanta em favor da broa de milho, é ridicularizado. Se um deputado quer salvar a nossa língua de uma invasão galicista (talvez fosse melhor, nas circunstâncias atuais, dizer "anglo-saxônica"), é um sonhador (pejorativamente falando), uma espécie de Policarpo Quaresma vivo, revisitado.
E o pior é ver que, cada nova geração, já nasce impregnada dessa cultura deformada, corrompida, em transformação. Nesse ritmo, não levará muito tempo até que possamos ter o nosso Green Card sem sequer cruzarmos a linha do Equador, porque os Estados Unidos deixarão de ser da América: a América é que será dos Estados Unidos.
Enquanto isso não acontece, na outra frente de batalha, no Oriente Médio, os Estados Unidos tentaram abandonar a retórica da propaganda e apelaram para outras armas. Mas, como o hábito faz o monge, não conseguem resistir à tentação de fazer da guerra uma nova arma de propaganda.
Ou eu sou muito Ubaldo, ou essa guerra começou em 11 de setembro de 2001, quando Bush resolveu que era preciso retaliar. O Afeganistão ? sem uma prova cabal da eliminação de bin Laden ? tornou-se apenas um aperitivo. Elegeu, então, um Eixo do Mal ? Irã, Iraque e Coréia do Norte ? contra o qual todo o governo voltou suas baterias verbais. A Coréia do Norte é um vespeiro, porque tem a bomba. O Irã, hoje, é quase um vulcão adormecido. O Iraque ? este estava meio atravessado na garganta desde a 1? Guerra do Golfo, em que Bush Pai libertou o Kuwait, mas não conseguiu libertar o Iraque de seu ditador. Umas insinuações de que Saddam Hussein tem ligações com a al-Qaeda, de que fabrica armas de destruição em massa, de que é uma ameaça para humanidade e estão armados o cenário e o pretexto. (Ah! Faltou dizer que o Iraque tem uma das maiores reservas de petróleo do mundo. Mas isso não tem importância e é deliberadamente omitido em toda a campanha contra Saddam e contra o Iraque, por razões que não convém discutir.)
Depois de tudo armado é só ignorar a opinião pública mundial, desmoralizar e implodir a ONU e partir para o front. Lá, tem início uma outra guerra: pelo controle e manipulação da informação.
Asterix e os romanos
Os americanos (e ingleses, seus aliados incondicionais de primeira hora) plantam repórteres e cinegrafistas na linha de frente dos combates e tudo é transmitido para tevês do mundo inteiro. Tudo? Nem tudo. Como uma conhecida pequena aldeia gaulesa que resistisse à invasão dos romanos, há exceções. As imagens mostram, inicialmente, o grande poderio bélico das forças da coalizão anglo-americana que lembram cenas de épicos hollywoodianos. A estética é a das cenas de combate de clássicos filmes do pós-guerra (a Segunda, do século passado) com toques de Platoon e ? muito adequadamente, talvez ? Nascido em 4 de Julho. Em seguida, pra quebrar o tédio de imagens desumanizadas e frias, o elemento humano é incorporado e surgem os primeiros iraquianos capturados e rendidos. E humilhados: ajoelhados diante de marines armados até os dentes, amontoados entre barricadas de arames farpados, sendo xingados.
O Iraque reage. Com a captura dos primeiros americanos, estes também são expostos à humilhação e execração pública, em imagens que correram o mundo todo.
Todo? Nem todo. Na grande aldeia americana encravada no norte do continente, as imagens foram censuradas. Temia-se que a população repetisse a reação que houve quando as imagens das frentes de batalha do Vietnã invadiram os lares americanos nos anos 60, e que as famílias começassem de novo a questionar se era justo mandar seus filhos para lutarem uma guerra injustificável e tão distante.
Censura, justo no país campeão das liberdades civis, da liberdade de opinião e de expressão ? que o cinema nos "vende" diariamente… Quem diria? Os Estados Unidos não foram capazes de beber do próprio veneno. Justificam seus fins (a conquista, a dominação, a salvação da humanidade, a guerra) por todos os meios (a propaganda, as armas, a guerra): julgam-se a palmatória do mundo. Se espalham pelo planeta um forte sentimento antiamericano isso sequer lhes afeta, porque confiam na força de seu poderio bélico e na sua capacidade de corromper corações e mentes com sua propaganda.
E foi bem assim que começou a ruir o Império Romano, contam-nos Uderzo e Gosciny em seus quadrinhos. E, a propósito ? como hoje ?, com a brava resistência dos gauleses.
(*) Jornalista e dramaturgo, Belo Horizonte