Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Falácia e eficácia das estatísticas

DESEMPREGO E ANTINOTÍCIA

Rosa Lima (*)


“No futuro, o pensamento estatístico será tão necessário para a cidadania eficiente como saber ler e escrever.” H.G. Wells (escritor, autor de A Guerra dos mundos” e A máquina do tempo)


Pode-se justificar qualquer bobagem com estatística, costumava ironizar o saudoso João Saldanha. E citava como exemplo a falácia de afirmações como: "cada brasileiro come em média um frango por mês", para provar que nosso povo é bem nutrido, quando, na verdade, para um privilegiado que come 10 frangos por mês, há outros nove que não comem nenhum. Não é de hoje que se sabe que dados mal interpretados podem ajudar a maquiar a realidade. Tanto que, já em 1954, Darrell Huff escreveu um livro célebre, Como mentir com estatística, no qual mostrava como o uso de certas estatísticas pode fazer falar aos números mensagens contraditórias, ou meias verdades. E nem sequer é preciso mentir, apenas mostrar a informação conveniente e omitir as outras. Ou mesmo dar destaque a uma informação irrelevante num conjunto de dados.

Foi o que aconteceu com a cobertura da última Pesquisa Mensal de Emprego, divulgada na sexta-feira, 28 de março, pelo IBGE. Quatro dos maiores jornais do país destacaram o aumento do desemprego nos títulos de suas matérias sobre o assunto na edição de sábado. O Globo abriu seu caderno de Economia com matéria de página inteira (e chamada na primeira página), com a seguinte manchete: "Desemprego sobe e renda pára". O Jornal do Brasil usou o alto da última página do primeiro caderno e publicou sua matéria com o título "Desemprego aumentou em fevereiro". O redator do Estado de S. Paulo optou pelo título "Desemprego sobe para 11,6% em fevereiro", ainda que a repórter tenha aberto a matéria destacando que "o mercado de trabalho se manteve praticamente inalterado em fevereiro". E a Folha de S.Paulo estampou no alto da página 3 do caderno Dinheiro o título "Desemprego cresce, diz pesquisa do IBGE", mesmo que no antetítulo tenha tido o cuidado de destacar: "Taxa fica em 11,6% em fevereiro contra 11,2% em janeiro; sobre fevereiro de 2002 há queda de 0,9 ponto percentual".

Erraram os principais jornais brasileiros? Tecnicamente, não. De fato, a taxa de desemprego do país subiu 0,4 ponto percentual de janeiro para fevereiro, de acordo com a pesquisa do IBGE. Mas, jornalisticamente, os quatro erraram. Por quê? Simplesmente porque não há nada de novo no fato de a taxa de desemprego ser mais alta em fevereiro do que em janeiro. Todo ano é assim. É um comportamento tipicamente sazonal que explica que mais gente procure emprego num mês em que as vagas ofertadas são em menor número. Portanto, não há notícia aí, ainda mais que o aumento da taxa foi irrisório. Seria o mesmo que considerar notícia o fato de dezembro registrar mais vendas que novembro ou de o mês de junho ser mais frio que o de maio. Nada mais normal. É como a velha máxima do jornalismo que reza que só é notícia o dono morder o cachorro, e não o contrário. A não ser, é claro, quando o cachorro estraçalha e mata o dono. Fora isso, não dá nem colunão, como se diz em jargão de jornal.

Munição pesada

Notícia, no caso da mais recente Pesquisa Mensal de Emprego, seria o fato de a taxa de desemprego ter recuado quase um ponto percentual (de 12,5% para 11,6%) entre fevereiro de 2002 e fevereiro último, num cenário de inflação, juros altos e, portanto, baixa atividade econômica. Todo jornalista que cobre economia sabe que a comparação de índices, para fim de análise de tendência, só pode ser feita entre períodos iguais, justamente para se evitar os efeitos sazonais. Este ano, entretanto, havia um problema: como mudou a maneira de fazer a pesquisa, o IBGE não dispunha dos dados das regiões metropolitanas de Salvador e Porto Alegre relativos a fevereiro de 2002, já que seus técnicos apenas começaram a captar os novos dados a partir de março. A comparação do Brasil como um todo ficava assim prejudicada.

Nesse caso, qual teria sido a saída mais correta jornalisticamente? Informar que a taxa de desemprego caiu, ressalvando no subtítulo que a afirmação não dizia respeito ao país como um todo, já que duas das seis regiões metropolitanas não foram pesquisadas. Ou abrir mão da análise nacional, impossível de ser feita integralmente por enquanto, e, em troca, optar por uma análise mais localizada.

Foi o que fez a Agência de Notícias Iets, dando ênfase à situação do mercado de trabalho do Rio, sobre o qual os dados estavam disponíveis, permitindo a comparação. E onde havia notícias importantes a serem divulgadas, como a queda na taxa de desemprego de 10,7% para 8,6%, o aumento de 7,8% no nível de ocupação e ainda o crescimento do número de empregadores, empregados com carteira assinada e autônomos, uma surpresa num mercado marcado pela crescente precarização do trabalho.

No afã de dar uma visão ampla do país, os jornais acabaram por desinformar. É bem verdade que todas as matérias fazem a ressalva de que a comparação com o mês anterior é sujeita à sazonalidade, portanto não permite falar em tendência. Mas todos sabemos também que essas explicações e tecnicalidades são para iniciados. Para o grosso dos leitores o que fica é o que está estampado no título, ou seja, que o desemprego cresceu.

Esse erro de interpretação pode parecer banal e sem maiores conseqüências. Mas é bom lembrar que esta foi a primeira pesquisa sobre o mercado de trabalho do governo Lula. No mínimo, os leitores terão a impressão de que o desemprego cresceu neste governo, quando na verdade isso não passou de um comportamento sazonal do mercado. Nas mãos da oposição ou dos radicais do próprio partido governista, essa notícia pode acabar virando munição pesada e trazendo mais instabilidade política. E instabilidade é tudo o que não se quer mais no Brasil. Sejamos mais atentos e cuidadosos com o que publicamos!

(*) Jornalista, editora da Agência de Notícias do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets)