PENTE & LAQUÊ
Paulo José Cunha (*)
Já temos uma imagem-ícone da invasão do Iraque: é a de Bush ensaiando o discurso que algum pau-mandado escreveu para que ele recitasse naquela madrugada em que a BBC abriu a temporada de fogo amigo contra Tio Sam, tendo ao lado, pressurosa, uma cabeleireira que guerreava contra uma madeixa que insistia em não se submeter à pantomima do império. Aquela madeixa terminaria sendo a última fatia de sensatez na expressão simiesca do presidente (que alguém mais afeito à cultura de banca de revistas identificará facilmente a figura do bocó MAD, a criação imortal de Alfred Newman).
Na madrugada em que se abriu o espetáculo, enquanto a primeira bomba não caía sobre Bagdá, a CNN enervava o mundo com a imagem fixa de uma câmera montada num tripé travado, sem qualquer movimento horizontal ou vertical, mostrando uma paisagem noturna da capital do Iraque. No piso da tela, telhados e sinagogas. No resto, até o topo, apenas um céu sem nuvens, palco do espetáculo que estava pra começar. A própria imagem sintetizava tudo: o que menos interessava era o que se via embaixo (casas, pessoas, carros, cachorros, enfim, esta coisa "colateral" chamada vida). O espetáculo, o foco da atenção, o cenário, este estava em cima, no céu vazio, onde o entretenimento ia acontecer (bombas, fulgores, explosões, talvez até mortes, viva!). Aqui e ali, no piso da tela, um carro solitário a transitar pela madrugada de Bagdá. Para distrair os espectadores, de vez em quando a tevê do mundo plugava a tevê oficial do Iraque. E o Iraque aproveitava o momento de atenção do mundo para mostrar, entre painéis gigantes de seu amado ditador e hinos patrióticos, belas paisagens de seus desertos, cenas cotidianas dos seus mercados, suas danças folclóricas, os véus esvoaçantes de suas bailarinas, os risos de suas crianças, seus cantores entoando lânguidas canções das mil e uma noites, numa inútil tentativa de denunciar o desastre iminente.
Isto até o momento em que a cena muda da madrugada de Bagdá e as cenas alegres da tevê iraquiana foram bruscamente substituídas por um plano próximo do presidente George Bush com ar de idiota sem saber que já estava no ar, ensaiando o texto da declaração de guerra, enquanto a tal madeixa (incômoda como um pacifista) tornava-se, naquele momento, o inimigo principal, pois conspurcava a solenidade pretendida para o instante supremo da biografia de César.
Rapidamente, potentes mísseis de laquê foram enviados e neutralizaram o inimigo. E assim se assegurou a imagem exata, asséptica e objetiva de um homem determinado a impor sua visão de justiça a um planeta que esperneava na incapacidade de perceber que ele, e somente ele, acolitado pelo primeiro-ministro do secular império britânico, era quem detinha a razão.
O planeta não esquecerá
Só que não funcionou. Pois a implacável lente da tevê guardou para sempre a imagem denunciadora do discurso falso elaborado pelos ghostwriters. E a imagem que o mundo viu antes do primeiro ataque foi a de alguém representando um papel. Alguém que sequer tinha certeza do texto a dizer. Alguém, que, se não houvesse um teleprompter (aquela maquininha ordinária em que os apresentadores dos telejornais fingem uma memória fantástica, mas na verdade lêem o texto que alguém escreveu pra eles), corria o risco de entregar o ouro aos bandidos. Pois foi ali, no Salão Oval da Casa Branca (o mesmo em que o "presidente norte-americano" entregou o planeta Terra aos alienígenas na inesquecível mas execrável cena de Superman II, lembra?) que se consagrou o simbolismo da supremacia do falcão.
Símbolos. Por eles se vive, por eles se morre. O primeiro ? a imagem de Saddam erigida em ícone imponente e arrogante pelas ruas de Bagdá, desfilando na tela da tevê; o segundo ? George Bush, no Salão Oval da Casa Branca (último ícone do poderio econômico-militar norte americano pós bin Laden), ensaiando pateticamente seu improviso.
Enquanto mundo houver, jamais o planeta se esquecerá da guerreira armada com um pente e um tubo de laquê, naquela madrugada sinistra, ajudando o mundo a acreditar nas palavras que o ator ainda ensaiava tentando exibir um ar inteligente no rosto de olhos estrábicos. Cena surpreendente, decepcionante, eterna. Terrível demais para ser, pelo menos, engraçada.
(*) Jornalista, pesquisador, professor da professor da Faculdade de Comunicação da UnB. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>