COBERTURA DE GUERRA
“Bem pra lá de Bagdá”, copyright Comunique-se (www.comunique-se.com.br), 28/03/03
“A exibir aquele ar de perplexidade que lhe disfarça o cinismo, Janistraquis apareceu, dedos pinçados aos pés de um passarinho morto. ?Mais um, considerado, mais um que se arrebenta no vidro da janela?, lamentou, já irritadíssimo com este sol que encandeia os pássaros e nos torra a paciência. ?Agora, o pior deste falso outono é que, ao feitio do verão, ferve os poucos miolos das pessoas, escancara burrices, faz suar as safadezas, né mesmo??, tornou. Eu quis saber logo o nome da vítima, ele rodeou:
– Não é ninguém, não; eu só queria saber uma coisa: quando as tropas de Hitler entraram na Áustria, em 1938, aquilo foi guerra ou invasão?
– Invasão.
– Quando, no ano seguinte, o sacana meteu o pé nos ?sudetos? da Checoslováquia, foi guerra ou invasão?
– Invasão.
– E em setembro de 39, quando as divisões hitleristas tomaram conta da Polônia, foi guerra ou invasão?
– Invasão.
– Então, consideradíssimo, por que cargas d?água toda a mídia, do mais reles jornaleco do interior às sofisticadas emissoras de rádio e tevê se referem, dia após dia, à ?guerra do Iraque?, quando se trata, evidentemente, de uma bestial invasão?!?!?!?
Confessei falência de argumentos, porém meu secretário, que não larga as Obras Completas de Eça, determinou, com a certeza dos xiitas: ?Pois olhe, considerado, ou a imprensa está atacada de obtusidade córnea ou má-fé cínica; a dúvida é somente essa?.
(Janistraquis só recupera o humor quando Marcos Uchoa aparece na cobertura da Globo, em meio aos perigos do front. Pleno de arrebatamento jornalístico com o trabalho arriscado do esperto e ?videofonizado? repórter, este correspondente aqui da roça faz questão de homenageá-lo, ao conceder-lhe o epíteto de ?Raposa do Deserto?.)
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O negócio é boicotar!
Ao criticar a ineficiência dos movimentos pacifistas em artigo aqui mesmo neste Comunique-se (?A mídia, a ciência e a guerra?, editoria Em Pauta, 25/3), o professor Cidoval Morais e Souza escreveu: ?(…) O protesto pelo protesto não resolve em situações críticas como a que estamos vivendo. O discurso tem que se fazer acompanhar de uma ação concreta, urgente, que corte algumas asas do dragão. Nesse sentido ganha corpo a idéia de boicote, nos mercados mundiais, a produtos considerados símbolos da cultura americana, como Coca-Cola e McDonald?s (…)?.
Janistraquis, que leu o curioso artigo agarrado a uma garrafa de dois litros desse veneno de Atlanta, armou um sorriso safado: ?Considerado, vamos escrever ao professor que o boicote precisa começar pela americaníssima Internet; assim, levaríamos gente como Bill Gates à falência e ainda nos livraríamos de um monte de besteiras?.
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De olho no BBB
?Eu odeio o Dhomini?, dizia o título da coluna de Joaquim Ferreira dos Santos no Jornal do Brasil. Num dos parágrafos, esclarecia: ?(…) Ele não é exatamente um artista. Aparece na televisão, que não é exatamente uma arte, e é um dos trancafiados na casa do Big Brother – a única prisão do Brasil, já que tenho muitas dúvidas sobre Presidente Bernardes, onde não entra celular e as ordens são dadas pelo público do lado de fora. Dhomini, talvez com Fernandinho Beira-Mar, deveria permanecer por lá. Expôs em rede nacional sua namorada em chifres. Traiu a pobre coitada com outra mulher, a mulher que lhe caiu nas mãos depois de ter ciscado para cima de todas as outras. (…) O espetáculo da namorada oficial, Manuela, abraçando a outra, Sabrina, enquanto Pedro Bial gritava vivas ao jeito civilizado do brasileiro encarar as coisas – esse espetáculo coloca em risco mais vidas do que o repórter suicida do Datena na moto pelo trânsito de São Paulo?.
Meu secretário leu, releu, quedou-se meditabundo, todavia deu sinal de vida à hora do almoço: ?Considerado, esse português que escreve no JB é mais invejoso do que o Itamar Franco; será que ninguém come ninguém lá na terra dele??. Não adiantou eu esclarecer que, de luso, Joaquim Ferreira dos Santos só tem nome e sobrenome; é, isto sim, um dos melhores jornalistas do Brasil e foi meu colega na bela Istoé dos anos 70; para Janistraquis, entretanto, Joaquim não passa de um aldrabão de Moita dos Ferreiros, povoado entre Lourinhã e Torres Vedras, onde o esporte é vigiar a prosperidade alheia.
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Errei, sim!
?Pérola do Jornal da Manhã, de Teresina. Título: Irmã Dulce recebe corrente de oração. Texto: ?A equipe médica que assiste Irmã Dulce…?. Janistraquis ficou pensativo. ?Considerado, ô, considerado!? (eu estava distraído); ?se a matéria do Jornal da Manhã era sobre Irmã Dulce, por que cargas d?água tascaram uma foto de Madre Tereza de Calcutá??. É verdade. O jornal acertou a reza, mas errou a santa.? (fevereiro de 1992)
Colaborem com a coluna: Caixa Postal 067, CEP 12530-970 – Cunha, SP; ou moacir.japiassu@bol.com.br.”
“Mera Coincidência”, copyright Consciência.net <http://www.consciencia.net/guerra.html>, 25/3/03
“O filme Mera Coincidência [Wag The Dog], com Robert DeNiro e Dustin Hoffmann, não é exclusivamente de humor. Ele mostra muito da propaganda de guerra que se usa por parte de governos corruptos e com interesses bélicos. Tanto que este filme tem dois dos maiores atores de toda a história do cinema norte-americano e quase ninguém conhece. Uma das formas de se propagar mistificações abordadas no filme acaba de ser utilizada por Colin Powell.
Uma lógica no filme em questão era a seguinte: os responsáveis pela propaganda queriam criar uma guerra para desviar a atenção do público de um escândalo interno grave. Os assessores do presidente (no filme) acharam a idéia absurda, como você leitor deve ter pensado. Mas sugiro que veja o filme para descobrir do que a retórica é capaz.
Uma das táticas foi soltar na mídia um rumor de que haveria um bomber B-52 rumo à Albânia – que foi o país escolhido para a farsa (o que você sabe sobre a Albânia?). Quando as primeiras perguntas dos ditos ?bem informados? repórteres viessem, eles negariam tudo sem dar nenhuma justificativa. Isso alimentaria a curiosidade da imprensa. Negar, negar, negar: provavelmente eles estão mentindo.
É claro que logo se descobriria que o conflito é uma farsa, mas até lá a suposta guerra já teria tomado um bom tempo das redações. E, no filme, eles precisavam de tempo até as eleições. O processo eleitoral de 2004 não é o motivo central da guerra de Bush, porém continua sendo um dos motivos ou, no mínimo, uma agradável conseqüência. É quase científico: o apoio popular ao presidente cresce em tempos de matança maquiada.
Como vimos, uma das formas mais simples de desviar a atenção do público é colocar medo nele. Isso é feito por meio dos falsos ?alertas laranjas? – que indicariam um suposto risco grande de atentados terroristas.
Outra forma, denunciada neste filme, é jogar a culpa do que você mesmo fez para o adversário. E a Reuters relata nesta segunda (24): ?O secretário de Estado norte-americano, Colin Powell, disse nesta segunda-feira que os Estados Unidos ouviram relatos de que Bagdá planejava usar armas químicas contra iraquianos no sul do país e jogar a culpa nos Estados Unidos?.
Fica claro – tamanha a certeza de Rumsfeld e sua gangue sobre as armas químicas que o Iraque possui – que se elas não existirem, uma saída fácil seria colocá-las em uma fábrica esvaziada e argumentar: ?Não disse??.
Uma boa possibilidade seria um erro logístico dos militares, caso o golpe baixo fosse utilizado, colocando as armas num lugar já inspecionado pelos inspetores da ONU. Foram mais de 300 inspeções. Isso comprovaria que as armas chegaram ali depois.
Na continuação da reportagem: ?Segundo um alto funcionário do Departamento de Estado, que pediu para não ser identificado, há relatos de que Ali Hassan al-Majido, sobrinho de Saddam Hussein e comandante das tropas iraquianas no sul, tinha autorização para usar armas químicas contra a população muçulmana xiita. O funcionário negou-se, no entanto, a revelar a procedência da informação?. Jornalismo shakespeareano: ninguém sabe quem é o funcionário. Nem de onde veio a informação. Isso é uma notícia ou um livro de George Orwell.
Só não vê quem é cego. É mais do que evidente que esta informação foi criada pelo Gabinete de Influência Estratégia [Office of Strategic Influence (OSI)], concebido pelo Secretário da Defesa Donald Rumsfeld, em conseqüência do 11 de Setembro. Não se trata de uma invenção minha. Está nos jornais norte-americanos e em artigos de respeitados analistas internacionais.
E mais da Reuters: ?O funcionário do Departamento de Estado repetiu informações, que circularam no início do mês no Pentágono, de que os iraquianos estavam tentando adquirir uniformes iguais aos usados pelos soldados britânicos e norte-americanos ?para realizar massacres que seriam atribuídos às forças da coalizão?. Ele não deu detalhes da fonte ou da credibilidade das informações?.
Esta última frase, que fecha a ?reportagem? (atenção: aspas), é a mais importante frase do texto e, contraditoriamente, a última. (Editor)”
“Fita mostra realidade devastadora de Basra”, copyright Folha de S. Paulo / The Independent, 96/03/03
“Dois soldados britânicos jazem mortos numa estrada de Basra. Uma garotinha iraquiana -vítima de um ataque anglo-americano- é trazida ao hospital com seus intestinos saindo pela barriga. Uma mulher terrivelmente ferida grita de agonia enquanto os médicos tentam tirar seu vestido.
Um general iraquiano, cercado de soldados armados, anuncia no centro de Basra que a segunda maior cidade do país permanece nas mãos dos iraquianos. A fita não-editada da Al-Jazeera -gravada ao longo das últimas 36 horas e recém-chegada a Bagdá- é crua, dolorosa, devastadora.
Também é uma prova de que Basra -que teria sido ?capturada? e ?assegurada? por tropas britânicas na semana passada- está, na verdade, sob controle das forças de Saddam Hussein.
Apesar de alegações de oficiais britânicos de que alguma forma de levante teria acontecido em Basra, carros e ônibus continuam a circular pelas ruas enquanto os iraquianos fazem fila para pegar botijões de gás descarregados por um caminhão do governo.
Uma parte memorável da fita mostra bolas de fogo sobre o oeste da cidade e a explosão das granadas supostamente britânicas. A curta sequência dos soldados britânicos mortos -sobre as quais Tony Blair expressou tanto horror- tem pouca diferença das dezenas de sequências de soldados iraquianos mortos mostrados na TV britânica ao longo dos últimos 12 anos, que nunca provocaram condenação do premiê.
Muito mais terrível que as imagens dos soldados, no entanto, é a fita gravada no maior hospital de Basra que mostra vítimas do bombardeio anglo-americano sendo trazidas às salas de operação, se contorcendo de dor.
Um homem de meia-idade vem de pijamas, ensopado de sangue da cabeça aos pés. Uma garotinha de talvez quatro anos é trazida numa maca, com os intestinos saindo pela barriga. Um médico lava os intestinos da menina e faz um curativo antes da cirurgia. Em outra sequência, uma trilha de sangue leva ao local de impacto de uma granada, supostamente britânica. Ao lado da cratera há um par de sandálias de plástico.
As fitas da Al-Jazeera, a maioria inéditas, são a primeira prova vívida de que Basra continua totalmente fora do controle britânico. Não só uma das principais estradas da cidade para Bagdá continua aberta -foi assim que as três fitas chegaram à capital-, como o general Khaled Hatem é entrevistado numa rua de Basra, cercado por centenas de soldados uniformizados, dizendo ao repórter da Al-Jazeera que seus homens ?nunca? se renderão ao inimigo.
O correspondente da Al-Jazeera em Basra, Mohamed al-Abdullah, deve ser o jornalista mais corajoso hoje no Iraque. Na sequência das três fitas, ele pode ser visto entrevistando famílias sob fogo e relatando calmamente o bombardeio da artilharia britânica.
Cinco dias atrás, o governo do Iraque disse que 30 civis haviam sido mortos em Basra e outros 63 estavam feridos. Ontem, que mais de 4.000 civis foram feridos no Iraque desde o início da guerra e mais de 350 foram mortos.
Mas a fita de Abdullah mostra pelo menos sete corpos trazidos ao morgue do hospital de Basra nas últimas 36 horas. Um, com a cabeça ainda vertendo sangue, foi identificado como um correspondente árabe de uma agência de notícias ocidental.
Outras cenas angustiantes mostram o corpo parcialmente decapitado de uma garotinha, com o lenço ainda em volta do pescoço. Outra menina jazia numa maca sem o cérebro e sem a orelha esquerda. Outra criança morta teve os pés arrancados. Não havia nenhuma indicação sobre se munição americana ou britânica tinha matado essas crianças.
As fitas não indicam baixas militares iraquianas. Mas, numa época em que autoridades iraquianas não permitem a jornalistas ocidentais visitar Basra, isso é a coisa mais próxima de uma evidência independente de que existe resistência na cidade e da falha dos britânicos em capturá-la.
Há também uma sequência que mostra dois homens, ambos negros, que, segundo os iraquianos, são prisioneiros de guerra americanos. Ninguém pergunta nada aos homens, que parecem nervosos e olham para a câmera e para os soldados iraquianos que se amontoam atrás dela.
As fitas não-editadas são a evidência de que os porta-vozes anglo-americanos não têm dito a verdade sobre Basra. E, no fim das contas, isso é muito mais devastador para as forças invasoras do que a visão de corpos de dois soldados britânicos ou -uma vez que as vidas iraquianas são tão sagradas quanto as britânicas- das crianças iraquianas mortas.”
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“A guerra por dentro.”, copyright Revista Fórum (www.revistaforum.com.br), 28/03/03
“No caminho até Bassora, a rede de televisão ITV filmava cachorros selvagens que destroçavam cadáveres de iraquianos. A cada instante, uma destas bestas famintas arrancava diante de nós um braço em estado de decomposição e se punha a correr com ele pelo deserto: os dedos mortos deixavam sulcos na areia, os restos de uma manga queimada tremulavam no ar.
?Só para documentar?, me disse o câmera. Claro. Porque a ITV jamais mostraria tais imagens. As coisas que víamos – a imundice e obscenidade dos cadáveres – não poderiam ser mostradas. Em primeiro lugar porque não seria ?apropriado? mostrar esta realidade pela televisão na hora do café da manhã. Em segundo lugar, porque se a televisão as mostrar ninguém voltaria jamais a respaldar a guerra.
Isto ocorreu em 1991. A ?estrada da morte?, é como chamavam então este caminho. Mas havia outra via paralela que era uma ?estrada da morte? muito pior, uns quilômetros a leste, e foi cortesia da força aérea estadunidense, mas ninguém a filmou. A única imagem que houve destes horrores foi a fotografia de um iraquiano carbonizado dentro de seu caminhão.
Quando finalmente se publicou essa fotografia, ela se tornou uma espécie de ícone, pois representava exatamente o que havíamos visto.
Para que as baixas iraquianas aparecessem na televisão durante essa guerra do Golfo – já que houve outro conflito entre 1980 e 1988, e um terceiro está em preparação – era necessário que houvesse mortos cuidando de cair romanticamente de costas, com uma mão cobrindo o rosto destruído. Como nessas pinturas da Primeira Guerra Mundial dos britânicos mortos no campo de batalha, os iraquianos deviam morrer de forma amena e sem ferimentos evidentes, sem nenhum tipo de miséria, sem rastro de merda, muco ou sangue coagulado, se quisessem aparecer nos noticiários matutinos.
Sinto raiva dessa artimanha. Em Qaa, em 1996, quando os israelenses bombardearam durante 17 minutos a refugiados que estavam dentro de um complexo das Nações Unidas, e mataram 106 pessoas, mais da metade crianças, me deparei com uma jovem que abraçava um homem de meia idade. Estava morto. ?Meu pai, meu pai?, chorava abraçando sua cara. Não tinha um dos braços nem uma perna. Os israelenses haviam usado bombas de proximidade que produzem amputações. Mas quando esta cena chegou às telas de televisão européias e estadunidenses a câmera fez uma aproximação sobre o rosto da garota e do morto. As amputações não foram mostradas. A causa da morte foi apagada em nome do bom gosto. Era como se o homem tivesse morrido de cansaço, com a cabeça apoiada sobre o ombro de sua filha para morrer em paz.
Hoje, quando escuto as ameaças de George W. Bush contra o Iraque e as estridentes advertências moralistas de Tony Blair me pergunto: que sabem eles desta terrível realidade? Por acaso George Bush, que declinou de servir a seu país no Vietnã, tem alguma idéia de como cheiram os cadáveres? Tony Blair tem alguma pálida noção de como são as moscas, esses insetos grandes e azuis que se alimentam dos mortos no Oriente Médio, e que pousam na cara ou no caderno? Os soldados, sim, sabem. Recordo-me de um militar britânico que pediu emprestado o telefone via satélite da BBC durante a liberação do Kuwait, em 1991. Ele falou com sua família na Inglaterra enquanto eu o observava detidamente. ?Eu vi coisas horríveis?, disse, e depois teve um colapso nervoso; chorava e tremia, soltou o telefone, que ficou pendendo de sua mão. Sua família tinha idéia do que ele dizia? Não haviam entendido vendo a televisão.
Isto é o que cabe esperar ante o prospecto da guerra. Nossa gloriosa e patriótica população – ainda que somente cerca de 20% respaldem a atual loucura iraquiana – tem estado sempre protegida da realidade das mortes violentas. Mas eu estou muito surpreendido pelo número de cartas que recebo de veteranos da Segunda Guerra Mundial, homens e mulheres, todos contrários a esta nova guerra iraquiana, e que compartilham comigo suas inevitáveis recordações de membros destroçados e sofrimentos.
Recordo-me de um iraquiano ferido, com um pedaço de ferro incrustado na testa, que gritava como animal – que afinal, é o que todos somos – antes de morrer; de um menino palestino que simplesmente se jogou diante de mim quando um soldado israelense disparou contra ele para matar – deliberada e friamente, com intenção assassina – porque atirou uma pedra. E me recordo de uma israelense com a perna de uma mesa cravada em seu abdômen fora da pizzaria Sbarro de Jerusalém, depois que um atacante palestino decidiu executar as famílias que ali comiam. Também estão os montes de iraquianos mortos na batalha de Dezful, na guerra Irã-Iraque. A pestilência desses cadáveres invadiu nosso helicóptero até que vomitamos. E também me recordo, na Argélia, do jovem que me mostrou o rastro negro e denso que deixou o sangue de sua filha quando ?islamitas? armados a degolaram.
Mas George W. Bush, Tony Blair, Dick Cheney, Jack Straw e todos os demais guerreirinhos que estão nos empurrando forpemente para a guerra não que pensar nestas imagens vis. Para eles tudo são ?bombardeios cirúrgicos?, ?danos colaterais? e todos os outros exemplos da pobreza lingüística própria da guerra. Vamos ter uma guerra justa, vamos libertar o povo do Iraque – obviamente também mataremos uma parte dele – e vamos lhe dar a democracia e proteger sua riqueza petrolífera.
Fingiremos que há pareceres por crimes de guerra e vamos ser sempre muito morais; veremos pela televisão nossos ?expertos? em defesa em suas trincheiras sem sangue e escutaremos seus assombrosos conhecimentos sobre armas que arrancam cabeças.
Agora que penso nisso, recordo-me também da cabeça de um refugiado albanês, talhada limpidamente pelos norte-americanos quando bombardearam – por acidente, é claro – um comboio de refugiados em Kosovo, em 1999. Pensaram que se tratava de uma unidade militar sérvia. A cabeça barbada jazia na grama alta, com os olhos abertos; parecia ter sido cortada por um verdugo dos Tudor. Meses mais tarde me inteirei de seu nome e falei com uma garota que havia sido atingida pela cabeça cortada durante o bombardeio estadunidense. Foi ela quem respeitosamente deixou a cabeça na grama, onde a encontrei.
A OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte, certamente, não pediu perdão à família do homem nem tampouco à garota. Ninguém pede perdão depois de uma guerra. Ninguém admite a verdade. Ninguém mostra o que nós vemos. Por isso nossos líderes e superiores podem ainda nos convencer a ir à guerra.”
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“Como as notícias serão censuradas nesta guerra.”, copyright Revista Fórum (www.revistaforum.com.br), 28/03/03
“Com o sistema do ?script approval? imposto pela CNN o Pentágono já não tem de se preocupar com nada.
Os media empresariais americanos já manifestam a sua aprovação ao método de cobertura das forças americanas que os militares tencionam autorizar na próxima Guerra do Golfo. Trata-se agora de incorporar os rapazes da CNN, CBS ABC e The New York Times entre os marines e a infantaria dos EUA. O grau de censura vai aumentar. Já não é preciso que o Pentágono ande a fazer cortes nos despachos do repórteres. O novo sistema do ?script approval? (aprovação do original) imposto pela CNN – uma instrução aos seus repórteres para enviarem todas os seus textos a responsáveis anónimos em Atlanta a fim de garantir o saneamento adequado – sugere que o Pentágono e o Departamento de Estado não terão de se preocupar com o assunto. Nem os israelenses.
Na verdade, a leitura do novo documento da CNN intitulado ?Memorando da política de aprovação do original? (?Reminder of Script Approval Policy?) é de cortar o fôlego. ?Todos os repórteres a preparar conjuntos de originais devem submete-los à aprovação?, diz ali. ?Os conjuntos não podem ser editados até que os originais tenham sido aprovados… Todos os conjuntos originados fora de Washington, LA (Los Angeles) ou NY (New York), incluindo todas as redacções internacionais, devem ser encaminhados à ROW em Atlanta para aprovação?.
A data desta mensagem extraordinária é 27 de Janeiro. O ?ROW? é uma fiada de editores de originais em Atlanta que podem insistir em mudanças ou equilíbrios? no despacho do repórter. ?Um script não está aprovado para ir para o ar a menos que esteja adequadamente marcado como aprovado por um administrador autorizado com duplicado para o gabinete de cópia… Quando um script é actualizado ele deve ser re-aprovado, preferivelmente pela autoridade que o aprovou originalmente?.
Notem-se as palavras chaves aqui: ?aprovado? e ?autorizado? . O homem ou a mulher da CNN no Kuwait ou Bagdade – ou Jerusalém ou Ramallah – pode conhecer o pano de fundo da sua história; na verdade, eles conhecerão muito mais sobre isso do que as ?autoridades? em Atlanta. Mas os chefes da CNN decidirão o carácter (spin) da história.
A CNN, naturalmente, não está sozinha nesta forma paranóide de reportar. Outras redes dos EUA operam igualmente sistemas anti-jornalísticos. E não se trata de falha dos repórteres. As equipes da CNN podem vestir roupas militares – você os verá vestidos assim na próxima guerra – mas eles tentam revelar alguma coisa da verdade. Da próxima vez, contudo, eles vão ter ainda menos possibilidade.
Para onde este odioso sistema conduz é evidente a partir de uma intrigante conversação no ano passado entre o repórter da CNN na cidade ocupada de Ramallah, no West Bank, e Eason Jordan, um dos dirigentes de topo da CNN em Atlanta.
A primeira queixa do jornalista foi acerca da história do repórter Michael Holmes sobre os condutores de ambulância do Crescente Vermelho que são repetidamente alvejados pelas tropas israelenses. ?Nós arriscámos nossas vidas e andámos com condutores de ambulância… durante um dia inteiro. Testemunhámos a partir da nossa janela na ambulância que estávamos a ser alvejados por soldados israelenses… A história recebeu a aprovação de Mike Shoulder. A história passou duas vezes e então Rick Davis (um executivo da CNN) matou-as. A razão alegada foi que não tínhamos uma resposta do exército israelense, apesar de termos declarado na nossa história que Israel acreditava que os palestinos estavam a contrabandear armas e pessoas procuradas nas ambulâncias?.
A AMBULÂNCIA QUE DAVA TIROS
Os israelenses recusaram-se a dar uma entrevista à CNN, apenas uma declaração escrita. Esta declaração foi então inserida dentro do script da CNN. Mas foi rejeitada outra vez por Davis, em Atlanta. Só quando, depois de três dias, o exército israelense deu uma entrevista à CNN é que Holmes pôde passar a sua história – mas com a desonesta inclusão de uma linha dizendo que as ambulâncias foram apanhadas em ?fogo cruzado? (isto é, que palestinos também atiraram a partir das suas próprias ambulâncias).
A reclamação do repórter era demasiado óbvia. ?Desde quando nós submetemos uma história de reféns aos caprichos de governos e exércitos? Foi-nos dito por Rick que se não conseguíssemos um israelense na camara não teríamos o material no ar. Isto significa que governos e exércitos estão indirectamente a censurar-nos e estamos a representar exactamente como eles querem?.
A relevância disto é demasiado óbvia na próxima Guerra do Golfo. Acabaremos por ver um oficial do Exército americano a negar tudo o que os iraquianos disserem se alguma reportagem do Iraque tiver de ir para o ar. Veja-se outra das queixas do correspondente de Ramallah no ano passado. Num material acerca dos danos a Ramallah após a incursão maciça de Israel em Abril último ?já mencionámos logo na abertura da nossa peça que Israel diz que esta a fazer todas estas incursões porque quer destruir a infra-estrutura de terror Mas, obviamente, isto não era o suficiente. Fomos instruídos pelo ROW (em Atlanta) para repetir esta mesma ideia três vezes na mesma peça, apenas para assegurar continuávamos a justificar as acções israelenses…?
CENSURA COMPUTADORIZADA: CLIQUE O BOTÃO NÃO APROVADO / APROVADO
Mas o sistema do ?script approval? que desfigurou a cobertura da CNN ficou pior. Numa nova e ainda mais sinistra mensagem datada de 31 de Janeiro deste ano, o staff da CNN foi informado de que um novo sistema computadorizado de aprovação de scripts permitirá ?aprovadores autorizados de scripts marcarem os scripts (ou seja, a reportagens) de um modo claro e padronizado. Os EPs (executive producers) de scripts clicarão no botão colorido APROVADO a fim de mudarem a sua cor para vermelho (não aprovado) ou para verde (aprovado). Quando alguém faz uma alteração no script depois da aprovação, o botão mudará para amarelo?. Alguém? Quem é este alguém? Ninguém disse isso aos repórteres da CNN.
Mas quando nos recordamos que após a Guerra do Golfo de 1991 a CNN revelou que havia permitido a ?recrutas? do Pentágono estagiarem na sala de notícias da CNN em Atlanta, eu tenho as minhas suspeitas.”