Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Bia Abramo

COBERTURA DE GUERRA

“Uma guerra com roteiro”, copyright Folha de S. Paulo, 30/03/03

“NO DIA seguinte ao início da guerra contra o Iraque, a rede norte-americana ABC dedicou seu horário dito nobre (das 20h às 23h) à cobertura da guerra e perdeu para a NBC, que preferiu manter sua programação de entretenimento. Exibiu uma reprise do seriado ?Friends? e, com isso, atraiu 4 milhões a mais de norte-americanos do que aqueles que estavam assistindo ao noticiário de guerra. Os números foram divulgados por agências de notícias e publicados em vários veículos de comunicação.

Claro, há um dado de escapismo evidente: parte do poder da TV reside em funcionar como uma espécie de droga, como uma maneira de estar desperto sem estar realmente acordado ou, para usar uma palavra desgastada, mas ainda pertinente, de alienar-se. Logo, parece razoável que a ficção ganhe da realidade.

Mas no caso desta guerra contra o Iraque, em que a ficção urdida no Pentágono tenta se impor à realidade, pode-se supor que, naquela noite, os norte-americanos estavam, na verdade, escolhendo entre dois tipos de ficção. E, em maior número, preferiram o já testado ao ainda incerto. Como entretenimento, um episódio já exibido de ?Friends? vale mais do que uma reprise da Guerra do Golfo.

Dias depois, na 75? cerimônia de entrega do Oscar, o jornalista e cineasta Michael Moore, que levou o prêmio de melhor documentário de longa-metragem com ?Bowling for Columbine?, aproveitou o discurso de agradecimento para protestar contra a guerra. Diante de milhões de espectadores em todo o mundo, Moore convidou os outros indicados a subirem ao palco e, brandindo seu homenzinho dourado, disse: ?Todos nós gostamos de documentário, mas vivemos num tempo de ficção, com resultados eleitorais fictícios, um presidente fictício… Estão nos enviando à guerra por razões fictícias.?

O ?tempo de ficção?, que elegeu Bush e produziu a guerra, segundo Moore, invadiu o telejornalismo. A cobertura da guerra das TVs norte-americanas parece seguir um roteiro já escrito, cabendo aos jornalistas apenas captar as imagens que servem para ilustrá-lo -as que não cabem no roteiro, como, por exemplo, as das manifestações pacifistas, particularmente nos EUA, vêm sendo sistematicamente ignoradas ou relegadas a terceiro plano pelas emissoras. As imagens ao vivo, mesmo que não façam nenhum sentido, seja porque a qualidade segue sofrível na maioria dos casos, seja porque a narração do jornalista, via de regra, é incapaz de explicar e interpretar o que está, de fato, acontecendo, não saem da tela, como se o registro da realidade fosse ela mesma.

O tal do tempo real que as TVs se esforçam em apreender entra em choque com outro recurso usado à exaustão na cobertura extensiva da guerra: a repetição de imagens impactantes, muitas vezes descontextualizada. No dia dos ?mil mísseis? sobre Bagdá, a formação rosa-alaranjada de fumaça, chamas e fagulhas que subiu quando uma bomba mais potente explodiu bem diante das câmeras, foi, à força da repetição, perdendo sua capacidade de informar: virou mera ilustração.

O interessante desta guerra é que, apesar dos esforços do Pentágono em impor sua versão ficcional, a realidade vem escapando por várias frestas. Quem acreditou no conto de carochinha da guerra rápida, precisa, eficiente, com poucas baixas, em que os invasores seriam recebidos de braços abertos pelos invadidos, já está sendo atropelado pelos fatos.”

“Táticas de guerra”, copyright Folha de S. Paulo, 30/03/03

“EM TEMPOS de guerra, a programação das emissoras de TV se transforma num território sem lei: até um jogo da Copa Brasil, transmitido ao vivo pela Record, foi invadido, no último dia 19, quando o conflito no Iraque foi deflagrado. Palmeiras e Criciúma saíram de cena para dar lugar a um flash de quatro minutos sobre os ataques. O flash, aliás, é a grande arma dos canais na guerra da audiência. Na Gazeta, mais de 50 foram mostrados em uma semana. Curto por definição, ele atinge, num momento como este, proporções impensáveis, como aconteceu no dia 21, quando a Globo veiculou o seu boletim mais longo até agora: 18 minutos. Na Cultura, a primeira a exibir imagens dos bombardeios, graças ao convênio com a lusitana RTP, a ordem é não exagerar. ?Essas cenas viraram rotina. Não queremos mostrar a guerra de forma sensacionalista?, afirma Marco Antônio Coelho, diretor de jornalismo. Na sexta, 21, porém, quando Bagdá foi atacada, mais de 70% do ?Jornal da Cultura? foram dedicados ao conflito. Na Band, o percentual foi de 90% e, atualmente, oscila entre 60% e 80%. ?A guerra e o Datena aumentaram nossa audiência?, afirma o diretor Fernando Mitre. Na Globo, o ?Jornal Nacional? teve edição de uma hora no dia 20, e até a novela ?Mulheres Apaixonadas? foi invadida pelos bombardeios.

Subida

O canal pago Globo News, 24h por dia no ar, vem registrando um aumento de telespectadores desde dezembro. Em fevereiro, quando a guerra já era iminente, teve o dobro da audiência registrada no mesmo mês do ano passado. ?A medida da nossa cobertura é dada pelo interesse do público e pela dimensão do fato?, informou a emissora. Para segurar o telespectador, o canal se voltou inteiramente para a cobertura do conflito, alterou horários de estréias e cortou programas gravados. No BandNews, a tática também é não dar tempo para os telespectadores mudarem de canal. ?Nossa audiência triplica em eventos trágicos, por isso até derrubamos os intervalos?, diz Humberto Candil, diretor de jornalismo do canal. Na TV aberta, a programação oscila ao sabor dos bombardeios. Na Band, o ?Diário da Guerra? (22h), apresentado por Roberto Cabrini, criado para ser um programete de dez minutos, ficou no ar por quase cinco horas no dia 19, quando estreou. Graças aos picos de 12 pontos, virou um programa com 20 minutos de duração (cada ponto equivale a 47 mil domicílios na Grande SP). ?Há a possibilidade de eu viajar para o Iraque, e uma idéia seria fazer o programa de lá?, diz Cabrini. A Rede TV! se antecipou e mandou na semana passada dois jornalistas para o Oriente Médio.

Tarde bélica

Nem os programas de fofoca resistem. Na tarde do dia 20, a Band armou-se de José Luis Datena, que invadiu o ?Melhor da Tarde? e o ?Hora da Verdade? e ficou em segundo lugar na audiência das 15h às 19h40.

No dia seguinte, a Rede TV! foi à forra e atacou com Marcelo Rezende, que turbinado com 45 minutos a mais no ?Repórter Cidadão?, mostrou os pronunciamentos dos chefões das tropas americanas. Resultado: foi sua vez de ficar em segundo lugar na audiência e, com isso, até as pegadinhas de João Kléber tiveram menos espaço.

No mesmo momento, convocado às pressas, Datena mais uma vez entrou em cena no ?Melhor da Tarde?, na Band, e elevou o ibope de 2,2 para 3,4 pontos em menos de cinco minutos.

À noite, depois que Luciana Gimenez pulou de seis para oito pontos de média por mostrar o conflito, a Record quer que Adriane Galisteu aborde o assunto: ela mostrará reportagens e transmissões ao vivo até o final da guerra.”

“Anunciantes adotam estratégias”, copyright Folha de S. Paulo, 30/03/03

“Nas agências de publicidade, o momento é de atenção. ?Não tivemos grandes mudanças nos nossos planos de mídia. Apenas um cliente, da área de tecnologia, decidiu remanejar suas verbas do jornalismo para outros programas?, diz José Alves, da agência Ogilvy. ?Quando o telespectador vê gente sofrendo e, em seguida um comercial, ele não tem uma percepção agradável do produto?, diz Alves. Para o diretor do grupo de mídia de São Paulo, Paulo Stephan, nenhum cliente deixou de anunciar na TV. Segundo ele, ainda que o tema seja ingrato, de uma forma ou de outra acaba colocando mais gente diante da televisão. ?Acho que, se a guerra ficar mais dramática, os anunciantes que possuem uma ligação forte com os EUA, como Coca-Cola, McDonalds e Marlboro, podem mudar suas estratégias?, diz. A agência McCann-Erickson, responsável pela propaganda da Coca-Cola no Brasil, está cautelosa. ?Estamos evitando veicular comerciais durante a programação associada ao conflito?, diz Júlio Castellanos, gerente-geral no Rio. Para a gerente de mídia da W/Brasil, Gleidys Salvanha, nenhum anunciante pode simplesmente deixar de aparecer na TV durante o conflito, pois perderá oportunidades. ?Em certos casos, não dá para sair do horário nobre?, diz ela. Paulo César Queiroz, vice-presidente de mídia da DM9DDB, concorda. Segundo ele, a audiência do jornalismo aumenta o Ibope dos programas seguintes: ?A gente pode aproveitar isso?.

Emissora

De acordo com Octávio Florisbal, diretor-geral da Rede Globo, o impacto da guerra ainda não chegou. ?Nas ocasiões em que a Globo aumentou o espaço do jornalismo e tirou algum comercial do ar, compensamos o anunciante veiculando sua propaganda na novela das sete ou das oito?, afirma.

Entretanto, a possibilidade de a guerra ser mais longa que o esperado já alerta os executivos. ?Criamos uma reserva de recursos para aguentar um eventual impacto?, diz Florisbal.”

“Governo dos EUA critica imprensa”, copyright Folha de S. Paulo, 29/03/03

“O governo dos EUA criticou ontem o comportamento da mídia na cobertura da guerra contra o Iraque. Segundo fontes da Casa Branca, o presidente George W. Bush estaria ?frustrado? com o ?modo estúpido? da imprensa de pressioná-lo por respostas sobre a duração do conflito.

A Casa Branca e o Departamento de Defesa chegaram a externar publicamente o descontentamento com a mídia e reforçaram a estratégia de preparar a opinião pública para uma guerra mais longa do que o previsto.

?Temos visto muita alteração no humor e percepção da mídia. Muitos altos e baixos, às vezes no mesmo dia?, disse o secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld. Em seguida, ele afirmou que ?a cobertura maciça [do conflito] pode ser desorientadora?. ?Felizmente, o povo americano sabe discernir o que vê e ouve.?

O porta-voz de Bush, Ari Fleischer, disse: ?O presidente acha que perguntas sobre o quanto a guerra vai durar são legítimas. Mas há uma diferença entre perguntar isso e questionar, como vem sendo feito, a razão pela qual esta guerra ainda não acabou?.

A expectativa de uma guerra rápida foi criada inicialmente pelo próprio governo. Três dias antes de Bush autorizar o lançamento do primeiro míssil contra Bagdá, o vice-presidente dos EUA, Dick Cheney, deu entrevistas a programas na TV sugerindo que a campanha seria ?relativamente rápida? e que poderia terminar ?não em meses, mas em semanas?.

Em discurso para veteranos de guerra ontem, Bush disse que Saddam Hussein ?agora controla apenas uma pequena parte do seu país. Contra esse inimigo, não aceitaremos nada menos do que a vitória?, completou.

Como parte do esforço para justificar a guerra e frisar que ela não tem prazo para terminar, o secretário-adjunto de Defesa, Paul Wolfowitz, reuniu ontem a imprensa estrangeira em Washington a fim de apresentar atrocidades cometidas por Saddam Hussein contra o seu povo. Estava acompanhado por três iraquianos exilados nos EUA.

?Nós não subestimamos a duração desse conflito?, disse Wolfowitz. ?O que talvez tenhamos subestimado é a capacidade de Saddam de agir fora das regras básicas de uma guerra. Não antecipamos, por exemplo, que os iraquianos fingiriam estar se rendendo para em seguida atirar contra nós?, declarou.

Em seu discurso aos veteranos, Bush disse que o ditador está ?assassinando? os que se recusam a lutar contra os americanos e ?executando? prisioneiros. ?O contraste não poderia ser maior entre a nossa conduta honrosa e os atos criminosos do inimigo.?

No final do dia de ontem, Bush partiu novamente para Camp David, a casa de campo da Presidência dos Estados Unidos, que fica a 100 km da Casa Branca. Hoje, Bush deverá fazer uma teleconferência com os membros do seu conselho de guerra.”