Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Políticos, ‘produtos’ e o teatro de guerra

MÍDIA & ESTADO

Ivo Lucchesi (*)

Em que pese o "teatro dos horrores" se estar encaminhando para a encenação do epílogo, algumas máscaras ainda restam. Afinal de contas, o bom dramaturgo sabe como bem dosar a densidade dramática, de modo a regular as tensões ao longo da peça. Seguindo esse princípio, presente na cultura do teatro desde a Antigüidade, eis que o drama levado ao palco do Oriente Médio brindou a platéia do restante do mundo com "produto" de rara qualidade, proporcionado por "dramaturgos" travestidos de "políticos" que, na verdade, são estrategistas do business a envolver companhias da indústria bélica e setores do petróleo.

Crê-se já não haver mais dúvida (se, para alguém, alguma ainda sobrevivia) quanto ao engendramento de uma "operação de guerra", com o intuito de os "políticos-lobistas" implementarem um modelo de dominação capaz de assegurar, ao longo de décadas vindouras, expansão de grandes mercados para rentabilidades variadas.

O recorte acima proposto adquire visibilidade indiscutível ao identificarem-se as figuras "políticas" que integram o primeiro escalão do atual governo dos EUA. A começar pelo presidente, os demais apenas ratificam as ramificações e vinculações explícitas às áreas acima mencionadas.

Dick Cheney (vice), Condoleezza Rice (na assessoria da Segurança Nacional), Elliot Abrams (consultor para assuntos do Oriente Médio), Donald Rumsfeld (secretário da Defesa), Paula Dobrinasky (subsecretária de Estado para Assuntos Globais) e, por fim, Robert Zoellick (assessor para o Comércio) formaram seus currículos atrelados ao mundo dos negóoacute;cios. Rigorosamente, nenhum é "político de carreira". Em comum, eles têm a "cultura do lucro" como meta. É para isso que destinaram seus estudos e dirigiram a ambição de suas vidas, levando, através da política, as de milhares de outras. Estas, por sua vez, arrastadas pela ingenuidade crônica a permear-lhes o imaginário fantasioso, mesclado de "nacionalismo puritano", não percebem a cegueira que as habita e, quem sabe, a desgraça futura.

Democracia é barbárie?

Não é de estranhar que os atuais ocupantes de cargos políticos se comportem neles como negociantes e/ou agentes do setor privado. É na trama de uma lógica empresarial que a invasão no Iraque se dá. É apenas uma variante do modelo liberal do chamado "Estado-empresa", classificação que tenta sepultar o sentido de "Estado-nação". Talvez, por esse ângulo, se compreenda a vergonha da qual o mundo, graças às comunicações em rede, pôde tomar ciência. A absoluta indiferença das tropas invasoras aos saques e delitos de toda espécie que inundaram as ruas de Bagdá, Mossul e outras cidades não tem precedente na história das guerras.

Com a promessa de destituir a tirania, em favor da democracia libertária, uma nação foi lançada às mais primitivas e brutais barbáries. De bens materiais a universidades, hospitais e patrimônios da humanidade, a exemplo do ocorrido com o Museu de Antigüidades de Bagdá (várias peças e outros tantos documentos, irremediavelmente destruídos), tudo foi entregue à saga da violência e da violação. No contraponto das imagens por satélite, o secretário Rumsfeld, em pronunciamento oficial, desmentia as indiscutíveis cenas de desvario e vandalismo, ora fruto de seres desesperados, ora ações de meros oportunistas e marginais. Para desconforto do alto escalão da "guerra", sobreviveram profissionais da mídia para o registro necessário.

Retórica cínica ou ingênua?

Não bastasse o esforço em negar a evidência dos fatos, Donald Rumsfeld achou por bem retirar de sua limitada retórica a seguinte avaliação: "É uma liberdade desorganizada. E as pessoas livres são livres para cometer erros, crimes e fazer coisas más". No modelito atualizado do "politicamente correto", será esse o jargão apropriado para nomear a pilhagem pós-moderna? Não custa relembrar que a "política do saque" está enraizada na mentalidade e na prática histórica do colonialismo, desde o século 16.

Ou ainda: será que o secretário da Defesa terá admitido que, em sendo homem livre, estaria apto a tais atos?

Terceira opção: será que o ilustre "falcão" interpretou a "liberdade americana" à luz dos princípios com os quais orienta a ação do Estado ao qual ele presta serviços, ou seja: invadir, matar, destruir o que se lhe ofereça como obstáculo a seus propósitos? Terá o subconsciente, num momento de euforia ante a desejada "vitória", deixado escapar a auto-referenciação? Haverá, na entrevista coletiva, reinado o cinismo, ou terá predominado a ingenuidade com a qual o manto do puritanismo tudo encobre, a ponto de jamais perceber em si a crueldade, por esta ser característica do "outro impuro"?

Outro fato a denotar relevância na "narrativa da invasão" foi a distribuição de "baralhos" às tropas, contendo nas cartas os retratos dos 55 homens mais procurados do Iraque. No campo da semiologia e da semiótica, esse dado adquire especial atenção. Por que reproduzir as fotos justamente em cartas de baralho? Haverá outra vez o cochilo do subconsciente, permitindo liberar a idéia de que a "operação de guerra" é, na verdade, uma estratégia de um jogo com o qual se movimentam milhões de dólares, a exemplo do que ocorre freqüentemente em cassinos de Las Vegas? É possível. Mas, nada de estranho, ao considerar-se que, no modelo americano, há profunda associação entre a indústria de "jogos" (eletrônicos ou não) e a "indústria da guerra", afora a farta contribuição prestada pelo ramo da indústria cinematográfica. Identifica-se aí um atuante substrato vigente na cultura americana.

A razão maquínica

Diferente leitura acerca dos desmandos ocorridos pode decorrer de simples raciocínio em bases econômico-financeiras. Certo de que o inimigo a ser destronado não era a ameaça exposta ao mundo, o alto escalão governamental enviou tropas em número reduzido, como simples cálculo de contenção de despesas. Exatamente como procedem, em qualquer empresa, departamentos direcionados à elaboração de estratégias centradas em políticas de investimento, obtenção de lucros e amortização de custos operacionais.

Da mesma forma que regulam taxas de empregados e desempregados, enviaram para a "operação de guerra" o número estritamente necessário para a economia desejada, a fim de melhor gastar no equipamento que, por sinal, rende fartos lucros às corporações financiadoras das campanhas políticas.

Sem excluir a hipótese anterior, outra possibilidade de leitura se faz viável para a análise do total estado de desgoverno a que ficaram entregues milhares de civis em distintas cidades do Iraque. A "razão maquínica" que orienta os setores de inteligência americanos poderá haver planejado esse estado de coisas, com a intenção de configurar a alta traição do regime de Saddam, abandonando o povo à sua plena desgraça.

Deixando horrores e radicais vicissitudes cravados na memória de cada cidadão, resta o terreno livre para, em seguida, instalar-se o "governo" desejado pelos novos dominadores. Nesse caso, qualquer ordem instituída haverá de ser melhor (ou menos ruim) que a ausência de qualquer outra. Enfim, escolha o leitor a versão que julgar a mais crível, além do pleno direito de ignorar as opções dadas. De tudo, porém, fica a certeza de que o mundo foi exposto a um dos mais vergonhosos acontecimentos, cujo testemunho está assegurado pela cobertura midiática, a despeito da guerra paralela entre a informação e a contra-informação. Ao que parece, agora, o foco começa a direcionar-se para a Síria.

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.

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