Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Flávio Aguiar

JORNALISTAS ATACADOS

“Mídia fala em ?crime de guerra? só após morte de jornalistas”, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 9/4/03

“Os graves acontecimentos de 8 e 9 de abril em Bagdá merecem uma Carta Ácida* extra. As forças invasoras dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha culminaram a investida para produzir imagens da chegada ao centro de Bagdá atacando em duas frentes a presença de jornalistas na cidade. Um tanque bombardeou o Hotel Palestine, onde estava a maioria dos jornalistas do Ocidente. Um avião bombardeou com mísseis o escritório da Agência Árabe Al-Jazeera. Morreram um jornalista da Al-Jazeera e dois do Palestine. O exame das descrições indicam que foram atos deliberados e disciplinadores. Logo depois oficiais das tropas invasoras diziam que não era seguro ficar em Bagdá e que era melhor os jornalistas se retirarem.

A imposição da disciplina começou antes, quando o almirantado britânico bloqueou as transmissões da BBC no porta-aviões Ark Royal, nau capitânea de sua frota no Golfo Pérsico (O Estado de São Paulo, 8/4). O motivo alegado foi o de que as transmissões eram demasiadamente favoráveis aos iraquianos, e que levavam em conta as fontes locais.

Jornalistas da Al-Jazeera consideraram que ambos os ataques (ao Palestine e a seu escritório) não só eram deliberados, como o segundo seria um ato de vingança, por terem exibido imagens de militares norte-americanos prisioneiros. Esta exibição foi considerada uma afronta à Convenção de Genebra pelos invasores, que não se cansam de propiciar imagens não só de militares prisioneiros, mas de famílias inteiras ameaçadas por fuzis, de crianças ajoelhadas com as mãos na cabeça, de prisioneiros meramente suspeitos encapuzados etc.

A intimidação produziu algum efeito. Na manhã do dia 9 (hora de Brasília; tarde em Bagdá), com a chegada dos tanques ao centro da cidade, as tvs (CNN, BBC, RAI, Globonews, e duas televisões européias, uma francesa e outra espanhola, que também captavam imagens de uma emissora árabe) ficaram exibindo à farta o pequeno grupo de pessoas, supostamente todos iraquianos, que tentavam por abaixo uma estátua de Saddam Hussein próxima ao Hotel Palestine, e só.

A Globonews ainda exibiu ao vivo imagens da invasão do hotel por soldados norte-americanos, com mulheres iraquianas apavoradas e protestos de algumas pessoas não identificadas. Na CNN e BBC essas imagens não passaram ao vivo. Além da imagem da estátua afinal derrubada por um blindado norte-americano, só apareciam na CNN imagens de supostos iraquianos saudando soldados invasores com flores, abraços e beijos. Essas imagens e a da derrubada da estátua estavam sendo transmitidas em cadeia por todas as TVS abertas nos Estados Unidos.

Está muito difícil no entanto, sustentar a imagem de ?libertação? das cidades ou de um país. Não há manifestações, só há depredações, correrias e saques. Não há lideranças, não há discursos, nada do que caracterize uma ?irrupção? de baixo para cima. A impressão que se tem é a de que (como seria natural de se esperar) tudo o que a invasão produziu até agora foi trazer para a rua a escória das cidades iraquianas, a bandidagem, ou então os adesivos aderentes. É um agravamento do que aconteceu com a presença das tropas norte-americanas em muitas regiões da Itália. Para conseguir mulheres e conter os comunistas, elas impulsionaram as máfias locais (Ver o filme Lucky Luciano a este respeito).

A morte dos jornalistas provocou justa indignação no mundo inteiro. A Federação Internacional dos Jornalistas, com sede em Bruxelas, exigiu investigações. Pela primeira vez no Ocidente se utilizou amplamente o termo ?crime de guerra? em relação à ação dos invasores. Já não era sem tempo. Parecia que a morte das crianças, de civis, o bombardeio dos mercados públicos, dos bairros residenciais, o corte de suprimentos básicos eram ?acidentes de percurso? e não ?crimes de guerra?. Estes, só o ?outro lado? cometia. Ou era acusado de cometer. Até despojos de soldados iraquianos mortos na guerra com o Irã foram dados como ?assassinados? pelo regime de Bagdá.

Nunca, na imprensa ?do lado de cá?, lembra-se do fato de que a invasão por si só é um crime de guerra, ou uma guerra criminosa, já que afronta todas as leis internacionais, a ONU e toda a decência civilizada, perpetrada pela verdadeira quadrilha que tomou de assalto a Casa Branca, e com o auxílio servil do governo britânico. Numa daquelas entrevistas coletivas no quartel-general norte-americano houve um momento em que o oficial que falava disse que depois da guerra ?nós [?as forças da coalizão?] vamos proceder a uma triagem, separando os que vamos julgar por crimes de guerra?.

Seria demais exigir que algum jornalista presente se erguesse e perguntasse se aquela invasão toda não era um crime de guerra? Se não era adequado deixar isto para tribunais internacionais (o que não havia ao tempo de Nuremberg)? Seria demais pedir que ao menos alguém levantasse a mão e pedisse para que o oficial declinasse qual a sua definição de ?crime de guerra??

Pelo visto seria, já que de fato ninguém piou, nem antes nem depois. Pelo menos até o 8 de abril de 2003. Antes tarde do que nunca.”

“Coalizão mata 3 jornalistas em Bagdá”, copyright Folha de S. Paulo, 9/4/03

“Forças invasoras da coalizão anglo-americana mataram ontem em Bagdá três jornalistas estrangeiros. Com isso, o total de profissionais da imprensa mortos nos 19 dias do conflito é de 12, três vezes superior ao das seis semanas da Guerra do Golfo, em 1991.

Nos ataques, foram atingidos o hotel Palestine, que reúne a imprensa estrangeira, e a sede da TV Al Jazeera. ?A coalizão não tem jornalistas como alvos?, disse ontem o general-de-brigada americano Vincent Brooks em encontro com a imprensa no Qatar, do qual a Folha participou.

Logo pela manhã, um tanque americano acertou uma varanda do 15? andar, o penúltimo do hotel Palestine. O petardo matou o cinegrafista ucraniano Taras Protsyuk, 35, da agência Reuters, e feriu o cinegrafista espanhol José Couso, 37, da TV Telecinco, que morreria depois, no hospital. Três outros ficaram feridos.

Segundo os primeiros relatos do general Brooks à imprensa, o Exército americano estaria respondendo ao fogo de franco-atiradores localizados no lobby do hotel. Depois, a informação foi retificada: o ataque iraquiano teria vindo do topo do edifício, em forma de granada impulsionada por foguete e diversos tiros.

Imagens da emissora France 3, no entanto, desmentem os argumentos de Brooks. As cenas capturadas pelo cinegrafista francês mostram que o local estava em silêncio momentos antes de o tanque atirar e que os operadores deste levariam ainda cerca de três minutos para ajustar seu canhão e fazer mira na parte alta do hotel.

O Pentágono sabe que o Palestine é a sede dos cerca de 150 jornalistas na capital desde o começo da guerra, mas o edifício teria virado alvo militar há 48 horas, segundo decisão do comando das forças da coalizão em Bagdá que teria sido comunicada aos jornalistas, que negam porém ter recebido qualquer aviso prévio.

?Vingança?

Antes, dois mísseis também da coalizão haviam atingido a sede da Al Jazeera, em Bagdá, matando o repórter jordaniano Tareq Ayyoub, idade não divulgada, que fazia uma transmissão ao vivo no telhado no momento do ataque.

O jornalista ainda foi levado por colegas em direção ao hospital, mas não resistiu. Para o chefe de Redação da emissora árabe, tratou-se de ?um crime de guerra cometido deliberadamente?. Segundo Hussein Abdel Ghani, os americanos teriam se vingado da cobertura jornalística independente da rede sediada no Qatar.

Não é o que pensa Brooks. ?As forças de Saddam estão usando lugares civis para instalar equipamentos militares de defesa?, disse. ?Além disso, não sabemos quais são e onde operam os jornalistas que não estão ?embutidos? conosco e já os avisamos para deixar Bagdá, que virou um campo de batalha muito perigoso.?

?A situação da Al Jazeera parece suspeita?, disse Rageh Omaar, da TV britânica BBC, também hóspede do hotel. ?Sua redação havia dado referências de satélite quanto à localização de seu prédio em Bagdá e, pelo que vimos no momento do ataque, os mísseis estavam direcionados para o prédio mesmo, não pareceu engano.?

No mesmo dia, disparos foram feitos na direção de jornalistas da TV Abu Dhabi enquanto filmavam o movimento de dois tanques americanos numa ponte sobre o rio Tigre. Duas câmeras foram atingidas, mas ninguém se machucou. Segundo o diretor da TV, o escritório havia recebido uma ligação de um colega na vizinha Al Jazeera que prevenia que algo iria acontecer. ?Eles estão mirando nossos prédios?, teria dito o jornalista a Nart Bouran.

Protestos

Um protesto em frente à Embaixada dos EUA em Madri foi marcado para hoje. Ontem à tarde, no hotel Palestine, dezenas de jornalistas carregaram velas acesas em homenagem aos colegas mortos. Muitos decidiam com suas organizações o melhor momento e a melhor maneira de deixar o país, o que deve acontecer hoje em pelo menos dez casos.

A maioria não deixou o hotel ontem, segundo relato de Andrew Gilloigan, da BBC. ?Parece perverso permanecer num edifício que foi atacado, mas a teoria aqui é a de que o raio não cairá duas vezes no mesmo lugar?, disse ele.”

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“Organizações de imprensa fazem protestos”, copyright Folha de S. Paulo, 9/4/03

“Entidades de imprensa do mundo inteiro protestaram ontem contra os ataques da coalizão que resultaram na morte de jornalistas.

A organização Repórteres Sem Fronteira pediu que o secretário da Defesa norte-americano, Donald Rumsfeld, provasse que o hotel Palestine e as sedes das emissoras de TV Al Jazeera e Abu Dhabi não tenham sido atingidos pela coalizão deliberadamente e sem aviso prévio aos jornalistas.

A Federação Internacional de Jornalistas (FIJ) ameaçou processar EUA, Reino Unido e Iraque sob acusação de crime de guerra por atacar jornalistas. A Comissão Européia também condenou a morte dos repórteres, e o governo espanhol pediu explicações ao Pentágono sobre o ocorrido.”

“Atire no jornalista”, copyright Comunique-Se (www.comuniquese.com.br), 14/4/03

“Tenho uma má notícia para você. O assassinato dos três colegas mortos por um obus saído de um tanque das forças anglo-americanas que invadiram o Iraque quando trabalhavam dentro do Hotel Palestine, em Bagdá, não foi obra do acaso. O triplo homicídio faz parte de uma linha sobre a qual estão também a prisão e expulsão de jornalistas por autoridades do deposto regime iraquiano, o bombardeio das sedes da TV Al-Jazeera em Cabul e agora em Bagdá e a prisão do escritor e jornalista Raúl Rivero em Cuba.

?Que linha é essa que une acontecimentos tão distantes??, perguntará você. Para responder à questão, necessitamos um pouco de teoria (desculpe, mas algumas vezes é inevitável).

Na verdade, não é muito complicado. Se você estava prestando atenção às aulas de Geografia no Ensino Médio (antigo 2? Grau), sabe que, pela maior parte da história da Humanidade, a Agricultura, o setor primário, foi a geradora de riqueza e valor nas sociedades. De uns 400 anos para cá, este tipo de geração de riqueza foi sendo substituída – primeiro aos poucos, depois em ritmo alucinante – pela indústria (setor secundário). A mudança de uma para outra foi chamada de modernização e deu nome à chamada Era Moderna. A modernização atingiu todos os pontos da vida econômica (a própria agricultura foi industrializada), chegando até ao imaginário e à linguagem (você nunca notou como usamos à beça a metáfora de ?máquina?, mesmo em relação ao corpo humano, que de mecânico não tem nada?).

Nos últimos 35, 40 anos, temos passado por uma outra alteração fundamental no sistema capitalista. Este tem saído aos poucos do período industrial para um que tem sido chamado de pós-industrial ou informacional (Manuel Castells), no qual a própria transformação de matéria-prima em produto, característica da indústria, tem ficado sob o comando da informática. Um exemplo: o sonho dourado da indústria de automóveis é criar um carro que possua a ?cara? de seu dono. Para isso, este tem que passar as informações sobre o que deseja em termos de automóvel para que este seja fabricado o mais próximo possível de acordo com seus desejos. Ou seja, é a informação que sai do consumidor que formata o produto, uma inversão daquele conceito de Henry Ford: ?Todos têm ampla liberdade de escolher qualquer cor para seus carros, desde que seja preto?.

O uso da informática – seja sob a forma robotização, seja por possibilitar a fabricação de produtos em diversas partes do mundo (carros com chassis feitos no México, faróis na Turquia, câmbios na Malásia e montados no Brasil) – alterou profundamente a distribuição dos postos de trabalho nas últimas décadas, fazendo com que numerosa parcela da mão-de-obra migrasse para o setor de serviços, o terciário. Hoje, este setor emprega a maior parte da mão de obra nos países centrais e mesmo naqueles que estejam na segunda divisão da economia mundial (o Brasil, por exemplo). E é no setor terciário que a nova forma da sociedade informacional tem suas melhores condições de desenvolvimento por ser nele que a informação e o conhecimento se transformam em mercadoria de alto valor.

E por que o setor de serviços é tão valioso? Porque é nele que se encontra a indústria que produz sentido, significados, as palavras (e imagens) para as coisas. Num mundo em que você não tem mais o conforto do tempo para aprender, com calma, conceitos passados por seus pais, seus avós, os vizinhos e os professores, quem tem capacidade de influir na produção, venda e fixação de conceitos, de pensamentos, é alguém (ou algo) muito poderoso. Pode influir, na medida de seu poder, nas decisões econômicas e políticas de alcance mundial.

Ora, quem manipula palavras e imagens então é o produtor de uma mercadoria que numa sociedade em que a informação e o conhecimento são muito valiosos. Assim, como ainda hoje é importante, numa guerra, atingir as fábricas de produtos essenciais do inimigo (petróleo e derivados, aviação, construção civil, etc), também se tornou vital destruir as ?fábricas? de conceitos e pensamentos. Por isso bombardeios de estações de TV se tornaram comuns.

?Mas se precisa assassinar jornalistas a sangue frio??, perguntará você, talvez algo horrorizado.

Bem, temo que sim. Nada pessoal, é claro. É que a miniaturização das ferramentas da indústria do significado, proporcionada pela informática, e a sua operação em rede (característica essencial da qual pretendo falar numa próxima coluna), diferente do sistema ?junta-todo-mundo-numa-fábrica?, permite que uma pessoa – ou um pequeníssimo número de pessoas – possa ?fabricar? o ?produto? – a informação -, tornando-se assim uma espécie de planta fabril ambulante que precisa ser posta fora de combate, seja expulsando do local onde se encontra a ?matéria-prima?, prendendo, censurando na cama (?embeded?) ou, quando não der pra fazer nada disso, destruindo fisicamente mesmo.

Diante deste quadro, os jornalistas que cobrem guerras e trabalham com jornalismo investigativo (mas não só esses, pois manipulação também vale como ataque na indústria de significados) devem botar as barbas de molho (mesmo as moças, que não as têm), pois o que antes era um ?efeito colateral? no nível de deixar criancinhas sem os dois braços, tornou-se objetivo primordial. As ?balas perdidas? (ou ?obuses perdidos?) tendem a cada vez mais ?achar? jornalistas.

Raúl Livre! – E já que estamos no assunto, a coleguinha Rosane Serro e outros amigos brasileiros do jornalista e escritor cubano Raúl Rivero criaram um blog com o qual procuram catalisar apoios à concessão de asilo político pelo governo brasileiro a Raúl. Você pode acessar o blog clicando aqui.”