ENSINO & CONHECIMENTO
Marcos Marques de Oliveira (*)
O que mais me preocupou no último texto de Gilberto Dimenstein ("O ministro da Educação passa no vestibular?", Folha de S.Paulo, 6/4/03) foi vê-lo chamar de "fim do vestibular" a entrada das faculdades americanas no "mercado" educacional brasileiro, sob a égide do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio (OMC). E isso justamente quando estamos acompanhando o cortejo fúnebre da universidade pública nacional. A esperança de que a tão desejada democratização do ensino ocorra pela privatização (ou das "novas necessidades de uma sociedade movida a uma velocidade jamais conhecida de inovação") não me parece plausível, muito menos provável. A julgar pelo nível econômico dos brasileiros que estão alijados dos níveis superiores da educação, o acesso democrático continuará um sonho distante.
A não ser que passemos a acreditar no "conto do vigário", repetido desde do início dos tempos, de que o aluno na escola privada é mais barato do que na pública e, assim, ratifiquemos o financiamento espúrio de instituições de ensino de qualidade e direções duvidosas através do (des)crédito educativo ? o agora chamado Fies, por onde vai embora os recursos públicos que poderiam salvar o ensino superior federal, estadual e municipal.
A face real do crescimento obtuso das instituições privadas de graduação no Brasil deve ser buscada para além dos números, muito apreciados nas verdades jornalísticas reprodutoras das estatísticas oficiais (não só do MEC/Inep, mas principalmente do Banco Mundial e da OMC) ? ou nas "estatísticas de qualquer coisa", como afirma o professor Antonio Fernando Beraldo [remissão abaixo]. E esta face está nas condições concretas de aprendizagem e ensino. Uma rápida olhada no noticiário de fundo, aquele que não ganha as manchetes, serve para o início de uma conversa séria que vá além dos interesses falaciosamente anti-corporativos das grandes corporações de ensino.
Visitem o subúrbio
No Estado do Rio, por exemplo, inúmeras faculdades estão atrasando salários dos professores. Contratados de forma apressada, em seleções não confiáveis, para ocupar salas de "aula" de antigos colégios, lojas de shopping ou qualquer espaço baldio que suporte uma fachada luminosa, agora estes escravos do ensino comem o-pão-que-o-diabo-anda-amassando para não perderem o vínculo servil que conseguiram nesta selva de pedra que é o capitalismo periférico do século 21. Isso quando não são obrigados a ingressarem no mercado informal dos prestadores de serviço, sem direito a nada, inclusive salário.
O caso noticiado por Ancelmo Góis em O Globo na primeira semana de abril é apenas a ponta do iceberg. E a resposta dada pela instituição de ensino, logo no dia seguinte, bem abaixo da coluna do respeitável jornalista, é de causar indignação. Se não falta dinheiro para ocupar um espaço publicitário tão caro, por que será que falta para pagar professores e funcionários? E por falar nisso, de onde vem tanta grana para pagar os anúncios que inundam o nosso pequeno oceano midiático brasileiro? Será que é por isso que os "grandes tubarões" do mercado de notícias fazem coro às "propostas" educacionais dos "tubarões" do ensino? Ah, claro, esqueci que "Educação é tudo", como repete o novo slogan-reality do big-brother Brasil.
Será que é por isso que a mídia trata tão mal o assunto "ensino superior", principalmente o público? A choraminga é sempre a mesma: "professores marajás", "greves e greves" (vem mais uma por aí?), "rico na pública, pobre na privada", "fim da gratuidade", "cobrança já", "repitamos Harvard: doação é a solução" etc. Agora, por que não se faz uma análise profunda da situação educacional do país, tendo como objetivo um debate responsável sobre o significado da produção de ciência e tecnologia na chamada "sociedade do conhecimento"? Talvez porque as respostas não coincidam com os interesses.
Mas voltando ao assunto das condições objetivas de existência do ensino privado, está na hora de os jornalistas saírem em campo e visitarem os campus do subúrbio, por onde proliferam as novas instituições. Saiam da Zona Sul carioca, por exemplo, na qual estão as fachadas do ensino privado e visitem São Gonçalo e Nova Iguaçu, para verem o que acontece nas salas dos privados de ensino. Se não tiverem tempo durante a semana, o sábado é o melhor dia. Cursos que duram o dia inteiro, com gente de todos os cantos do estado. Cem quilômetros é a média. Professores fazendo milagre em salas com 70 alunos, a grande parte dormindo, cansados da semana laboriosa.
Inteligência brasileira em perigo
Alguém pode gritar: "Olha aí a democratização!" Bem, então por que não se oferecem cursos noturnos nas cidades de origem, facilitando as condições de elevação cultural dessa gente? O governo, dizem, não pode arcar com mais esse custo. Mas o estado em "crise fiscal" financia as bolsas, as construções, os projetos de pesquisa das instituições privadas. Então, pelo menos, era de se esperar que essas escolas fizessem uma oferta condizente às necessidades dos "clientes" e à qualidade que deve ter o ensino. Mas os empresários sabem que esse custo é alto, e o chamado "interesse individual" não produz bem coletivo se não for "estimulado" ou "muito obrigado".
E depois viram manchetes os diplomas falsificados. Mas aí, é tarde. O dinheiro já foi parar em bolsos sem fundos dos portadores de cheques com fundos suíços. E o que resta é a "defesa do consumidor", que não cansa de engolir "frangos". E mesmo assim muitos diplomas viram letras garrafais em erros médicos, pontes e edifícios que caem, advogados de causas (im)próprias, jornalistas de cheques em branco etc.
A inteligência brasileira corre perigo e dela depende nosso futuro. Tratar a educação como um negócio qualquer é, no mínimo, falta de educação ? isto é, ignorância. No máximo, um péssimo negócio que compromete o futuro do país. Ou, quiçá seja uma grande negociação!
Quem dá mais?
(*) Jornalista, cientista político e pesquisador-doutorando do Coletivo de Estudo sobre Política Educacional do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Autor de Os empresários da educação e o sindicalismo patronal (Edusf, 2002) e co-autor de O empresariamento da educação: novos contornos do ensino superior no Brasil dos anos 1990 (Xamã, 2002).
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