A GUERRA É AQUI
Monitor de Mídia (*)
O Iraque é aqui. Pouco mais de uma semana do conflito ao Oriente Médio, os jornais catarinenses se voltaram para os problemas regionais e as manchetes ? antes em letras garrafais e alusivas à invasão ? passaram a enfocar a realidade local. E o que se percebe é que os mesmos vícios apontados por este Monitor de Mídia na análise da cobertura de guerra pelos pequenos jornais se repetem quando o assunto é violência urbana. Novamente, pairam sobre as páginas dos diários a desinformação, deslizes éticos, falta de equilíbrio, ditos e desmentidos.
De olho em dez edições do Diário Catarinense, A Notícia e Jornal de Santa Catarina, de 1? a 10 de abril, quis-se observar como se comportam os principais jornais do estado quando uma (nem sempre) silenciosa guerra se espalha pelas ruas. O que o jornalismo pode ou deve fazer diante de tais casos? Apenas noticiar fria e resumidamente, em notinhas, que houve mais uma vítima de homicídio? Pode ou deve questionar com profundidade a violência que assola localidades? Não estaria o jornalismo tornando-se um espetáculo da violência, uma segunda violência, desta vez proferida ao leitor, ao tratar de casos de polícia? Ou violência maior seria omitir a violência? O diagnóstico que segue tenta mostrar um pouco de como os jornais catarinenses vêm se comportando frente a tudo isto.
Não é só no Rio de Janeiro que a violência preocupa e interfere no cotidiano das pessoas. Embora lá, a situação pareça crônica, surtos de homicídios, abusos sexuais, assaltos, muitos dos quais relacionados ao tráfico, passam a causar alarme também em Santa Catarina. Os números não deixam mentir. Foram mais de 50 homicídios só em Florianópolis neste ano. Quanto ao número de abusos sexuais, não se trata de exagero: são 78 ocorrências em 2003. A Operação Escorpião, por parte da polícia, em um mês de buscas em morros da capital e de cidades como Joinville, apreendeu 20 armas de fogo, munições, drogas e cerca de 20 mil reais.
Os dados não param por aí. A comunidade Chico Mendes, também da capital, teve casas metralhadas por pessoas ligadas ao tráfico na noite de 5 de abril. Uma menina de 6 anos sofreu tentativa de estupro e foi morta por primo. Na escola, garoto de 14 anos esfaqueou outro de 16. Na universidade, ex-aluno espancou professor. Em via pública, um carro ultrapassou caminhão pela direita, atropelou mulher com carrinho de bebê: a criança morreu na hora e o veículo fugiu.
Divergência de informações
Em geral, o que se percebe é que a cobertura da (in)segurança pública é moderada, descritiva, na maioria dos casos resumida e baseada em boletins de ocorrências. Entretanto, há aspectos que deixam a desejar e que precisam ser observados com atenção.
A tentativa de estupro seguida de morte de uma menina de 6 anos, no começo de abril, trouxe algumas contradições entre os jornais. Enquanto o jornal A Notícia do dia 1? traz o caso logo no topo da página A15, na seção de Polícia, nos dois concorrentes do grupo RBS, Diário Catarinense e Jornal de Santa Catarina, o assunto tem um destaque secundário. A precipitação, contudo, soma algumas falhas.
A matéria publicada em AN traz uma foto em proporções consideráveis onde se vê a garotinha junto do pai. O título é: "Menina estuprada e morta em matagal". Há trechos de impacto na matéria. Um deles diz que a garota foi "arrastada para um matagal, foi estuprada e espancada até a morte". Mais adiante, é dito que "o corpo da menina estava ensangüentado e mostrava sinais de estupro e espancamento" e que havia no local "um preservativo usado, a embalagem, e uma camisa rasgada".
Tanto o Santa como o DC acrescentam ainda que "a menina tinha panos dentro da boca" e que a garota havia sido morta por alguém próximo a ela. Embora o texto se repita nos dois jornais do grupo RBS, os títulos diferem do concorrente AN. O Santa traz: "Menina de seis anos morre estrangulada", e o DC: "Corpo de criança encontrado no mato". Ao fim da matéria, é dito que ainda está para ser confirmado se a menina sofreu ato sexual ou não.
As edições do dia seguinte esclarecem o fato. Não se tratava de dois suspeitos, conforme as matérias do dia 1?, e sim de um primo de 19 anos da garota. Em declaração ao jornal AN, ele confessa que não chegou a estuprar a menina. As investigações também concluem que não. Do mesmo modo, ela não foi "espancada até a morte", mas sim foi sufocada e morreu com um tiro de espingarda de chumbinho. Santa e DC trazem as mesmas informações, com um quadro explicando os passos até a morte da garota e matéria que retrata a emoção do velório. Santa ilustra com foto da ocasião, onde aparecem flores, pessoas e uma cruz ao fundo. AN publica imagem na vertical do jovem praticante do crime, à qual se sobrepõe um pequeno retângulo com foto da garota morta.
Imprecisão e mais divergências
Os números são indicativos de determinadas situações, podendo conscientizar e ao mesmo tempo alarmar sobre determinados acontecimentos. No entanto, há divergências entre matérias ou entre jornais em relação a isto. Pode parecer irrelevante que A Notícia, no dia 9, traga a informação de que um garoto de 20 anos é 54? vítima de assassinato na capital, ao passo que no DC o mesmo jovem é considerado a 55? vítima. O fato é que a falta de apuração e confirmação de dados pode acrescentar vítimas a mais numa lista que, correta, já é alarmante.
Outra discrepância foi notada entre AN e DC, no dia 10. Na matéria do primeiro, "Adolescente é executado com tiro na cabeça", a vítima é identificada por iniciais (B.R.G.J) e é dito que "era usuário de drogas e tinha antecedentes criminais por furto a residência e arrombamento de veículos". No DC, o nome é dado por completo (Bruno Rodrigo Gonçalves de Jesus) e é através de depoimentos do pai do garoto que se sabe que passava horas fora de casa e que trabalhava na roça, sem haver menção direta a crimes por ele cometidos. O garoto ia completar 15 anos no dia em que foi assassinado e talvez se deve a isto a opção de AN de usar as iniciais do nome.
Falta de equilíbrio
A seção de Polícia até parece condizer com a idéia de um espaço destinado unicamente aos depoimentos oficiais. É praxe e é necessário levantar informações junto da polícia para se saber das ocorrências, mas usar as informações repassadas pelas delegacias sem qualquer contraponto ou investigação torna o jornalismo um mero reprodutor de discursos.
Matéria no Santa, em 10 de abril, intitulada "Professores da Furb acusa aluno de agressão" traz um exemplo. O texto explicita que "revolta e insegurança cercam parte dos alunos do centro de ciências da saúde da Universidade Regional de Blumenau (Furb)". Contudo, além do professor agredido e do delegado, é ouvida uma única aluna, que dá declaração semelhante ao trecho da matéria.
Outro texto, sobre a Operação Escorpião, movida pela polícia, também apresenta apenas um lado do assunto. "Operação reduz criminalidade", à página 37 do DC de 10 de abril, informa o "sucesso" da movimentação policial nos morros, à caça de drogas, armas e suspeitos de envolvimento com o tráfico. Porém, quanto ao quesito equilíbrio, a matéria ouve apenas a polícia. A voz da comunidade, que em outras edições aparece em matérias sobre o mesmo assunto, desta vez é deixada de fora.
Aprofundamento nenhum
O jornalismo pode exercer o papel de instância crítica frente aos acontecimentos diários, ainda mais numa sociedade de massas. Isto pode muito bem ser relacionado com a cobertura das seções de Polícia nos jornais. A interpretação e a análise de fatos também é bem vinda, ao lado do simples noticiar. Peguemos dois casos citados nesta edição: o da menina morta depois de tentativa de estupro e, novamente, a Operação Escorpião.
No primeiro, os jornais até chegam a noticiar, em edições seguidas ao crime, que o seu autor foi encaminhado ao presídio e que possivelmente seria mantido separado de outros detentos, pelas provocações sofridas. Os jornais não se preocupam em discutir com profundidade as causas e conseqüências psicológicas de crimes como estupro ou pedofilia, por exemplo. Não é levantada a questão de que, como no caso de um garoto de 14 anos que esfaqueou outro de 16 no pátio da escola, a internação em casas para menores infratores pode ser uma segunda agressão, desta vez ao agressor.
Em relação à Operação Escorpião, é noticiado que 20 mil reais e que tantas armas são apreendidas em morros onde o tráfico impera. Porém, o paradeiro de tais apreensões não é sequer noticiado, quanto mais esclarecido. Os jornais atuam notificando ocorrências, intervenções policiais, barbaridades ou outros acontecimentos, mas não contextualizam a situação do tráfico nas comunidades carentes, em relação à falta de lazer em tais locais, a pouca perspectiva de empregos, à ausência de educação, saneamento básico e demais recursos.
Os tiros continuam soando, as notícias não ganham a dimensão que têm, o leitor não tem o contexto que cerca os fatos e o jornalismo fica, cada vez mais, declaratório, oficial, sem um padrão crítico de cobertura. O Iraque é aqui, e as vítimas estão espalhadas com jornais nas mãos.
(*) Projeto de acompanhamento sistemático dos jornais catarinenses. A iniciativa é de alunos e professores do curso de Comunicação Social ? Jornalismo da Univali (SC). No ar desde 2001, o projeto tem coordenação do professor Rogério Christofoletti.