COBERTURA DE GUERRA
“A guerra de Bush vingou os ataques de 11 de setembro?”, copyright Tribuna da Imprensa, 12-13/4/03″
“De todas as coisas irracionais observadas na cobertura triunfalista da guerra de Bush pela mídia dos EUA ? e faço questão de não limitar esse coletivo aos excessos esperados da Fox News e o resto do império Murdoch (News Co), mas de incluir até os veículos ?respeitáveis?, como ?New York Times? e ?Washington Post? ? a mais terrível é a ausência das perguntas primárias que o jornalismo exige.
Na sala de imprensa do Pentágono, paradoxalmente, o secretário da Defesa Donald Rumsfeld comporta-se como se os fatos estivessem a vingá-lo contra os críticos e os manifestantes que protestaram nas ruas. Mas nem estes e nem sequer os países que se opuseram à ação militar no Conselho de Segurança da ONU tinham dúvidas de que na guerra prevaleceria a maior máquina militar que o mundo já conheceu.
As perguntas que a mídia convenientemente omite, intimidada pelos donos do poder ou atemorizada ante a histeria patriótica, é sobre os pretextos usados para justificar a guerra. Saddam Hussein é de fato um vilão, fez o diabo (exatamente como os ditadores sanguinários que os EUA instalaram em tantos países), mas não usou as armas de destruição em massa e nem tinha ligações com a al-Qaeda de bin Laden.
A bandeira que veio do Pentágono
Graças em parte à contribuição melancólica da mídia para a histeria patriótica, 55% dos americanos acreditam (conforme pesquisa da rede ABC) que Saddam Hussein sustentava diretamente a al-Qaeda ? e 42% estão convencidos (pesquisa da CBS com o ?New York Times?) de que Saddam foi diretamente responsável pelos ataques de 11 de setembro ao World Trade Center e ao Pentágono.
No celebrado episódio da derrubada da estátua de Saddam em Bagdá, conforme foi revelado depois, um fuzileiro naval usou, para cobrir a cara do ditador, uma bandeira que tremulava no Pentágono naquele 11 de setembro. E ao ser ouvido na ocasião pela CNN, um dos fuzileiros declarou com certeza e naturalidade: ?Estou emocionado, pois esta é a nossa vingança contra o 11 de setembro?.
O repórter da CNN, por sinal, foi preciso ao observar que não há prova alguma de ligação entre Saddam e aqueles atentados. Mas o governo Bush apostou nessa fraude e a mídia o ajudou a vendê-la à opinião pública ? o que permitiu ainda ganhar as eleições de novembro do ano passado, tomando para os republicanos o controle do Senado e ampliando a maioria do governo na Câmara.
A guerra da CIA contra Chalabi
Embora esteja marcada para hoje uma reunião de líderes da oposição iraquiana em Nassiriyah ? sob a direção do general reformado Jay Garner, indicado antes como futuro líder num primeiro momento da ocupação militar -, a mídia nos EUA continua a se referir à luta interna dentro do governo Bush, entre o Pentágono e o Departamento de Estado, em torno do pós-guerra no Iraque.
Considerado o preferido do Pentágono e de republicanos influentes do Congresso, o líder xiita Ahmed Chalabi, que preside o grupo Congresso Nacional Iraquiano (INC), é repudiado no Departamento de Estado e na Agência Central de Inteligência (CIA). Esta teria até ameaçado, segundo algumas versões, atacar os combatentes dele caso não coordene suas ações com a comunidade de inteligência.
Chalabi foi transportado há algum tempo, de avião, pelos militares americanos para Nassiryah, sul do Iraque, a fim de ali estabelecer presença política. Outro dirigente do INC disse terça-feira em Washington à American Enterprise Institute, organização ligada a altas autoridades do Pentágono, que a CIA chegou a intimar suas forças a abandonarem Amara, a uns 360 quilômetros a sudeste de Bagdá.
Segundo aquele dirigente, Kanan Makiya, o QG de Amara fora capturado por Abu Hatem Mohammed Ali ? um contato do INC, também conhecido do Pentágono ? à frente de uma milícia e vários milhares de combatentes. E ele logo recebeu o aviso, dado por oficial da CIA fluente em árabe, de que tinha de sair da cidade ou sofreria ataques devastadores com bombas.
Lobista tem a proteção do Senado
O Pentágono, afirmou há dias o jornal ?Washington Post?, espera ter o controle total no Iraque e rejeitou ? através do secretário adjunto da Defesa, Paul Wolfowitz ? uma lista de nomes feita no Departamento da Defesa. Segundo dados divulgados na imprensa britânica, existe um plano elaborado no Kuwait e que prevê governo com 23 ministérios ? que teriam americanos à frente, assessorados por iraquianos.
Uma das esperanças do Pentágono era que o INC se tornasse uma força no Iraque e ajudasse a identificar integrantes do partido de Saddam Hussein, instalando administrações civis nas cidades e ajudando a restaurar a ordem no país. Mas tanto a CIA como diplomatas familiarizados com a região desconfiam do INC e acham que seus militantes serão vistos como estrangeiros.
Segundo o Departamento de Estado, que antes bloqueara pelo menos US$ 4 milhões em recursos para operação do INC de transmissões de TV para o Iraque, a autoridade interina tem de ser conduzida por iraquianos que representem todos os grupos, com membros da comunidade no exílio e também aqueles que permaneceram no país, vivendo sob o regime opressivo de Saddam.
Chalabi, cuja imagem em Washington é mais de lobista ativo do que de combatente, tem tanto prestígio junto ao Congresso que os senadores republicanos John McCain, Rick Santorum, Sam Brownback e Norm Coleman enviaram carta ao presidente George W. Bush e pediram para atuar pessoalmente e pôr fim a obstáculos levantados pelo Departmento de Estado contra a transferência de recursos ao INC.”
“Dúvidas Que Informam”, copyright O Globo, 10/4/03
“Nós jornalistas temos certeza de que devemos vender certezas, na suposição de que o público, atordoado por um mundo confuso e caótico, não quer dúvidas, que já tem de sobra; quer o conforto das explicações cabais, um mundo organizado. A tarefa que nos impomos é realizável quando se trata de uma reunião ministerial, por exemplo. Uma boa apuração, feita com isenção e ouvindo o maior número de fontes, pode chegar a um resultado bastante próximo da verdade. O mesmo pode se dar na investigação das causas de uma catástrofe ambiental. Ou de um crime. Ou de uma ação desastrada da polícia. À medida que os eventos ganham em dimensão e complexidade, porém, é mais difícil que se sirva ao público um prato feito e arrumado. E, nos grandes eventos, a tendência é organizar os fatos fazendo-se previsões como se o dom da adivinhação existisse. Como não existe, a chances de erro são grandes. E, no entanto, é isso o que temos visto nessa guerra do Iraque (exceções sempre existem): na maior parte das vezes, interpretações equivocadas servidas como se fossem verdades absolutas. Fantasias no lugar de fatos.
O mesmo fenômeno já tinha acontecido na guerra contra o Afeganistão. A mesma imprensa que produziu o fenômeno já se esqueceu dele, mas vale a pena relembrar. Era consenso entre os analistas que os EUA estavam se metendo numa confusão sem tamanho, de onde nada de bom poderia resultar. Diziam que os afegãos eram guerreiros ferozes e que, ao longo de sua história, tinham derrotado dois grandes impérios. Em 1842, uma tropa britânica de 17 mil homens foi dizimada, dela restando apenas um homem para contar o massacre: o Dr. Brydon, cirurgião do exército inglês. Nos anos 80, os poderosos soviéticos tinham também levado uma surra dos bravos afegãos, que, montados em seus cavalos, destruíram os tanques soviéticos (e tome a citar a filmografia de Rambo para lembrar que, naquele tempo, os EUA apoiaram os afegãos). Com base nesses dados históricos a previsão era que o conflito com os americanos seria longo, penoso, com a perda de muitas vidas. Lembro-me até de um analista de guerra dizendo que o Afeganistão tinha já mostrado aos britânicos e soviéticos que o país costuma ser uma geleira no inverno e um inferno no verão.
A guerra começou e todas as análises indicavam que a guerra seria longa. Para isso, contribuíam as entrevistas diárias do embaixador do Talibã no Paquistão (sempre acompanhado daquele companheiro que tinha um gancho no lugar da mão e um tapa-olho), que desmentiam os avanços e vitórias da aliança anglo-americana. De repente, menos de dois meses depois, o embaixador fugiu do Paquistão num jipe branco e Cabul caiu. Está certo que nunca mais nem Osama Bin Laden nem o mulá Omar foram vistos, mas eu não li nenhum artigo de autocrítica, em nenhum jornal, reconhecendo que os prognósticos estavam errados.
Agora, a história voltou a se repetir. O noticiário seguiu um ritmo esquizofrênico, mas sempre cheio de certezas. Como tudo aconteceu há pouco tempo, os leitores hão de se recordar. O primeiro movimento da imprensa dizia basicamente três coisas: a guerra seria curtíssima, em três dias tudo estaria resolvido; o Iraque é um país artificial, dividido em três etnias (aquela coisa de curdos ao norte, sunitas no centro e xiitas ao sul), e que, portanto, se fragmentaria sem o pulso forte de Saddam; os xiitas do sul receberiam as tropas invasoras com flores nas mãos e ajudariam a depor Saddam, com um golpe de Estado. Como o tempo era muito curto, a profecia seria facilmente confirmada ou desmentida. E, para desgosto dos analistas, os prognósticos não se realizaram. Não houve, porém, nenhum mea culpa, pois as análises, antes assumidas como originais, passaram a ser atribuídas ao governo americano. Assim, teve início uma segunda onda na imprensa: a guerra seria muito mais longa do que o previsto; a coalizão anglo-americana enfrentaria resistência feroz no sul; os iraquianos se uniriam em torno de Saddam para defender a sua terra; os xiitas do sul não mandariam mais flores; a batalha por Bagdá seria duríssima, talvez uma nova Stalingrado; e, finalmente, Rumsfeld teria sido um idiota por não ter mandado uma tropa maior para o Iraque, acreditando apenas na supremacia tecnológica americana (foram muitos artigos discutindo os erros dos americanos e freqüentes as manchetes como ?Rumsfeld está acuado?).
Hoje, três semanas depois de iniciada a guerra, vive-se o início de uma terceira fase. Como Bagdá já está nas mãos dos americanos, as críticas aos erros serão esquecidas e pouco a pouco será como se sempre se soubesse que a guerra seria de fato curta. Mas, como as neuroses são de tratamento difícil, logo terá início uma quarta fase. Ela vai girar em torno de três pontos: dirão que a resistência internacional ao papel preponderante dos EUA na reconstrução do Iraque será um obstáculo de grande envergadura aos planos de Bush, as teses de que o Iraque se fragmentará voltarão à tona e será uma certeza o recrudescimento do terrorismo. E, se nada disso acontecer, não haverá problema: novas teses ocuparão o lugar das velhas.
Em casos de grande complexidade, como uma guerra, em que a própria informação, divulgada ou omitida pelas fontes, é uma arma, mais legítimo seria apresentar, com humildade, múltiplos cenários e poucas certezas. O público sairia ganhando.”
“CNN revela o horror que ocultou”, copyright O Estado de S. Paulo / The New York Times, 13/4/03
“Nos últimos 12 anos, fiz 13 viagens a Bagdá para negociar com o governo a manutenção do escritório da CNN na cidade e para marcar entrevistas com líderes iraquianos. A cada visita, eu ficava mais aflito com o que via e ouvia – coisas terríveis que não podiam ser reportadas porque elas comprometeriam a segurança de iraquianos, particularmente daqueles que faziam parte de nossa equipe.
Por exemplo, em meados dos anos 1990, um dos nossos cinegrafistas iraquianos foi seqüestrado. Por semanas, ele foi surrado e submetido a eletrochoques em sessões de tortura no porão do comando da polícia secreta, porque ele se recusava a confirmar a absurda suspeita do governo de que eu era o chefe da CIA no Iraque. A CNN ficou por tempo suficiente em Bagdá para saber que contar ao mundo que um de seus empregados fora torturado quase certamente o levaria a ser assassinado e colocaria seus familiares e colegas numa situação de enorme risco.
Trabalhar para órgãos da mídia estrangeira não dava aos iraquianos nenhuma proteção. A polícia secreta aterrorizava os que trabalhavam para a imprensa estrangeira e que eram corajosos o suficiente para produzir reportagens bem apuradas. Alguns desapareceram, e nunca mais foram vistos. Outros sumiram e, então, surgiram mais à frente, junto com histórias sussurradas de terem sido torturados de modo inimaginável. Obviamente, outros órgãos de imprensa tinham o mesmo problema que nós quando isso ocorria com um de seus funcionários.
Também tínhamos de nos preocupar com nossas reportagens porque elas poderiam pôr em perigo iraquianos que não faziam parte da nossa folha de pagamento.
Eu sabia que a CNN não poderia noticiar que Uday, o filho mais velho de Saddam Hussein, me dissera que pretendia assassinar dois de seus cunhados que haviam desertado e o homem que os havia exilado, o rei Hussein, da Jordânia. Se tivéssemos contado essa história, tenho certeza de que ele teria reagido matando o tradutor iraquiano, o único que participou daquele encontro. Afinal de contas, gângsteres da polícia secreta brutalizaram mesmo funcionários experientes do Ministério da Informação, apenas para mantê-los na linha (um deles ficou um bom tempo sem suas unhas).
Entretanto, eu me senti na obrigação moral de alertar a monarquia jordaniana, e o fiz no dia seguinte. O rei Hussein desdenhou a ameaça como uma bravata de um louco. Alguns meses depois, Uday enganou seus cunhados e conseguiu fazê-los voltar para Bagdá; eles foram imediatamente mortos.
Eu conheci vários membros do governo iraquiano bem o suficiente para que me confidenciassem que Saddam Hussein era um maníaco que precisava ser deposto.
Um membro do Ministério das Relações Exteriores me contou de um colega que, ao descobrir que um irmão havia sido executado pelo regime, foi obrigado, num teste de lealdade, a escrever uma carta de congratulações pelo ato ao presidente Saddam Hussein. Um auxiliar de Uday uma vez me explicou por que não tinha os dentes da frente: guarda-costas os arrancaram com alicates e mandaram-no nunca usar dentaduras, assim ele sempre se lembraria do preço a pagar por incomodar seu chefe. Não pudemos, novamente, exibir nada do que esses homens nos contaram.
Em dezembro passado, quando eu disse ao ministro da Informação Mohamed Said al-Sahaf que pretendíamos enviar repórteres para o norte do Iraque, controlado pelos curdos, ele me alertou de que eles ?sofreriam as mais severas conseqüências?. A CNN foi em frente e, em março, oficiais curdos nos apresentaram provas de que haviam frustrado um ataque armado a nossas acomodações em Irbil. Elas incluíam confissões gravadas em vídeo de dois homens que se identificavam como agentes da inteligência iraquiana – e que afirmaram ter recebido informações de seus chefes de que o local, na verdade, abrigava agentes da CIA e de Israel. Os curdos disseram que, se quiséssemos, poderíamos entrevistar os suspeitos, mas nós recusamos, com medo de colocar em perigo nossa equipe em Bagdá.
Houve também fatos que puderam ser reportados, mas que mesmo assim ainda me incomodam. Uma kuwaitiana de 31 anos, Asrar Qabandi, foi capturada pela polícia secreta do Iraque quando seu país foi ocupado, em 1990, acusada de cometer ?crimes?: um deles foi falar com a CNN pelo telefone. Eles a surraram diariamente por meses e forçaram seu pai a assistir às sessões de tortura. Em janeiro de 1991, na véspera da ofensiva liderada pelos americanos, eles esmagaram seu crânio e fatiaram seu corpo, pedaço a pedaço.
Um saco plástico contendo as partes de seu corpo foi deixado na porta da casa de sua família.
Eu me sentia horrível guardando essas histórias para mim. Agora que o regime de Saddam se foi, suspeito que vamos ouvir muitas, muitas histórias assim dos iraquianos, sobre décadas de tormentos. Pelo menos, elas agora podem ser contadas livremente.
Eason Jordan é o executivo-chefe de Notícias da TV CNN”