Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Craig Nelson

COBERTURA DE GUERRA

“Dia-a-dia dos jornalistas em Bagdá: música e bombas”, copyright O Estado de S. Paulo / Cox News Service, 13/4/03

“Algumas pessoas têm seus discos favoritos para levar para uma ilha deserta. Os repórteres em Bagdá têm música para escutar no ritmo das bombas. Música é a grande diversão para os quase 300 repórteres estrangeiros que acompanham, na capital iraquiana, o desenrolar do conflito.

Nós a tocamos em toca-CDs com pequenos alto-falantes e em aparelhos digitais comprados durante passagens pelo free-shop do aeroporto inglês de Heathrow ou nos humildes shoppings de Dubai. Nós a tocamos enquanto escrevemos ou mandamos fotos. Também tocamos no fechamento da edição, enquanto decidimos se jogamos pela janela os nossos insubordinados laptops e telefones ou a nós mesmos.

Mas, acima de tudo, nós a tocamos enquanto as ondas de choque de explosões próximas balançavam nosso hotel de 17 andares até os alicerces e ficávamos diante da seguinte questão: será que essas bombas e mísseis ?inteligentes? iriam sofrer um lapso de inteligência?

Não estamos ouvindo música embalando altas refeições gastronômicas. A maior parte come comida enlatada ou esquenta envelopes de sódio aromatizado, isto é, sopa, em marmitas eletrônicas – quando há eletricidade. Não estamos ouvindo música em hotéis luxuosos. O Hotel Palestina é – em palavras generosas – um hotel sem estrelas. Sua decoração, o serviço e a manutenção representam a fricção cultural resultante dos laços iraquianos e soviéticos nos anos 80.

Televisão? Antes de os aviões americanos tirarem as ondas do ar de uma vez por todas, a emissora estatal iraquiana brindou-nos com coros intermináveis de ?Eu te amo, Saddam? no único canal disponível.

Não estamos ouvindo música enquanto nos vestimos para ir para a balada na noite de Bagdá. Em primeiro lugar, não há vida noturna e, depois, eu revezo três camisas, quatro camisetas, duas calças jeans e quatro pares de meias com uma freqüência que não vou confessar. Não torça o nariz: é uma escolha entre isso ou lavar tudo em uma água decididamente barrenta. Falando em água, não há nenhuma do tipo quente saindo da torneira.

Saúde – O que os repórteres em Bagdá fazem para se manter saudáveis? Nada. A exceção é Lorenzo Cremonesi, do jornal italiano Corriere della Sera. Ele desafia o ar fétido de Bagdá e faz cooper na escadarias indo do térreo até o último andar 20 vezes todas as manhãs. O restante de nós apenas fuma ou inala a fumaça dos outros.

Nem todos os repórteres procuram refúgio na música. Alguns se dedicam aos versos. Na cabeceira da cama de Tim Lambon, produtor da emissora inglesa Channel Four, está uma cópia de uma antologia de poemas de W.H. Auden, o grande poeta britânico e nosso escolhido para bardo da guerra ao terror.

Por que muitos repórteres ouvem música tão obsessivamente? Uma resposta é que repórteres, fotógrafos e câmeras – ?poetas?, ?retratistas? e ?cinegrafistas?, respectivamente – são obsessivos. Precisam ser, ou o horário de fechamento passa, os equipamentos quebram e as mágicas aspas ou fotos acabam ficando no éter.

Para alguns, música é um talismã. Com a freqüente ameaça de anarquia, nenhum repórter deseja a outro boa sorte. Como diz um deles: ?Esqueça o pé-de-coelho, até onde eu sei, pode-se andar por aí com um coelho inteiro.

Qualquer coisa nos atravessa pelo meio.?

Medo – Para outros, a música ajuda a lidar melhor com o medo. ?Tocar Metallica, Guns n’ Roses ou qualquer rock bem alto quando se está numa situação muito ruim ajuda a acalmar e na concentração.? A música ajuda a aliviar o vazio e a exaustão que se seguem ao sofrimento, à destruição e ao derramamento de sangue.

Minha escolha? Kind of Blue, de Miles Davis, acalma o espírito a qualquer hora e em qualquer lugar. Mas, em Bagdá, meu voto vai para duas canções de Bob Dylan. Com o hotel balançando debaixo dos meus pés por conta das bombas, Knocking on the Heaven’s Door e Shelter From the Storm amplificam medos e saudades.

Pense nos caças voando no céu escuro e o mundo à sua volta queimando como um Juízo Final de trovões, relâmpagos e destruição. Então escute Dylan: ?Mãe, coloque minhas armas no chão / Eu não posso mais atirar neles / Aquela nuvem negra está descendo / Eu acho que vou bater às portas do paraíso.?

Então, sonhe com o final dessa confusão. E pense em alguém que ama. ?Tente imaginar um lugar que seja sempre seguro e quente? e ligue Dylan novamente:

?Bem, eu ouvi bebês recém-nascidos / Chorando como uma pomba da manhã / E velhos com dentes quebrados / Abandonados sem amor / Eu entendi sua pergunta, cara? / Só há miséria e desespero? / Entre, disse ela, eu vou lhe dar abrigo para a tempestade.?”

“EUA e Iraque transformam desinformação em arma”, copyright Folha de S. Paulo, 13/4/03

“Mohammed Said al Sahaf, ministro da Informação do deposto regime iraquiano, passará para a história da atual guerra como o autor de bravatas enunciadas sem o menor pudor. ?Vamos cercá-los e trucidá-los?, reiterou com relação às tropas norte-americanas que se aproximavam e em seguida se apoderaram de Bagdá.

Mas ele e seu governo não tiveram o monopólio das inverdades. A desinformação foi bastante utilizada como arma de guerra pela coalizão anglo-americana.

Os ?altos funcionários do serviço de inteligência? dos EUA chegaram a enganar o ?Washington Post?, que, já no início das operações, em 21 de março, acreditou na versão de que Saddam Hussein fora gravemente ferido ou possivelmente morto, em Bagdá.

É provável que tal mentira fizesse parte do arsenal psicológico destinado bem mais a a enfraquecer o inimigo do que a confundir a mídia ocidental. Se acéfala, a ditadura iraquiana se desintegraria sem maior esforço militar.

O fato é que Donald Rumsfeld (Defesa) e Ari Fleischer (Casa Branca) e mais ministros ingleses multiplicaram declarações em que colocavam em dúvida a identidade real do Saddam que aparecia na TV iraquiana encabeçando reuniões com os dois filhos e com assessores fardados.

A dúvida persistiu até que o ditador mencionou diante das câmaras a queda de um helicóptero norte-americano que ocorreu de verdade. Saddam havia sobrevivido à primeira leva de destruição. E caso surgisse em transmissão ao vivo, a coalizão com certeza iria monitorar sua localização e acabaria de vez com ele.

A suposta localização de armas químicas integrou um segundo grupo de versões jamais confirmadas. Havia por parte da mídia norte-americana, como a rede de TV Fox News, o axioma segundo o qual a guerra era patriótica e embutida de verdade. Se Bush a desencadeou para ?desarmar? Saddam, era impossível que inexistissem arsenais de destrui&ccedccedil;ão em massa. Que, aliás, não foram até agora localizados.

Ocorreram quanto ao assunto seis ?alarmes falsos?. Os militares da coalizão cometeram a maior gafe em se tratando de uma suposta fábrica de ogivas químicas a 160 km ao sul de Bagdá. O alto comando norte-americano disse no dia seguinte não ter como confirmar a informação. Mas a cada nova ?revelação? a mídia patriótica festejava de forma acrítica.

Ocorreu também um descompasso entre as conquistas territoriais verdadeiras e a forma antecipada com que elas eram anunciadas. Basra teria primeiramente caído 48 horas depois que tropas britânicas acamparam em seus subúrbios. Segundo os informantes oficiais, Nassiriah ?caiu? dez dias antes que os norte-americanos efetivamente a controlassem.

Por malícia ou erro de interpretação, os informantes militares diziam acreditar que, em cada cidade sitiada, a população local se revoltaria e deporia os representantes locais de Saddam.

A maior gafe foi cometida pelos britânicos em Basra. Afirmaram se tratar de rebelião um distúrbio ocorrido em 25 de maio, porque água e alimentos não estavam sendo propriamente distribuídos. Só a 6 de abril é que o Reino Unido conquistou a cidade.

É impossível saber até que ponto a coalizão exagerou no poderio do inimigo como forma de, em seguida, triunfar com a relativa facilidade de sua derrota. Foram funcionários norte-americanos e britânicos que convenceram a mídia de que a guerra poderia ser longa, em razão do poder de fogo e da motivação política da Guarda Republicana. Isso não ocorreu.

Foi também irrealista e exagerada a previsão de que ocorreria uma ?guerrilha urbana?, na qual partidários de Saddam se misturariam a 4.000 voluntários de outros países árabes que defenderiam Bagdá até a morte.

Atentados de homens-bombas ocorreram com uma frequência irrisória. Não se transformaram em instrumento de resistência disseminado por todo o território iraquiano.”

“Guerra Distraiu ?Media? das Outras Notícias”, copyright Público / Reutes (www.publico.pt), 13/4/03

“A guerra e todo o aparato mediático à sua volta, com uma cobertura de quase 24 sobre 24 horas, eclipsaram dos ?media? muitas notícias sobre o que se passa no resto do mundo. Enquanto prestou atenção aos avanços das tropas aliadas em território iraquiano, ou manteve directos com Bagdad para relatar bombardeamentos, a comunicação social esqueceu-se de outros conflitos militares, massacres e abusos dos direitos humanos.

Dada a necessidade natural dos ?media? de se centrarem na ?grande? história, pouco se pode fazer acerca disso, acreditam alguns especialistas. ?As histórias sobre o Iraque são muito fortes?, afirma o director da ?Columbia Journalism Review?, Michael Hoyt. ?Temos que lhes prestar atenção.? Está na natureza dos ?media?, disse Hoyt à Reuters, que ?quando há algo assim tão importante, isso acaba por empurrar as outras coisas para o lado?.

Enquanto o mundo ficou colado aos ecrãs para ver como é que as tropas americanas desbravavam caminho em direcção a Bagdad, com uma cobertura liderada pelas imagens e descrições dos correspondentes ?embedded? nas unidades militares, na linha da frente, prestou-se pouca atenção a muitas histórias que, noutras alturas, fariam primeiras páginas e teriam honras de abertura ou de cobertura alargada nos blocos noticiosos. E há vários exemplos: os massacres na República Democrática do Congo, as mortes e detenções na Palestina e a repressão contra os dissidentes em Cuba.

Curt Goering, vice-director executivo da Amnistia Internacional nos Estados Unidos da América, diz que a organização está preocupada com esta excessiva concentração dos ?media? no Iraque, o que pode levar autoridades repressivas a ?ajustar contas? com os seus opositores, devido à exclusão da grande maioria do noticiário internacional que não seja relativo ao ataque ao Iraque. ?É um receio que já tínhamos antes de a guerra começar?, disse à Reuters. ?E em Cuba está mesmo a acontecer.?

O Governo do Presidente Fidel Castro prendeu 78 dissidentes desde 18 de Março (dois dias antes do começo do ataque ao Iraque), e dezenas foram condenados por 28 anos, acusados de serem ?mercenários? dos Estados Unidos. O Instituto Internacional de Imprensa, uma rede global de editores, executivos de comunicação social e jornalistas, com sede em Viena (Áustria), condenou os julgamentos por ?aparentemente se destinarem a silenciar, de uma vez por todas, as vozes críticas dos opositores ao regime enquanto a atenção do mundo está centrada na guerra no Iraque?.

Massacre no Congo

Do outro lado do Atlântico, na República Democrática do Congo, segundo as informações das Nações Unidas, 350 pessoas foram massacradas por milícias tribais na semana passada, cerca de um terço do número de mortos inicialmente referido pela população local. Mas mesmo quando estava a ser relatado que se receava terem sido mortas quase mil pessoas – número comparável aos das várias estimativas de baixas no Iraque – dificilmente havia uma réstia de interesse internacional.

A complicada e violenta guerra no Congo dura há anos, com milhões de pessoas mortas ou deslocadas das suas casas, mas Curt Goering diz que o interesse da comunicação social quase desapareceu com o início da invasão do Iraque. ?Está completamente ausente das publicações numa altura como esta.?

Na margem ocidental do Jordão e na Faixa de Gaza, onde as forças israelitas mataram mais de doze palestinianos nos últimos meses e detiveram pelo menos mil em operações de busca de militantes procurados, funcionários palestinianos acusaram prontamente o Governo israelita de se aproveitar da concentração das atenções no Iraque. ?Instamos a comunidade internacional a não permitir que Israel explore a guerra no Iraque para aumentar as suas medidas repressivas contra o povo palestiniano?, disse na semana passada o ministro Saeb Erekat, do Governo palestiniano.

But Hoyt, da ?Columbia Journalism Review?, disse que não é possível verificar se o Governo de Israel estava a aproveitar-se da relativa ausência de interesse exterior. ?Não podemos saber se é ou não isso. Não há maneira de saber se isso foi um motivo?, acrescentou.

Curt Goering, da Amnistia, discorda, dizendo que este ano a violência entre israelitas e palestinianos aumentou, à medida que o ataque ao Iraque se foi tornando mais iminente. ?Acelerou durante esta guerra. Em que ponto é que a atenção começou a desviar-se??

O Governo dos Estados Unidos também parece ter beneficiado com o facto de as atenções se terem virado para o Iraque. Na quinta-feira, morreram onze civis afegãos quando uma bomba americana falhou o alvo e atingiu uma casa. Este trágico incidente dificilmente poderia competir com as imagens televisivas ao vivo de ?marines? dos Estados Unidos a derrubar uma estátua de Saddam Hussein na baixa de Bagdad.”