Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As lições das entrevistas de domingo

Cada país tem a entrevista do Fantástico que merece. Primeiro, foi a mãe da menina Isabella, Ana Carolina Oliveira, uma mãe cuja postura serena diante da tragédia do assassinato da filha (os acusados eram o próprio pai, Alexandre Nardoni, e a madrasta) era vista como frieza. As pessoas esperam que uma mãe chore desbragadamente e se ela não chora, chamem as fantásticas e manipuladoras entrevistas para conseguir o feito. A coincidente data da entrevista? O dia das mães. A entrevistadora? A jornalista Patrícia Poeta.

Quando Ana Carolina começava a embargar a voz, a câmera avançava até os olhos lacrimejantes da mãe a fim de compartilharmos sua dor mais de perto. Ao mesmo tempo, a entrevistadora não deixava a entrevista acabar e dizia, em off: ‘Respira fundo’, ou tocava os joelhos da mãe. Apoio emocional de mãe para mãe? Recurso profissional para que a entrevistada não desistisse de falar? O close numa girafinha de brinquedo, lembrança da filha vitimada, a câmera que filma a entrevistadora refletida num espelho, os flashbacks com imagens da noite do crime: fatores que demonstram que o programa global não está interessado em conforto emocional. Trata-se de televisão, não de consultório psicológico.

A serenidade da mãe da menina Isabella não resistiria até Patrícia fazer perguntas do tipo ‘Que boas lembranças você guarda da sua filha?’ ou ‘Como é passar pela primeira vez o Dia das Mães sem a sua filha?’ Isso não é coisa que se pergunte a uma mãe numa hora dessas, a menos que se entenda que a vida real é muito chata e não levanta a audiência.

Vão brotar lágrimas?

Lição fantástica número 1: há perguntas que só a TV pode fazer sem constrangimentos.

A seguir, a assessoria de Ronaldo viu o Fenômeno sair imaculado da entrevista após o escândalo do satirizado episódio com três travestis. Depois, veio a entrevista com Ronaldinho Gaúcho: a intenção era levantar o astral do jogador que andava muito bola murcha pelos gramados mundo afora. Mas nada animava o (ex?) craque. Resultado: pela cara de tristeza do jogador, parecia que quem estava arrependido de alguma coisa era esse Ronaldo, e não o primeiro.

Ronaldo não tinha motivos para lágrimas. Ele estava certo, como se pode ver pelo seu estágio atual de ídolo. Ele pode entrar e sair de casamentos com a mesma rapidez com que pedala diante dos zagueiros ou posar de biriteiro (sinônimo de brahmeiro) num comercial em plena luz do dia: a imagem dele mal sofre arranhões.

Lição fantástica número 2: se cair, que ninguém descubra; mas se descobrirem, nada que uma entrevista sóbria não levante a gente.

O mais recente entrevistado foi o ator Fábio Assunção. Saído de uma internação por uso grave de drogas, Fábio encarou com extrema dignidade uma entrevista que poderia ter sido um show de melodrama. Logo no começo, ele responde sobre sua saída repentina de uma novela (Negócio da China) em andamento. Ele começa a falar, mas pára, hesita, será que vão brotar algumas lágrimas? A câmera, que não pode ver ninguém ameaçando chorar, já inicia o habitual processo de zoom no rosto do ator. Em vão: Fábio Assunção retoma sua fala com tranqüilidade.

Anônimos e invisíveis

A entrevistadora perguntava sobre o apoio que o ator recebeu nos momentos difíceis, pois lembrar de amigos e parentes nessa hora é um convite às lágrimas: nada; perguntava sobre qual o momento mais difícil, pois lembrar da luta pessoal contra a tragédia das drogas faz qualquer artista chorar: nada. Pedir para ele dar uma mensagem para as pessoas que querem sair do inferno das drogas: Fábio, com o semblante tranquilo, disse que, se a entrevista servisse como um incentivo para alguém abandonar o vício, ele se sentiria satisfeito. Não tinha musiquinha, nem close, nem pergunta íntima que fizesse o ator se derreter. Os produtores do programa devem ter pensado: ‘Que cara durão! Será que ele chora só em novela?’

Lição fantástica número 3: quando o crime e o castigo são públicos, o arrependimento e a coragem de dar a volta por cima podem ser mostrados publicamente como exemplo.

Na época em que Isabella Nardoni foi morta, outro crime semelhante ocorreu na periferia de uma grande capital. Onde estavam os pais, quem era a criança assassinada? Não houve entrevista. O drama telefilmado parece reservado às famílias das classes econômicas mais abastecidas: abastecidas com entrevistas, repórteres e lições. Para eles, a companhia de Patrícia Poeta. Aos pobres, restam os rugidos ameaçadores de José Luiz Datena.

Todos os dias, muitos têm suas vidas assoladas pela morte ou pelas desastrosas consequências do envolvimento com drogas. Mas esses são anônimos, não têm rosto, são invisíveis; e não há nenhuma mão de jornalista para os amparar, não são um caso exemplar, não foram convidados para a festa midiática armada para nos convencer. Para outros, quase sempre bem-sucedidos e famosos, há sempre o close de uma câmera nos olhos marejados por muitas e sinceras lágrimas.

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Arte-educador