DIAS DE GLÓRIA
Sérgio Domingues (*)
Dias de Glória, quadro do Fantástico, é simpático e muito bem feito. Mas sua trama é amarrada pelo noticiário da Globo. A mistura entre informação e ficção aparece escancarada. Assusta. Não é uma doença, mas é um sintoma. Denise Fraga faz o papel de uma personagem que está sempre se metendo em encrencas, ao acompanhar o noticiário da Globo e tentar influir nos acontecimentos.
Os episódios são muito simpáticos. Um deles, o do dia 23 de março, começa com a personagem reclamando dos juros altos do cheque especial, depois de ver uma reportagem do Jornal Nacional sobre o assunto. Em seguida, o noticiário diz que a economia brasileira deve sofrer reflexos da proximidade da guerra. Glória fica indignada: "Cada bomba que cair no Iraque vai sobrar pra gente aqui no Brasil?". Resolve partir para Washington para impedir a guerra. No avião conhece uma texana que é 100% a favor da guerra. Glória rebate os argumentos da companheira de viagem, que informa que a maioria dos americanos apóia a guerra. Glória argumenta que a maioria do mundo é contra. Aparecem cenas de protestos narrados por jornalistas da Globo. A texana afirma que Saddam Hussein protege bin Laden. A personagem responde que isso não está provado, assim como não está provada a posse de armas de destruição em massa pelo governo iraquiano. Cada um desses argumentos é ilustrado com reportagens do jornalismo global. No fim, a texana fica convencida e participa com Glória de um protesto em frente ao Congresso americano, em Washington. Simpático, não? Mas sigamos com outro episódio, mais complexo.
No episódio do dia 30, Glória, que está desempregada, tenta levantar o FGTS de seu último emprego. Descobre que seu patrão não depositou o dinheiro. Nesse momento a cena é cortada por um teipe rápido do telejornal SP-TV, noticiando a condenação de um empresário que não recolhia o FGTS. Voltando à ficção, o quadro mostra Glória no momento em que fica sabendo que somente poderá recuperar seu FGTS recorrendo à Justiça. Para isso precisaria apresentar os documentos necessários. Em casa, ao procurar os documentos, acabou encontrando um cheque de R$ 50 mil que a modelo Gisele Bündchen havia prometido ao projeto Fome Zero.
Nesse momento, entra novamente a notícia. É o Jornal da Globo anunciando que a modelo havia prometido doar a quantia ao projeto. Glória volta à cena para dizer que fizera um bico como camareira num desfile de modas. Na ocasião, ela teria ajudado Gisele Bündchen (na verdade, uma atriz) a sair do camarim disfarçada para fugir ao assédio de admiradores. O expediente utilizado por Glória foi vestir a modelo em traje masculino. O problema é que, na confusão, Gisele acabou saindo pela porta da passarela. Uma gravação do Jornal da Globo interrompe a história novamente. Mostra a verdadeira Gisele desfilando. A voz de Ana Paula Padrão registra a surpresa causada pela roupa masculina que a modelo trajava.
A ficção volta com as confusões de Glória. Em agradecimento à idéia do traje masculino e ao sucesso que ela provocou, a modelo pergunta a Glória o que ela gostaria de ganhar. A personagem abre mão da oferta, mas sugere uma doação ao Fome Zero. Gisele Bündchen preenche um cheque com a metade do cachê que recebera pelo desfile, os tais R$ 50 mil. Pede a Glória que faça o depósito para ela.
No corre-corre de seu dia-a-dia, Glória havia esquecido o cheque em casa. Com remorsos pela demora em depositar o cheque ("tanta gente passando fome por minha causa!", diz), ela faz o depósito. O departamento de jornalismo entra em cena outra vez. Agora, uma reportagem do Jornal Nacional anuncia que "finalmente, após 50 dias, a modelo Gisele Bündchen fizera a doação que prometera ao projeto Fome Zero".
Resolvido o problema do cheque, Glória persiste na tentativa de uma audiência com o juiz. Depois de explicar à secretária do magistrado toda a confusão sobre o cheque, resolve desistir da audiência devido à demora no atendimento. Mais tarde a secretária comenta com o juiz o caso do cheque doado ao Fome Zero. A história dá ao juiz uma idéia.
Estetização da informação
Corta para a casa de Glória. A TV, sempre ligada nos noticiários da Globo, anuncia a condenação de um empresário que sonegava o FGTS. A condenação é inédita, diz o locutor, e pode abrir um bom precedente. O empresário foi condenado a doar R$ 50 mil ao projeto Fome Zero.
Claro que este episódio também tem sua carga de simpatia. Seja a da própria personagem, seja a do engajamento no projeto Fome Zero. Há até uma cena em que o número da conta para doações ao projeto aparece esparramado pela tela.
Mas o que intriga é essa mistura entre ficção e realidade. Os fatos noticiados são verdadeiros, mas são ligados entre si para servir de enredo para as aventuras da personagem. Claro que não acho que a maioria das pessoas acredite que aquilo tudo seja verdade. Mas uma trama que gira em torno do noticiário da Globo me parece implicar duas coisas. Primeiro, a idéia de que aquilo que o noticiário diz para cada um de nós em nossas casas através da TV define o mundo. Diz o que está em jogo nele. A segunda implicação é o fato de que o departamento de jornalismo da Globo não tenha se preocupado com a possibilidade de colocar seu material jornalístico em meio a uma trama engraçada.
A única explicação é a de que isso somente é possível devido ao monopólio da informação por parte da grande mídia. Um monopólio tão grande que uma tal mistura entre informação e ficção não é vista como perigosa. Afinal, tivéssemos uma concorrência verdadeira entre fontes alternativas de informação, a Globo não correria o risco de colocar seu noticiário como parte de uma série fictícia. Poderia abalar a credibilidade de seu departamento de imprensa. Mas do jeito que está acontece o contrário. Mesmo as redes de TV rivais imitam o jornalismo global. Não são concorrentes sérios. Diante disso, a Globo se sente à vontade para fazer seus departamentos de imprensa, dramaturgia e entretenimento se influenciarem mutuamente. Trata-se de uma estetização da informação. A estetização da política é um dos elementos do fascismo, dizia Adorno. A estetização da informação será o quê?
Sintoma da doença
A propósito desta questão, alguns teóricos da mídia separam a programação televisiva em quatro categorias principais: entretenimento, publicidade, telejornalismo e pseudojornalismo [Lima, Venício A., Mídia: Teoria e política, Fundação Perseu Abramo, 1999]. Esta última caracterização serviria para programas de variedades como o Fantástico e os talk-shows, como o de Jô Soares. Programas que não são propriamente feitos para informar, mas para distrair. E quando a distração é um compromisso ligado à notícia, a distorção pode ser grande. O contrário de distração é concentração. A disposição para se distrair é um estado de ânimo pronto para fazer a atenção pular de um fato a outro. De uma história a outra, sem maiores delongas.
A informação pode ser uma e virar outra depois de passar pela lente distorcida da necessidade de distrair. O que mereceria reflexão, concentração, recebe uma atenção superficial. O que deveria convidar ao debate aparece mais ou menos resolvido pela habilidade em narrar e dispor os fatos. A crítica à guerra e o apoio ao Fome Zero nos são simpáticos. Será sempre assim?
Nesse sentido, Dias de glória é um alerta. Trata-se de uma produção que tem a marca da excelente escola de Guel Arraes. Mas parece ser a própria encarnação da perigosa junção entre informação e entretenimento. Não é a doença, mas com certeza é um sintoma.
(*) Jornalista <http://www.midiavigiada.kit.net>